O Sistema

Gênese e Estrutura do Universo - Tópicos Gerais

     DEUS E CRIAÇÃO

   

Para tornar a exposição compreensível à forma mental comum, tive de exprimir, em A Grande Síntese e em Deus e Universo, a concepção sintética da primeira visão intuitiva, por graus e por concatenação de desenvolvimento lógico. Assim, para torná-la mais compreensível, a visão sintética foi expressa analiticamente. Sigamos agora o processo inverso expondo os conceitos na forma em que realmente me apareceram, isto é, num primeiro momento como síntese ou visão de conjunto, e só num segundo momento, como controle racional e exposição de provas, pondo-nos em contato com a realidade dos fatos. Dessa forma, podemos colocar como atual ponto de partida, o que daqueles livros era, ponto de chegada. Assim, teremos logo diante dos olhos o quadro geral do Sistema completo, de acordo com a perspectiva panorâmica obtida, observando-a do alto. Desceremos, depois, num segundo momento, ao nível do terreno, para percorrê-lo a pé, trabalho que nos permitirá verificar, tocando de perto a realidade, que a visão de conjunto corresponde aos fatos.

O nosso ponto de partida será, pois, o capítulo final, intitulado: "Visão Sintética" do Volume Deus e Universo. Naquela visão, de máxima amplitude, que até agora conseguimos por intuição, enxertaremos a outra visão, menos vasta, porém mais próxima, a de A Grande Síntese. Os conteúdos dos dois volumes estarão, pois, fundidos aqui numa única concepção, que nos dará, num só golpe de vista, a visão de todo o Sistema. O nosso trabalho é, agora, o mesmo da minha primeira fase de recepção por inspiração, ou seja, abrir os olhos e ver. Depois, num segundo momento, faremos o outro trabalho, o de analisar, para compreender racionalmente. Desta maneira, fazendo o leitor seguir o mesmo caminho que segui, procuro dar-lhe a sensação viva do fenômeno como eu mesmo o vivi.

Então, num primeiro momento, somos apenas seres sensibilizados, dotados de uma visão interior, observando nossas percepções, sem exercer nenhum controle racional a fim de saber se correspondem aos fatos e a razão pela qual devam ser como nos aparece. Só mais tarde serão enfrentados esses quesitos, dando-se-lhes resposta. Então, como ponto de partida teremos os totais da operação que nos chegaram de forma sintética, para os analisar, buscando os seus termos constitutivos, por meio dos quais poderemos novamente alcançar aqueles totais, mesmo usando a forma mental moderna. Coloquemos, então, agora, as conclusões, para depois proceder à sua análise. Poderá isto parecer estranho, mas a humanidade enfrentou o problema do conhecimento com o mesmo método: primeiro a revelação, por meio de profetas e inspirados, depois a ciência, com a observação e a experiência. É este, portanto, o sistema usado pelas leis da vida, no desenvolvimento do pensamento humano. São dois momentos sucessivos e complementares: o primeiro é o movimento instintivo e inconsciente do menino que abre os olhos, olha e assimila; o segundo é o movimento reflexo e consciente do adulto, controlando com a razão o que vê, não mais esperando o conhecimento descer gratuitamente do Alto, mas movendo-se ele mesmo à sua procura, com seu trabalho e esforço.

 

Em vista de as duas operações se completarem mutuamente, sendo uma necessária à outra, devemos executar ambas. Fiquemos agora no âmbito da primeira. Neste trecho no qual a intuição impera, os céticos ainda nada podem dizer. Para a dúvida, que virá mais tarde, ainda não há lugar aqui. Estamos agora na fase em que se olha, se recebe e se registra. Os raciocinadores, os críticos, os céticos, trabalham em outro terreno, e virão depois, sendo bem aceitos, porque também são utilíssimos para realizar o trabalho de controle. Mas nesta primeira fase, só pode olhar e calar-se.

Na atual visão de síntese, encontramo-nos situados no absoluto, no qual tudo é suprema abstração, onde tudo escapa a uma possibilidade de controle com os meios de nossa concepção de origem sensória e com os princípios da realidade fenomênica de nosso mundo. Diante dessa visão, falta-nos qualquer meio de controle direto e ponto de referência, não funcionando a observação e a experiência, que constituem a força da ciência. Mas isto não significa não haver a possibilidade de algum controle. Ele existe, mas indireto. Movemo-nos aqui no âmbito das causas primeiras, cuja essência escapa à nossa percepção. Destas causas, possuímos os efeitos repercutindo em nosso mundo, efeitos que vivemos e dos quais somos o resultado. Sem dúvida, não podemos ver o Absoluto, mas podemos fazer dele uma imagem, indiretamente, através dos reflexos e efeitos que vemos em nosso relativo, o qual bem conhecemos. Esses efeitos, nós os temos sob os olhos, controláveis a cada momento, falando-nos sempre da causa, de que são filhos diretos. Assim, neles podemos ver o rosto da mãe, cuja fisionomia pode ser reconstruída até por meio daquela razão, que não chega a vê-la, como o faz a intuição. Então, por um caminho mais longo, podemos levar os céticos a admitir a verdade daquelas visões que, por sua natureza, são incontroláveis diretamente.

