Questões GNU: Richard M. Stallman sobre SCO, Distribuições e DRM (GNU Questions: Richard M. Stallman on SCO, Distributions and DRM)

 

Em setembro de 1983, um programador de computador trabalhando no laboratório de Inteligência Artificial do Massachusetts Institute for Technology [MIT] anunciou um plano que era a antítese do conceito de software proprietário que veio a dominar a indústria. O plano detalhava a criação de um substituto para o UNIX que seria inteiramente livre, não como no sentido de custo do produto, mas como a liberdade. Ao final este anúncio iria catapultar o seu autor, Richard M. Stallman, em alguém conhecido e respeitado ao redor do mundo e, talvez mais espantosamente, em uma pessoa que faria empresas como Apple e Netscape alterarem seus planos.

 

Stallman não é defensor de uma causa em particular. Quase duas décadas após o anúncio do seu Sistema GNU, manteve-se firme em suas posições, fundou e tornou a Free Software Foundation [Fundação do Software Livre] em uma organização capaz de promover e manter o Sistema GNU, um conjunto de componentes que forma mais o que é normalmente conhecido simplesmente como “Linux” do que o próprio kernel do Linux faz. Isto pode ser um tanto pouco comum na sociedade de hoje, onde causas populares hoje se tornam rapidamente esquecidas nas prioridades de amanhã, mas há algo ainda mais fora do comum sobre Stallman. Ele está sempre aberto e disponível para aqueles que mandam um e-mail, não somente a mídia, como o indivíduo ou desenvolvedor. Não porque ele não tenha nada para fazer – Stallman é um viajante ocupado constantemente fazendo o que quer que seja para promover a filosofia do software livre [free software]. Em sua forma característica, ele foi gentil o bastante para concordar em fazer uma entrevista com Timothy R. Butler da Open for Business.

 

Timothy R. Butler: A IBM anunciou esta semana que parte da sua defesa contra a SCO é baseada na violação pela própria SCO da GPL (por distribuir kernel do Linux sob GPL ao mesmo tempo que cobrava licenças por ele). Quais são seus pensamentos sobre isto?

 

Richard M. Stallman: Eu não tenho pensado sobre isso especificamente porque eu não vi os detalhes de suas reivindicações. Meu sentimento é que estou satisfeito pela IBM ter achado uma maneira de contra-atacar a SCO.

 

TRB: O fato da GPL não ter sido ainda testada em corte judicial, como é freqüentemente apontado, preocupa você?

 

RMS: Nenhum sábio aguarda uma grande batalha, mesmo que ele espere vencê-la. Ao invés de preocupar-me pelo fato de não termos testado a GPL na justiça, sinto-me encorajado pelo fato de que fomos bem sucedidos por anos em impor a GPL sem a necessidade ir a julgamento. Muitas companhias analisaram as chances e decidiram não apostar em contornar a GPL. Não é a mesma coisa que uma prova, mas é encorajador.

 

TRB: Em um artigo que você escreveu para a ZDNet sobre a ação judicial da SCO e outras coisas relacionadas, você disse “Linux por ele mesmo não é mais essencial: o Sistema GNU tornou-se popular em conjunto com Linux, mas hoje ele também funciona com dois kernels BSD e com o kernel GNU.” Isto significa que você vê o Linux como não sendo importante para o futuro do GNU, ou simplesmente que a comunidade do software livre pode viver sem ele se for necessário?


RMS: O kernel do Linux ainda é importante para o uso do Sistema GNU, e não devemos abandoná-lo sem lutar. Ao mesmo tempo, é bom ter alternativas.

 

TRB: Bruce Perens propôs a idéia de incorporar uma cláusula de defesa mútua em licenças de Software Livre. Ele sugere que se alguém tentar processar um desenvolvedor de Software Livre, que o litigante teria sua licença de usar qualquer software com a cláusula de defesa automaticamente terminada. Isto é uma boa idéia?

 

RMS: Algum tipo de cláusula de defesa mútua pode ser uma boa idéia, mas definir o que ela deveria dizer é um problema difícil. Ela precisa ser forte o suficiente para proteger a comunidade de uma séria ameaça, mas não tão ameaçadora a ponto de fazer os que não gostarem a desviarem todos os nossos softwares importantes. O problema é aumentado pelo fato que a maioria dos usuários não pára ainda de considerar o Windows como uma alternativa viável. Nós corremos o risco de espantar alguns usuários.

