O Sono da Minhoca

 

No fundo de um poço, entre folhas úmidas de samambaias e barro

argiloso, dormitava uma minhoca nova, inconsciente da existência que

levava. Passava as horas a dormir e a sonhar com estranhos passeios

por regiões sombrias. Uma vespa, de vôo rápido, desceu célere ao fundo

do poço e disse à minhoca dormideira:

 

- Minha amiga, porque passas os dias a dormir ao invés de procurar a

claridade do dia e a luz do sol? Lá fora a luz resplandece e a

claridade enche o mundo de tons maravilhosos, todas as coisas brilham

e a água tem reflexo multicor!

 

A minhoca porém, extremunhando, respondeu à espevitada vespa:

 

- Luz do sol? Não sei o que é isso nem acredito em histórias

fantásticas. Só sei o que se passa à minha volta e tudo o que vejo é

umidade e lama. Naturalmente, minha amiga, estás louca e não dormiste

como devias!

 

Dizendo isso, a minhoca se pôs novamente a dormitar e lá se foi a

vespa em vôo rápido pelo espaço.

 

Mais tarde, passou por ali um beija-flor de penas multicoloridas e

asas cor de ouro. Desejando fazer um ninho para constituir família,

desceu ao fundo do poço. Enquanto descansava num torrão seco de

argila, avistou a minhoca que dormia.

 

- O que fazes aí dona minhoca?

 

- Eu? Perguntou a infeliz, espreguiçando, durmo. Tu não sabes que

dormir é a melhor coisa do mundo? Enquanto durmo não tomo conhecimento

das loucuras dos outros seres.

 

- A filosofia é boa! - disse o alegre beija-flor - E satisfaz

perfeitamente aos malandros e vagabundos. É um método para os que

preferem esperar o fim dos milênios como massas inertes. Para mim

porém, dona minhoca, é uma infelicidade estar parado. Gosto de voar e correr pela campina; pousar nas flores e beijar as águas tranqüilas. Retiro o néctar das flores como aproveitador da natureza, mas em

retribuição, levo nas minhas asas e no meu fino e agudo bico o pólen

das flores, colaborando assim na fecundação da flora. Sou útil e sou

feliz. Deixa-te disso, minhoca, faz um esforçozinho e sobe até à boca

do poço. Vai ver como lá fora o mundo é belo e o trabalho é uma

sinfonia de luz!

 

A minhoca todavia preferiu dormir e esqueceu-se do beija-flor, que

voou para não mais voltar.

 

Horas depois, descia ao poço um besouro amarelo, com um zumbido ensurdecedor.

 

Olhou a minhoca com ar de médico em férias e como quem olha através de

um monóculo, exprobou-lhe:

 

- Assim, dona minhoca, a tua doença não sara. Estás muito preguiçosa!

Mais ânimo e coragem. O torpor é mau companheiro. Vamos, caminha!

 

Dizendo isso, sacudiu a minhoca que levando enorme susto, exclamou:

 

- O que queres de mim? Não te conheço e nem pretendo conhecer!

 

O besouro porém que é amigo galhofeiro, zumbiu satisfeito:

 

- Nada disso. Venho dar-te notícia de uma vida extraordinária e bela

que há lá em cima. E não te custa nada conhecer essa dádiva divina.

Irás travar conhecimento com novos companheiros e ver novas coisas.

 

- Todos me dizem a mesma coisa, revidou a minhoca, mas eu não creio.

Se lá em cima há tanta luz como então é que nos deixam em trevas? É

tão difícil escalar esta subida! Não sinto ânimo para essas coisas. E mesmo que quisesse não poderia, estou tão fraca!

 

O besouro, contudo, soltou estridente e cristalina gargalhada:

 

- O que tens, dona minhoca, é preguiça, no duro! Não queres te mover

porque preferes dormir. Cuidado, porém, porque qualquer dia, nesse

lugar úmido e feio em que estás, aparecerá alguém que ao invés de

aconselhar-te a subir preferirá comer-te aos poucadinhos! Não queres

vir, não e? Então, adeus!

 

Dona minhoca passava os dias a dormir, a despeito de todos os

conselhos amigos e bondosos. Falavam-lhe de uma outra vida mais bela

que sorria no alto do poço mas ela não tinha ânimo de se aventurar na

escalada laboriosa e difícil. Preferia a umidade, o perigo e a

escuridão.

 

Dias após, surgiu um pardal arisco, que, escondendo-sede estranho

caçador, ocultou-se no poço.

 

Dona minhoca que estava, por admirável que pareça, desperta, perguntou

ao pássaro:

 

- O que tens, que te mostras tão assustado?

 

- Não, disse o pardal, não é nada não. Estou apenas fugindo de um

homem que deseja me matar.

 

- Oh, gritou a minhoca admirada, então quer dizer que lá em cima onde dizem que há vida e luz, existe perigo desta natureza?

 

O pardal riu maliciosamente e disse:

 

- Sim, minha amiga, lá em cima há seres perigosos que nos perseguem.

No entanto, temos a luz do dia e a vastidão do espaços, as frutas das

árvores e os jardins floridos. Quanto a perigo de morte, no fundo

escuro deste poço existe talvez em maior proporção. Eu mesmo, dona

minhoca, poderia comê-la se quisesse, neste instante. Felizmente,

estou com o papo cheio e não iria matá-la só por prazer. Não me

esquecerei contudo que moras aqui e quando meus filhos sentirem fome

virei buscá-la, pois vejo que levas uma vida inútil.

 

Dizendo isso, deu umas bicadas na minhoca, beliscando-a, sem contudo tirar-lhe pedaço algum.

 

- O que estás fazendo, gritou a pobrezinha, aterrorizada. Queres

matar-me agora?

 

- Não, pipilou o pardal sabido, apenas estou examinando a qualidade da

sua carne. É de primeira! Dou-lhe por isso um conselho de amigo: saia deste poço, porque da próxima vez que passar por aqui, você estará no papo...

Saia portanto para a luz!

 

Dona minhoca ainda viu os olhos do pardal que brilharam no escuro como duas brasinhas. Ele se fora ruflando as asas.

 

Passado o susto, a dorminhoca espreguiçou-se e começou a escalada, com medo que o pardal voltasse para cumprir a terrível promessa.

 

Dizem que quando chegou à luz do dia, suspirou alegre e feliz.

 

- Você não acha meu irmão, que o homem até hoje tem agido sempre como

essa minhoca dormideira? Só ouve a voz dos que ameaçam, e apenas sobem

com o aguilhão da dor?!