Quando chegamos a esta visão, não podemos saber nem nos perguntar por que Deus quis existir e agir de determinada maneira e não de outra. Podemos somente receber a visão e registrar o estado de fato, que ela representa, e por fim aceitá-lo. Não podemos discuti-lo, nem modificá-lo, como é o caso da lei que regula qualquer fenômeno. Em ambos os casos verificaremos que o estado de fato é assim, acontece assim, sendo esta a inviolável estrutura do fenômeno.

Ocorre, porém, uma coisa. Nesse plano imperscrutável e nesse esquema geral indiscutível do ser, achamos as causas primeiras, únicas a nos explicar não só os efeitos que temos entre as mãos, mas também a sua estrutura, sem o que não saberíamos explicar a razão pela qual teriam tomado aquela conformação particular e não outra. Por isso, não podemos explicar porque Deus teria querido criar os seres, transformando-se, de um todo homogêneo, internamente indiferenciado, num todo orgânico, unidade coletiva composta de infinitos espíritos. Mas este fato, que não podemos pesquisar, é o único a explicar outro fato correspondente, pelo qual o homem resulta constituído por um organismo de células, ou seja, uma unidade coletiva dirigida por um eu central, assim como todo o universo é dirigido por Deus. É ainda o único a nos explicar o princípio, pelo qual os seres tendem a reagrupar-se em unidades coletivas cada vez mais amplas; daí vermos dominar em nosso universo o princípio orgânico, justamente aquele ao qual se deve a criação dos seres, como foi revelado pela visão. Somente ascendendo a estas origens das coisas podemos dar-nos conta da razão pela qual assumiram em nosso universo sua atual conformação.

Assim, não podemos explicar, agora, o porquê último da estrutura trina da Divindade, além dos princípios gerais de ordem e harmonia, como não podemos perguntar nem saber a razão. Mas, verificamos que nós mesmos, em cada ato nosso, repetimos o mesmo comportamento: primeiro concepção da idéia, depois ação e, finalmente, a sua manifestação na realização concreta, exprimindo na forma, a idéia. Por isso, não podemos dizer a razão pela qual Deus tenha desejado existir como Trindade, mas podemos compreender a razão pela qual funcionamos dessa maneira. Devido o universo ser constituído segundo esquemas de tipo único, que se repetem em todas as alturas e dimensões, repetimos em cada ato nosso o princípio da Trindade, o único que pode esclarecer sobre essa estrutura de nossa maneira de agir e da sua forma de existir. É precisamente aquele primeiro modelo da Trindade, que vem repetido em todos os atos criadores de cada ser inteligente.

          

Eis como me apareceu a visão máxima do todo, já esboçada como conclusão no capítulo final de volume Deus e Universo, e agora, tendo chegado a um estado de mais profunda maturação, apresentamos de forma mais ampla e completa.

Apareceu-me Deus como uma esfera que envolve o todo, isto é, como conceito abstrato de esfera, existente além do espaço e cuja superfície está situada no infinito. Deus está no centro e domina toda a esfera, existindo também em cada ponto seu. Deus não pode ser definido, porque no infinito Ele simplesmente "é". Deus significa existir. Ele é a essência da vida. Tudo o que existe é vida, isto é, Deus. E Deus é tudo o que existe, que é vida. Deus é o ser, sem atributos e sem limites. O nada significa o que não existe. O nada, portanto, não existe. Ele não pode existir em si mesmo, por si só, mas só como uma função do existir, como uma sua posição diversa, da mesma forma que a sombra não pode existir por si mesma, mas só em função da luz, e o negativo não é concebível senão como contraposição ao positivo.

Nós, como tudo o que existe, estamos em Deus, porque nada pode existir fora de Deus, nada lhe pode ser acrescentado nem tirado. Mas, como veremos, nós humanos, com os outros seres de nosso universo físico, encontramo-nos existindo numa posição particular, semelhante à da sombra em relação à luz. Como sombra, fazemos parte do fenômeno luz, ou seja, fazemos parte do Tudo-Uno-Deus, mas como sombra, isto é, negativo, estamos no pólo oposto ao positivo da mesma unidade. Mais tarde veremos como isto aconteceu. Assim, diante do absoluto, encontramo-nos no relativo; diante do imutável, no contínuo transformar-se; diante da perfeição, numa condição de imperfeição sempre em movimento para atingir a perfeição; diante da unidade orgânica do todo, encontramo-nos fragmentados e fechados em nosso individual egocentrismo de egoístas; diante da liberdade do espírito, encontramo-nos prisioneiros no cárcere da matéria e de seu determinismo; diante da onisciência de Deus, estamos imersos nas trevas da ignorância; diante do bem, da felicidade, da vida, somos presas do mal, da dor e da morte.