 

TRB: Outra questão atual interessante é o conceito do que deveria ser visto como “licença híbrida”. Por exemplo, o Multi-Network Firewall da MandrakeSoft é baseado inteiramente em Software Livre, entretanto a própria marca Mandrake é colocada sob uma licença mais restritiva (você não pode redistribuí-lo por uma taxa). Isto dá ao usuário ou consultor duas alternativas – usar o software sob a licença mais restritiva ou remover o trabalho gráfico da Mandrake. Quais são suas opiniões sobre estes pontos?

 

RMS: Eu acho que é legítimo. Liberdade para redistribuir e mudar o software é um direito do homem que deve ser protegido, mas o uso comercial de um logotipo é uma questão bem diferente. Contanto que a remoção do logotipo do software seja fácil de ser feita, a necessidade de pagar para usá-lo não prejudica a situação de liberdade do próprio software.

 

TRB: Em uma questão similar, o que dizer sobre um pacote de software que utiliza tanto uma licença proprietária quanto de Software Livre; veja o Qt da TrollTech ou o StarOffice/OpenOffice da Sun. Você vê isso como um modelo aceitável de suporte de Software Livre?

 

RMS: Os casos do Qt e do OpenOffice não são os mesmos. Com o Qt, no meu entender, o mesmo código está disponível sob a GNU GPL para o público e sob uma licença mais permissiva para aqueles que pagam. Portanto todo o software é livre.

 

Este é um modelo aceitável, e eu o sugeri algumas vezes para vários desenvolvedores, incluindo (acredito eu) a TrollTech. Entretanto, eu não faria isso eu mesmo. O copyleft [o oposto de copyright] dá ao desenvolvedor uma certa alavancagem que ele pode usar de diversas formas. Qt usa esta alavancagem para ganhar dinheiro. A FSF [Free Software Foundation] usa-a para fazer com que outros façam melhorias gratuitamente – que serve ao objetivo que nós estamos trabalhando por mais que o dinheiro poderia trabalhar.

 

O caso do OpenOffice é fundamentalmente diferente, porque o StarOffice possui funcionalidades que não estão no OpenOffice. Nem todo o código é livre. O OpenOffice é uma contribuição importante para a nossa comunidade, mas seus desenvolvedores não estão contribuindo completamente com ela.

 

TRB: Alguns anos atrás, quando a Microsoft começou a criticar publicamente as comunidades de Software Livre e Código Aberto [Open Source] através de Craig Mundie, você subscreveu uma carta juntamente com Bruce Perens, Eric Raymond e Linus Torvalds, entre outros, defendendo o Software Livre e Código Aberto. Parece que este tipo de união entre os iluminados da comunidade é um tanto rara.

 

RMS: O Movimento do Software Livre e o Movimento do Código Aberto são parte de uma única comunidade mas nós não concordamos nas questões fundamentais. No Movimento do Software Livre, nosso objetivo é ser livre para viver uma vida ética onde podemos cooperar com outras pessoas. Nós clamamos por estes valores éticos e políticos assim como por benefícios práticos.

 

Raymond e Torvalds apóiam o Movimento do Código Aberto. Eles censuram os ideais e valores do Movimento do Software Livre. Torvalds chama a si mesmo de “apolítico” e não defende muito realmente. Raymond apenas cita valores práticos e profissionais, como o desenvolvimento de software poderoso e confiável, como as razões para o que ele defende. Estes são os mesmos objetivos que a Microsoft diz estar atingindo; o movimento do Código Aberto não concorda com a Microsoft apenas a respeito de como atingi-los da melhor forma. Neste nível básico, nós do Movimento do Software Livre não concordamos com ambos.

 

O trabalho prático dos desenvolvedores de Código Aberto se sobrepõe ao nosso, portanto nós podemos e realmente trabalhamos com eles em projetos na prática. Ter uma posição conjunta com eles algumas vezes é uma coisa válida, mas a dificuldade é na maneira de colocar as palavras. Se a afirmativa refere-se à liberdade como um valor nela mesma, aqueles que suportam o Código Aberto podem rejeitá-la. Se não, então a filosofia do Movimento do Software Livre está ausente, e isto pode levar outros leitores a pensar que compartilhamos as concepções do Movimento do Código Aberto, portanto nós podemos rejeitá-la. Caminhar pela estrada entre estes dois problemas é traiçoeiro.