Explicamos isto, para compreender como, existindo em um mundo emborcado do lado negativo, em relação a Deus, só sabemos conceber Deus como uma negação de tudo o que constitui nosso mundo. Pelo fato de sermos sombra, só podemos conceber Deus como a sombra concebe a luz, isto é, como o contrário de si mesma. Para poder atingir o positivo, seria indispensável, portanto, chegar a negar todo o próprio negativo, ou seja, dizer: Deus não é tudo o que nos aparece e existe como real; como para chegar à luz, mister seria afastar toda a sombra. Este nosso mundo de matéria, percebido pelos nossos sentidos, não é Deus. Este ou aquele fenômeno ou forma, em seu aspecto contingente, não é Deus. Mesmo Deus estando em tudo o que somos e vemos, tudo isso, por si só, não é Deus. Ele está além de todo fenômeno e forma, de toda posição do particular. Se se pudesse definir o infinito, a definição de Deus deveria estar para nós, antes, no negativo, isto é, como a negação de tudo o que para nós, em nossa posição, ao contrário, existe.

Todavia, há um fato. A sombra não é, absolutamente completa. Ela contém sem dúvida, reflexos de luz. Isto porque no atual plano de sua vida, o ser humano já percorreu certo trecho do caminho da evolução, ou seja, já subiu uma certa parte do caminho da descida e com isto reconquistou um pouco da perfeição originária. Ora, as definições comuns de Deus, em sentido positivo, foram obtidas com o elevar-se à potência infinita, as mínimas quantidades de perfeição reconquistada pelo homem ou intuída como futura realização a conquistar, isto é, os pálidos reflexos contidos na sombra.

              

                  

Chegamos assim, não a uma definição, mas apenas a uma aproximação do conceito de Deus. Com efeito, não é possível uma sua definição, porque, como acima dissemos, não se pode definir o infinito. O infinito uma vez definido não seria mais infinito. Compreendido este ponto, continuemos a contemplar a visão. Focalizando cada vez mais de perto, verificamos ser a esfera constituída não de uma, mas de três esferas, idênticas em tudo, e que cada uma se vai transformando na outra. Passamos, assim, ao segundo momento ou aspecto da visão. O primeiro deu-nos o conceito de Deus. O segundo dar-nos-á o conceito de criação.

Eis então que a esfera a qual chamamos de Tudo-Uno-Deus, por representar Deus como Unidade envolvendo o todo, inicia um processo de íntima elaboração, levando-a a uma profunda transformação. Neste segundo aspecto da visão, a Divindade se distingue em três momentos sucessivos, constituindo a Trindade do Deus-Uno. Representa o assim chamado mistério da Trindade, encontrado em muitas religiões, em todos os tempos. Eis a Divindade, una e trina ao mesmo tempo. Observemos os três momentos. Para nos tornar compreensíveis, teremos infelizmente de materializar os conceitos abstratos, em termos antropomórficos e com representações concretas; estas, se são úteis para fixar as idéias mediante representações mentais, mais facilmente concebíveis, no entanto, certamente deformam o conteúdo abstrato da visão, diretamente impossível de ser imaginado.

No primeiro momento, acha-se Deus no estado de puro pensamento. Ele então existe como um eu pensante que concebe. O movimento da elaboração interior está só na ideação abstrata, que é de visão do plano, o qual depois se realizará nos momentos sucessivos; é formulação da Lei, isto é, dos princípios que irão reger tudo; é contemplação da obra futura, ainda no estado de imagem mental.

Mas, eis que tudo se transforma e passa a um segundo momento, quando a concepção se muda em ação. O movimento da elaboração interior, de puro pensamento se torna vontade, que executa a idéia abstrata, põe em ação os planos concebidos, aplica os princípios da Lei. A imagem mental torna-se ação e se encaminha à sua realização.

Chega-se, assim, ao terceiro momento, àquele em que a idéia, por meio da ação, atingiu sua realização. Então o movimento da elaboração interior se completou, chegando à obra terminada, na qual, por meio da ação, a idéia originária do primeiro momento encontrou sua expressão final, de acordo com os planos concebidos e os princípios da Lei. É neste terceiro momento que ocorre a gênese da criatura, ou seja, a criação.

Estes três momentos representam o que chamamos as três pessoas da Trindade, ou seja: Espírito (a concepção); Pai (o Verbo, ou ação); Filho (o ser criado). Cada um dos três momentos é sempre o mesmo Deus, que permanece assim o Todo-Uno e trino ao mesmo tempo.

 

 

Para facilitar a representação destes conceitos, poderemos imaginar as três esferas lado a lado, uma depois da outra, isto é, contíguas e sucessivas. Focalizemos nossa atenção na terceira ou última.

Qual é o resultado final do citado movimento de elaboração interior? Como se transformou, em seu íntimo, o Tudo-Uno-Deus, no fim do terceiro momento? Como fica a estrutura interior da esfera, no fim do processo a que se deve a criação? Em que constituiu ela?

Respondamos começando com as palavras do capítulo "Visão sintética", com que se encerra a visão do volume Deus e Universo. Neste processo, Deus multiplicou-se, como que se dividindo num número infinito de seres e no entanto continuando uno. Nos três momentos, a unidade de Deus permanece intacta e idêntica. Em vista de, ao Todo, nada se poder acrescentar, a criação ocorreu e permaneceu no seio do Tudo-Uno-Deus. Em outras palavras, poderemos imaginar este processo criador, como uma íntima auto-elaboração, pela qual Deus se transformou, de seu estado homogêneo e indistinto, em outro seu estado diferenciado e orgânico. Disto nasceu uma Sua diversa estrutura orgânica e hierárquica, um sistema de elementos (as criaturas) coordenados em função Dele e regidos por Sua lei, concebida no primeiro momento. Assim, a Divindade, que era unidade diferenciada, permaneceu igualmente una também agora, em seu terceiro momento, como unidade orgânica. Isto porque os elementos componentes resultaram tão profundamente integrados na ordem da Lei, tão bem coordenados em hierarquias e distribuições de funções, que a unidade originária de Deus nada perdeu e ficou íntegra, perfeita em seu novo aspecto de unidade orgânica. Criou-se, assim, o modelo, que mais tarde será repetido na formação de todos os organismos, quer da matéria quer da vida, segundo um dos maiores princípios da Lei, o das unidades coletivas.

Assim, as criaturas, nascidas desta criação, podem imaginar-se, em representação antropomórfica, como tantas centelhas em que quis dividir-se o incêndio divino. É evidente estarmos nos esforçando em dar uma representação mental ao fenômeno, de forma facilmente compreensível, mesmo sabendo que, quanto mais nos avizinharmos da forma mental humana, mais nos afastaremos da realidade toda abstrata e espiritual do fenômeno. Mas temos de fazer isso, porque a aceitação e a sorte de uma teoria dependem, muitas vezes, da forma mais ou menos facilmente compreensível e representável, com que seja exposta.

Além disso, mister é ter presente, que quando falamos de criação, não se trata ainda da criação de nosso universo que conhecemos, mas de uma originária criação, da qual derivou depois a atual. Essa era de puros espíritos perfeitos, bem diferente em toda sua qualidade, daquela em que nos achamos atualmente situados. Esta virá depois, e veremos como. Esses espíritos perfeitos que Deus tirou de Sua própria substância, nela permaneceram fundidos num só organismo unitário. A substância divina que os constituiu, continuou a existir una em Deus, agora, que se achava em estado diferenciado de elementos fundidos num organismo, como o era no primeiro momento, quando estava em estado homogêneo indistinto.

Com isto, completa-se o terceiro momento e está terminada a primeira criação. Esta é a criação perfeita, de puros espíritos, existentes em absoluta harmonia na ordem da Lei, no seio de Deus. Chegamos assim da fase do Espírito, à do Pai e enfim à do Filho, representada por este último estado. Na harmonia de Deus, tudo funciona perfeitamente. Tudo é luz sem sombra, alegria sem dor, vida sem morte. Assim ocorreu a criação e estes foram os resultados.

É claro nos acharmos, em cada um dos três aspectos, diante do mesmo Deus, que nada mudou de Sua substância. É portanto lógica e compreensível a equivalência dos três modos de ser da mesma Entidade. Trata-se, realmente, de três pessoas iguais, porquanto são a mesma pessoa, e distintas, enquanto a mesma pessoa se transforma em três momentos diversos. Trata-se do mesmo Deus em três aspectos Seus diferentes; como no caso do menino, adulto e velho se trata da mesma pessoa, constituída, entretanto, por três pessoas distintas, enquanto esta se muda em três diversos momentos seus. Como este homem, também Deus, em seus três aspectos, permanece o mesmo.

Concentremos agora nossa atenção, focalizando o nosso olhar nesta criação realizada, no fim do terceiro momento, ou seja, no terceiro aspecto da Divindade, o Filho.