 

TRB: Ximian, que sempre foi muito influente sobre o GNOME desktop do Projeto GNU, recentemente foi adquirida pela Novell. Você tem alguma idéia de como isso irá afetar o GNOME desktop?

 

RMS: Pode ser benéfico ou não – somente o tempo dirá. Ximian foi uma vez um bom exemplo de uma companhia de software livre bem sucedida, mas isto mudou em 2002 quando ela introduziu um produto que não era gratuito. (Não direi o que ele faz, pois não quero promover um programa que não é gratuito.) Espero que a Novell continue a cooperar em desenvolver o GNOME como parte do sistema operacional livre GNU.

 

TRB: Enquanto o Projeto KDE e a Free Software Foundation algumas vezes tiveram um duro relacionamento, parece que alguns de seus desenvolvedores têm estendido a mão à FSF – por exemplo, incluindo GNU no termo que alguns adotaram para se referir ao desktop GNU/Linux baseado no KDE: KGX (KDE/GNU/linuX). Você acha que pode existir espaço para mais cooperação entre os dois projetos em um futuro próximo?

 

RMS: Certamente. Nós consideramos o KDE como uma ameaça em 1997 porque ele dependia do Qt, que naquele tempo não era livre. Mas agora o Qt é software livre, e não temos nada contra o Qt ou KDE. Nós ainda primeiramente recomendamos o GNOME porque é parte do Projeto GNU, mas isto sem prejudicar quaisquer outros desenvolvedores de software livre. Quanto mais eles quiserem cooperar conosco, mais nós podemos cooperar.

 

TRB: Microsoft e muitas companhias líderes, fora do setor GNU/Linux, estão desenvolvendo o então-chamado Trusted Computing Initiative [Iniciativa de Computação Confiável] (uma forma dela é o Palladium). Você vê isto como uma ameaça significante para a comunidade GNU no momento?

 

RMS: O nome “Trusted Computing” (acho que eles mudaram-no desde então) é uma meia-verdade enganadora. A idéia desta mudança no hardware de computador é a que desenvolvedores de aplicações poderão confiar em seu computador para obedecer a eles em lugar de obedecer a você. Para descrever isto mais honestamente, nós chamamos isto de “Treacherous Computing” [“Computação Traidora”].

 

Esta é uma grande ameaça, e nossa comunidade precisa organizar-se em grande número para combatê-la. E enquanto companhias como a IBM fazem algumas coisas que nos ajudam, nós não podemos considerá-las como nossas amigas verdadeiras enquanto elas apóiam esta ameaça. O perigo da computação traidora pode valer o esforço de redigir conjuntamente um estatuto para que líderes do Software Livre e Código Aberto assinem.

 

TRB: Algum tempo atrás Linus Torvalds disse que ele não era realmente contra que a tecnologia DRM [Digital Rights Management] fosse integrada ao GNU/Linux e lembrou que a GPL não proibia tal coisa.

 

RMS: A GNU GPL não proíbe características da DRM em si, e claramente não possui efeito sobre a DRM em programas de aplicativos que rodam sob o GNU/Linux, porque programas de aplicativos não são legalmente obrigados a serem cobertos pela GPL ou mesmo a serem software livre. Mas a GPL pode impor alguns limites em algumas mudanças no Linux (o kernel) que seriam necessárias para incluir o suporte à DRM no próprio Linux.

 

TRB: O que a FSF pensa sobre DRM – especialmente para dados como e-books, artigos, música, etc?

 

RMS: DRM é, ela mesma, uma ofensa  contra a liberdade dos usuários. Em segundo lugar ela oferece um perigo ao software livre – o perigo que o software livre será inteiramente proibido para funções importantes como ler um DVD ou um e-book. Portanto nós somos firmemente contra ela em princípio.

 

TRB: Vamos dizer que eu fui até você e sou um usuário final que nunca usou nada além do Windows. Eu não tenho experiência com linha de comando, somente habilidade em apontar-e-clicar. Como você configuraria um sistema para mim – que distribuição (assumindo que você iria escolher GNU/Linux como o Sistema Operacional), software, etc, você daria a mim?