 

                                             

QUEDA E RECONSTRUÇÃO DO SISTEMA

    

Estamos diante do terceiro aspecto da esfera do Tudo-Uno: o de Deus-Filho. No segundo momento, o Verbo quis e agiu; fez assim de si mesmo um sistema orgânico de seres. Este é o que a visão agora nos oferece. Aqui Deus nos aparece como uma infinita multidão de seres, isto é, uma multiplicidade de individuações do ser, a qual não significa, de forma alguma, fracionamento ou dispersão da unidade, porquanto as criaturas surgiram todas organicamente coordenadas, funcionando de acordo com a Lei, ou seja, com o pensamento de Deus, e a Ele todos se subordinando, como centro do Sistema.

Sendo as criaturas centelhas de Deus, deviam possuir as qualidades do fogo central, tendo em primeiro lugar a liberdade. Os filhos de Deus só podiam ser livres e conscientes, aceitando permanecer na ordem por livre adesão. O organismo da Divindade não podia ser constituído de autômatos, de escravos inconscientes. Mas, sendo os elementos constituintes hierarquicamente coordenados num organismo, não podiam ser idênticos ao Centro, ao qual, no que respeita o conhecimento e poderes, tinham de ficar subordinados, como num regime de ordem e harmonia é necessário para tudo o que é menor e derivado. A coordenação dos elementos componentes do organismo do sistema, implicava, como primeiro dever, na ordem soberana, o da obediência. Num sistema de ordem, é necessidade imprescindível e lógica que a liberdade seja condicionada a ele, e não lhe seja lícito ultrapassar limites, além dos quais lhe seria permitido subverter aquela ordem, chegando, assim, neste caso, a atentar até contra a unidade do Tudo-Uno-Deus, em cujo seio se move e de cujo sistema faz parte. A primeira condição, pois, a que deve submeter-se a liberdade é o dever de manter-se em perfeita adesão à Lei, que exprime o pensamento e a vontade de Deus.

Todavia, a liberdade é tal, que contém a possibilidade do arbítrio e do abuso, significando poder quebrar a unidade orgânica do Sistema. Neste caso, portanto, o ser livre podia não querer mais mover-se harmonicamente no Todo, produzindo assim, um tumor canceroso no seio do próprio Sistema, pronto a alterar a estrutura sadia. Era necessário então que a liberdade não se exagerasse, ultrapassando os limites da ordem e da obediência, mas permanecendo, ao invés, subordinada em tudo à supremacia do Centro. Se essa infração ocorresse, a desordem nascida no seio da ordem, produziria uma fratura, pelo menos na parte inquinada, um emborcamento e uma queda.

Mas como poderia acontecer fosse o Sistema, obra de Deus, tão imperfeito que pudesse desmoronar a cada momento? Não. Ao contrário, era tão perfeito, podendo até desmoronar sem dano definitivo, justamente por isso podia conter, deixada à mercê da livre vontade do ser, a possibilidade de uma queda. Se isso tivesse ocorrido, é porque o Sistema era perfeito a tal ponto, que teria tido a possibilidade de ressurgir de sua queda. Esta implícita capacidade de automedicação, apta a resolver qualquer crise, tornava inócuo, em última análise, esse perigo e erro. Não se tratava, pois, de imperfeição. Ao contrário, na perfeição do Sistema, tudo estava previsto, até a possibilidade de uma desordem e de uma queda; por isso, foi deixada nas mãos do ser a escolha entre obediência e a desobediência, com a possibilidade de uma desordem e uma queda. Se isto acontecesse, tudo se curaria por si mesmo, embora passando por outros caminhos, e voltaria ao primitivo estado de perfeição, se bem que através de uma nova experiência, sempre útil e justa, apesar de árdua.

Mas, pode objetar-se ainda, se os espíritos eram livres e felizes na ordem por que deveriam ter-se sentido atraídos para uma desordem tão desastrosa? O que os açoitou, foi o mesmo princípio fundamental do ser, próprio também a eles: o egocentrismo. Este representa o princípio unitário, que rege a existência de cada individuação. Seu modelo máximo é Deus, centro em torno do qual tudo gira e para o qual tudo gravita. Egocentrismo não quer dizer egoísmo. Este é um egocentrismo exclusivista, para vantagem própria e desvantagem dos outros, ao passo que o egocentrismo pode fazer centro de si, como até no caso máximo de Deus, sobretudo para o bem dos outros.