 

RMS: Quando eu recomendo uma distribuição GNU/Linux, eu escolho baseado em considerações éticas. Hoje eu iria recomendar o GNU/LinEx, a distribuição preparada pelo governo de Extremadura, porque é a única distribuição instalável que consiste inteiramente de software livre. Se eu conhecesse mais uma além desta distribuição, eu escolheria entre elas baseado em considerações práticas.

 

TRB: E sobre o Debian GNU/Linux, que por padrão não instala nenhum software não-livre?

 

RMS: Programas não-livres não são oficialmente considerados “parte do Debian”, mas o Debian os distribui. O web site do Debian descreve programas não-livres, e o servidor ftp deles os distribui. É por isto que não temos links para o site deles em www.gnu.org.

 

GNU/LinEx é melhor porque ele não distribui ou recomenda estes programas.

 

TRB: E sobre distribuições, como Mandrake ou Red Hat, que não mantém software não-livre em suas versões disponíveis para download?

 

RMS: Eu não iria contar com elas, porque eu sei que eles não foram muito cuidadosos em verificar se os pacotes são realmente livres.

 

TRB: Seu desktop executa GNU/Linux, e, caso positivo, você executa “GNU/LinEx” ou alguma outra distribuição?

 

RMS: Eu viajo a maior parte do tempo, então eu não possuo uma máquina desktop, somente um laptop. Ele roda Debian GNU/Linux, que é a melhor distribuição em termos de respeito à liberdade na época que configuramos a máquina. (A disponibilidade do GNU/LinEx é um desenvolvimento recente.)

 

TRB: A Free Software Software já considerou alguma vez editar uma distribuição GNU/Linux completa?

 

RMS: Nós patrocinamos o desenvolvimento do Debian GNU/Linux em 1994.

 

TRB: Com a seleção de verdadeiras distribuições livres sendo difícil, por que a FSF saiu fora do “negócio” de desenvolvimento de distribuições?

 

RMS: Meu pensamento era o de que se nós fizéssemos nossa própria versão modificada do Debian ela não iria ser muito usada, e que desenvolver uma distribuição completamente nova seria uma perda de trabalho e somente valeria a pena fazendo-a com o Hurd.

 

TRB: Uma coisa difícil  para usuários finais são os codecs proprietários e plugins. Dois exemplos que parecem especialmente prevalecentes são o Macromedia Flash e os arquivos do RealMedia da Real Networks. Sem estas tecnologias, um bocado de conteúdo interessante torna-se indisponível. Qual solução em curto prazo você vê para isso?

 

RMS: Eu acho que deveríamos modificar os browsers para encorajar e ajudar usuários a mandar mensagens de reclamação para estes sites, para pressioná-los a mudarem.

 

TRB: Você diria que facilitar o uso de software livre lentamente (o contrário de pular de um ambiente completamente proprietário para um completamente de software livre) usando software como o WINE é aceitável?

 

RMS: Dar um passo em direção à liberdade é uma boa coisa – melhor do que nada. O risco é que as pessoas que deram um passo iriam pensar que o lugar que elas chegaram é o destino final e ficariam ali, sem tomar mais nenhum passo. Muita da nossa comunidade se concentra exclusivamente em benefícios práticos, e isto não mostra a outros usuários a razão para continuar a moverem-se até alcançar a liberdade. Os usuários podem permanecer em nossa comunidade por anos sem deparar-se com a idéia. Como resultado, eu acho que deveríamos concentrar nossos esforços não em encorajar mais pessoas a darem o primeiro passo, mas sim em encorajar e ajudar aqueles que já deram o primeiro passo a darem mais passos.

 

TRB: Você tem mais algum pensamento final que gostaria de compartilhar com os leitores de Open for Business?

 

RMS: Um programa não-livre é um sistema predatório social que mantém as pessoas em um estado de dominação e divisão, e usa o poder para dominar mais. Pode parecer uma opção lucrativa tornar-se um dos tenentes do imperador, mas a coisa mais ética a fazer é resistir ao sistema e por um fim nele.


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Traduzido por Erik Kohler. <ekohler at programmer.net>


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