E então aconteceu justamente que, em sua liberdade, parte dos espíritos, em vez de se deixar possuir por este egocentrismo altruísta e orgânico — que a Lei quer em sua ordem — deixou-se atrair e preferir um egocentrismo egoísta. O egocentrismo é, por natureza sua, uma afirmação, e como tal tende a afirmar-se cada vez mais, se o seu impulso não for equilibrado por um contra-impulso, exercitado pela disciplina que o ser se impõe, em respeito à ordem e em obediência à Lei. Mas, se esse egocentrismo egoísta pode ter parecido como uma vantajosa expansão do eu, ele representava o princípio subversivo e anti-orgânico, que reaparece no câncer, no organismo humano. Rompeu-se, dessa forma, a harmonia hierárquica do Sistema, na qual toda individuação existe, como acontece com as células no corpo humano, que vivem umas em função de outras, sem o que, desmorona a unidade orgânica. Num sistema orgânico e hierárquico, as dimensões de cada eu são, para cada ser, medidas pelo valor e pela função ali representada; e cada individuação deve, para não se alterar a harmonia da ordem, manter-se sempre nos limites das dimensões relativas a esse valor e a essa função. Cada expansão do eu que exagere as devidas proporções, tende a emborcar o Sistema, pelo menos no ponto contaminado: emborcar, isto é, inverter, porque  num sistema equilibrado, o desenvolvimento exagerado para além da ordem, leva a uma contração correspondente; cada expansão indevida, é corrigida por uma diminuição proporcional.

              

               

Então, mais exatamente, o que aconteceu? Como se verificou esse novo fato, que teria deslocado, pelo menos em parte, a ordem do Sistema? Observemos.

Encontramo-nos, agora, situados diante do terceiro aspecto da esfera do Tudo-Uno-Deus: o de Deus-Filho. Tudo continuava existindo em perfeita ordem, segundo a Lei. Fora dada por Deus, à multidão dos espíritos, uma livre autonomia de vontade, com a condição desta ser coordenada em harmonia com a Lei, em função Dele. Mas, este poder estava nas mãos deles que, sendo livres, podiam dirigi-lo mesmo em direção errada, contra a ordem, contra a Lei, contra o próprio Deus. Bastava aquele poder, ser canalizado pela vontade livre deles, para fora do caminho justo, e ocorreria a queda.

Foi justamente este o fato novo que aconteceu. Pelo uso errado de sua liberdade e um excesso de expansão do eu, por um egocentrismo exagerado e sobretudo invertido, ou seja, não centrífugo, isto é, que partindo de si mesmo trabalha a favor de todo o organismo, como deve ocorrer com todas as células sãs e disciplinadas, mas centrípeto, em função do próprio eu, foi implantado no sistema o princípio anárquico do egoísmo em lugar do princípio orgânico da cooperação. Dessa forma, o estado de fusão unitária se subverteu no dissíduo separatista. Iniciou-se, por isso, no seio do sistema, todo de natureza afirmativa ou positiva, o arremesso de um impulso oposto, todo negativo. Não se tratou simplesmente de uma desordem qualquer, que semeasse o caos no seio da ordem. Dada a natureza do impulso de onde nascera, essa desordem assumiu uma direção precisa e significou exatamente o emborcamento do Sistema num estado antagônico ao anterior: o Anti-Sistema.

Com efeito, o nosso atual universo é baseado no dualismo: Sistema e Anti-Sistema, e só assim podem ser encontradas e compreendidas as suas primeiras causas. Só assim podemos compreender por que, em nosso universo, tudo se baseia no contraste dos elementos, impulsos e conceitos opostos e complementares. Dessa forma nasceu este triste mundo, nossa triste herança e consequência da queda, mundo em que, em contraste com o bem reina o mal, com a alegria a dor, com a luz as trevas, com o conhecimento a ignorância, com o espírito a matéria; e apareceram todas as forças e conceitos ao negativo, o que não existia antes no Sistema, sendo agora qualidade exclusiva do Anti-Sistema. Por isso, se no fundo deste aparece o caos, não se trata — como já dissemos acima — de um caos desordenado, feito ao acaso, mas de uma desordem, justamente porque, com o Anti-Sistema, se chega ao pólo oposto da ordem, no qual esta se apresenta emborcada, em seu estado contrário. A lógica, implícita na perfeição originária do Sistema, permanece íntegra em qualquer transformação sua.

Continuemos a observar. Nem todos os espíritos se rebelaram, de modo que a desordem não foi geral, ou seja, não abrangeu toda a terceira esfera ou aspecto da Divindade, aqui chamada o Filho. Assim, nem todo o Sistema se transformou em Anti-Sistema. Uma parte do Sistema permaneceu íntegra em sua perfeição, enquanto na outra parte, rebelde, a ordem se desfez na desordem. Naquele momento tremendo, a unidade se partiu em dois, e ocorreu a grande cisão de que nasceu o nosso universo corrompido, no qual vivemos justamente nesse estado de cisão, ou seja, separados da alegria, na dor; da luz, nas trevas; do espírito, na matéria, numa palavra, em tudo invertidos no negativo, como é lógico ocorrer no seio do Anti-Sistema. Então, todos os que tinham querido mandar, em vez de obedecer, caíram, de um estado de límpida visão, num universo de ilusões; todos os que tinham querido dilatar demais as devidas dimensões do próprio eu, permaneceram aprisionados nas restritas individuações da forma e, da ilimitada liberdade do espírito, ficaram constrangidos à escravidão das necessidades da matéria, no cárcere do próprio restrito egoísmo.

Dessa maneira, enquanto uma parte caiu, outra parte dos espíritos permaneceu intacta, em sua perfeição, no Sistema. Mas assim o Tudo-Uno-Deus resultou como que partido em dois; uma parte continuou na perfeição do Absoluto e a outra foi formar a estrutura material e espiritual de nosso universo. Devemos, entretanto, compreender bem, não representar este a verdadeira criação, como se crê, mas uma contrafação, uma inversão sua, um seu verdadeiro estado patológico, embora transitório e curável. Em outros termos, o nosso Universo não é a criação, mas uma sua doença, que lentamente se vai curando.

            

 

Continuemos pormenorizando a visão do fenômeno. Que ocorreu na esfera? Antes de tudo isso ocorrer, podíamos imaginá-la toda branca, feita apenas de luz, de valores positivos. Agora, uma parte dela começou a fazer-se, e cada vez mais se tornou negra, sombra, de valor negativo. Começou um processo de desfazimento e de descida, de inversão de todas as qualidades do Sistema nas qualidades opostas. Este processo chama-se involução, explicando-se assim como nasceu a matéria e porque o nosso universo assumiu uma forma material. Explica-se também como, chegados ao fundo do caminho da descida involutiva, tenha podido nascer e desenvolver-se o processo inverso, em que estamos situados e se chama evolução. Só dessa forma são coordenados todos os fenômenos do universo num único telefinalismo; compreende-se porque nascem os planetas e a vida sobre eles, descobrindo-se o fio espiritual que liga todas as formas de vida num único caminho ascensional dirigido para Deus. Sem este conceito da queda do Sistema, mostrando-nos que agora vivemos num Anti-Sistema, o qual não pode ser atribuído a Deus, tudo permanece desconexo e incompreensível.

Há o fato positivo de não se poder dar a Deus, de maneira nenhuma a paternidade de um universo, que demonstra ser o contrário da perfeição. Não se pode admitir de modo algum ser a obra de Deus apenas uma afanosa busca fatigante de uma remotíssima perfeição, através de infinitas tentativas. O nosso Universo, dividido no dualismo, em que cada ponto se fracionou em dois termos contrários que lutam para sobrepor-se, é um trabalho tão sobrecarregado de males, dores e imperfeições, tal como existe hoje, só pode ser considerado como um estado patológico de decadência. A quem o atribuiremos pois? Não há dúvida de que a esses efeitos, temos de atribuir uma causa. Como no todo não há outros termos e não podemos atribuir ao Criador a derrocada, só nos resta atribuí-la à criatura. Não podendo admitir, de forma alguma, que a causa de tamanha ruína tenha sido diretamente de Deus — acreditar nisso seria tirar Dele os atributos da Divindade — temos de admitir ser outra a causa de tudo isso, e tenha chegado depois. Não se pode sair do dilema: ou atribuir esta obra a Deus, e Deus não é Deus; ou, então, atribuí-la a outra causa; mas, em vista de no todo só existir Deus e a Sua criatura, só nos resta atribuir essa obra à Sua criatura. Estes conceitos demonstrativos são de tal evidência, que aparecem diretamente na visão, antes de submetê-los ao controle racional.

Assim esta visão se nos abre diante dos olhos, como aquele gigantesco drama, ou seja a queda dos anjos. Não foi uma queda em sentido espacial, mas demolição de valores, inversão de qualidades, descida de dimensões, ou contração de tudo isto, através de uma progressiva inversão de valores positivos e originários, até estarem todos transformados em sentido negativo. Esta queda significa transformar gradativamente todo o Sistema em Anti-Sistema. A descida foi gradual e se prolongou até atingir a profundidade do abismo, representada pela completa inversão de valores, ponto em que o Sistema, com todas a suas qualidades, resultou completamente invertido no Anti-Sistema, com as qualidades opostas. Nesse trajeto, a luz se foi ofuscando até se tornar treva completa, o conhecimento se tornar ignorância, a liberdade do espírito se tornar escravidão na matéria, a felicidade se tornar em dor, a vida se transformar em morte, o bem em mal, a ordem orgânica do Sistema até sua completa inversão no pólo oposto do ser, no fundo da descida, no completo caos do Anti-Sistema. 

 

Mas, se tudo parasse nesse ponto, a queda seria definitiva e a obra de Deus, aquela obra perfeita da primeira e verdadeira criação, estaria definitivamente falida, pela vontade apenas de algumas criaturas rebeldes. Ora, é absurdo, num sistema perfeito, fosse dado pelo próprio Criador tanto poder. Ele, como Onisciente, devia saber tudo de antemão. Só por erro pode um artesão, não conhecendo bem o trabalho que está executando, fazer uma obra que o destrua. Mas, ao contrário, já dissemos ser a obra de Deus tão perfeita, que contém em si, desde o início, todos os elementos de recuperação, o remédio para seu auto tratamento. Isto se explica com o fato de que os espíritos decaídos continuaram a ser centelhas de Deus e ofuscaram, mas não destruíram, a sua natureza divina. É neste sentido que os homens também, em sua íntima natureza espiritual, derivada daquelas remotas origens, podem ser chamados deuses. Em outros termos, no Sistema corrompido em Anti-Sistema, através desses seres que o constituem, sem terem perdido as suas qualidades originárias de espíritos filhos de Deus (3º momento de Trindade), continua presente a Divindade, impedindo o Anti-Sistema da destruição completa. Trata-se de uma presença viva e operante. Eis onde se encontra o remédio para o auto tratamento. É essa presença de Deus que representa e torna possível a salvação. Deus continua centro do Sistema; o Anti-Sistema, por sua natureza negativa, pôs-se a girar em torno do pólo oposto à Divindade, um pseudo-centro, negativo, mas Deus continua representando seu verdadeiro centro, que só pode ser um: o positivo. E não podia haver outro caminho de salvação para o Anti-Sistema. Foi dessa possibilidade que se derivou e só assim podemos explicar como tenha nascido, exista e seja concebível na Terra a idéia de redenção. I

Isto, entretanto, não significa que todo o Sistema tenha se desmoronado. No dualismo derivado da queda, a Divindade, mesmo permanecendo una, transformou-se, também, em novo aspecto. Temos o aspecto de Deus transcendente, ao qual se subordinou a parte incorrupta do Sistema, onde permaneceram os espíritos obedientes, na ordem da Lei; e temos o outro aspecto novo, de Deus imanente, que acompanhou o Sistema em toda a sua queda, permanecendo, como poder saneador de todos os seus males e diretriz do caminho evolutivo.

A isto tudo devemos a capacidade de recuperação do Anti-Sistema, que de outra forma não teria explicação. É assim que se torna possível, após o período da destruição ou período involutivo, o da reconstrução ou período evolutivo; só assim é possível esta inversão de rota, em sentido positivo, que o Anti-Sistema ignora, mas é impulsionado segundo uma direção e sob um conjunto de forças que ele não possui. Logicamente, deveria continuar até à plenitude de sua negação, isto é, até atingir o completo e definitivo aniquilamento do todo no nada, sua meta final. E assim, pois, que ocorre o prodígio pelo qual o Anti-Sistema, chegando ao extremo da descida, retoma o caminho destruindo a sua própria obra de destruição, e concomitantemente a si mesmo, começando a reconstruir em direção oposta à sua, que não é mais a do Anti-Sistema, mas a do Sistema. Eis a redenção, que consiste a evolução. E assim, no último momento, se opera a grande maravilha, isto é a vitória divina, ou seja, o Sistema vence o Anti-Sistema, reconstruindo-se sobre as suas ruínas. Quer isto dizer que as trevas se purificam até se tornarem luz, a ignorância até tornar-se conhecimento, a escravidão até achar a liberdade do espírito, a dor até achar a felicidade, a morte até encontrar a vida, o mal até tornar-se bem, o caos do Anti-Sistema até inverter-se para tornar-se a ordem do Sistema. Então, aquela queda, que pode parecer uma imperfeição do Sistema, representa, pelo contrário, a sua maior perfeição.

O homem percorre agora este caminho de subida, no qual há luta entre o elemento negativo, que deseja a destruição, e o elemento positivo, que busca a reconstrução. Daí os contrastes entre os princípios dominantes em cada uma das diferentes fases de reconstrução da Lei, correspondentes aos vários planos de evolução; daí a luta entre o nosso passado de animalidade e o anseio instintivo de um futuro melhor, entre a realidade feroz de nossa vida e a sede de bondade e justiça; daí a necessidade de ficarmos submetidos ao esforço de progredir, e a insaciabilidade que nos acicata para horizontes cada vez mais remotos, a sede de infinito na alma fechada num corpo, acorrentado às suas imprescindíveis necessidades materiais. Embora aqui se trate de problemas altos e remotíssimos em relação aos de nossa vida cotidiana, não podemos deixar de constatar como os primeiros explicam os segundos, e como a cada momento encontramos nestes a confirmação da verdade e das teorias que estamos desenvolvendo, as únicas que podemos aceitar como causas dos efeitos constitutivos de nosso mundo atual. Tudo isso continua perfeitamente lógico, porque, como dissemos, tratando-se de problemas remotíssimos, temos em nosso relativo não um pedaço destacado do todo, mas como um espelho, pequeno e opaco, onde, não obstante, se reflete o Absoluto, cuja imagem, apesar de tudo, ali podemos ver reproduzida.

 

Os Exilados da Capela