O Sistema |
Gênese e Estrutura do Universo - Tópicos Gerais |
Resumamos.
Os conceitos desenvolvem-se presos numa concatenação estritamente lógica.
Deus deve ser tudo. Se algo existir além Dele, que não esteja em função Dele
e que não dependa Dele, então Deus não é mais Deus. Esse algo poderia ser
Seu inimigo. E isto destruiria a Sua Onipotência. Nasceria daí um dualismo que
destruiria a Sua unidade. Se, pois, nada pode existir fora de Deus, Ele teve de criar
dentro de Si mesmo. Isto significa ser a criação derivada da própria substância
de Deus. Nós podemos criar coisas novas tomando uma substância fora de nós,
porque somos uma parte no todo. Mas se fôssemos tudo, teríamos de retirar a
substância de dentro de nós mesmos. Não
podemos admitir ser esta substância divina de natureza material, mas apenas
espiritual. Ora, a não ser que admitíssemos ser Deus de natureza material, o
que não poderíamos compreender e não saberíamos como o nosso universo,
constituído em grande parte de matéria, possa ter sido o resultado direto
desta primeira criação – a espiritual. Assim, uma parte de nosso universo, o
espírito, pode representar uma derivação direta da substância divina, mas não,
de certo, a outra que é matéria. Entre Deus e a matéria há um abismo. Como
preenchê-lo? Dá-se aqui uma mudança de natureza, só explicável com a
intervenção de um fato novo, ocorrido depois, e tão grave que chegou a mudar
as características da primeira criação originária-espiritual, nas de uma
segunda, que tem qualidades opostas. Espírito e matéria, com efeito, sempre
foram contrapostos um ao outro como dois extremos irreconciliáveis. E eis aqui
despontar novamente, como acima notamos, a necessidade lógica de um fato novo,
sem o qual não poderemos jamais justificar, diante de Deus, a constituição de
nosso universo, se o considerarmos um produto da primeira criação espiritual.
De fato, como poderia um universo, cindido em tal dualismo, ser a emanação
direta de um Deus, cuja primeira qualidade é justamente – e não pode deixar
de ser – a sua oposta, ou seja, a unidade? Eis
que a lógica impõe esse fato novo. Qual teria sido ele? Não pode ter sido o
acaso, excluído pela perfeição do Criador e de Sua obra. Não pode ter sido o
capricho de Deus, outro absurdo inaceitável. O fato novo devia representar a
continuação da concatenação lógica, sempre respeitada até agora. A teoria
da revolta e da queda representa a continuação desta lógica. O problema é
compreender todos os elementos que constituem o fenômeno. É o que procuraremos
fazer agora, nesta segunda parte, da análise e crítica. Comecemos
estabelecendo o valor desses elementos. Essa teoria da revolta e da queda
torna-se, muitas vezes, inaceitável porque não se conhecem aqueles elementos e
nasce uma confusão acerca do estado real das coisas. O problema, pois, para
responder a todas as objeções, consiste em explicar e esclarecer todos os
pontos de vista, as causas e o desenvolvimento do fenômeno. Mas tarde
voltaremos à argumentação e então responderemos mais extensamente a cada uma
das dificuldades que nos foram lançadas por outros ou por nós mesmos
procuradas. As objeções giram em torno dos temas da perfeição de Deus e de
Sua obra, que seriam motivo bastante para que fosse impossível ao sistema
desmoronar; dos temas da onisciência de Deus, mediante a qual Ele podia ter
impedido a ruína a qualquer momento. Surge, então, o problema da liberdade do
ser, de sua desobediência e o problema de seu conhecimento, acrescentando-se
que, sendo esta criatura perfeita, porque constituída de substância divina,
ela não podia errar, mesmo porque, conhecendo o futuro, devia conhecer as
conseqüências do seu erro. Esta segunda parte é dedicada à solução destes
problemas e de outros semelhantes. Começemos
pois observando as características do sistema, a fim de descobrir os
precedentes que podiam constituir o terreno sobre o qual teria podido
desenrolar-se a revolta. Da primeira criação espiritual nasceram muitos
elementos distintos. Assim, no seio do sistema eles adquiriram individuação própria,
de tipo egocêntrico, à semelhança do próprio modelo, Deus. Não foi criada a
substância espiritual que os constituía, porque esta era a substância
incriada de Deus. O que foi criado, como coisa nova, que dantes não existia,
foi a distribuição diferente dessa substância, ou seja, as suas individuações
particulares, isto é, as criaturas como seres distintos. Devemos a este fato,
como todos os seres criados, podermos dizer “eu”, e como tal existir. Ora,
vimos que se essa tão grande pulverização do todo podia ameaçar a sua
unidade, o perigo foi vencido com o equilíbrio do processo divisionista com o
processo oposto, em virtude do que a primeira criação resultou num sistema orgânico,
onde todos os elementos do sistema foram imediatamente enquadrados numa ordem e
disciplinados por uma lei. Deus tornou-se centro do sistema e permaneceu situado
no topo da hierarquia. Esse lugar lhe cabia de pleno direito. As criaturas, que
lhe deviam a vida, não podiam existir senão em função Dele, devendo-lhe
perfeita obediência. Estas eram, logicamente, as bases nas quais devia
apoiar-se a vida de todo o sistema, tanto quanto de cada elemento componente.
Estas eram as condições indispensáveis para que a criação não se
desfizesse em desordem, despedaçando-se no caos. Então,
impunham-se dois imperativos categóricos: primeiro, a presença de uma lei
emanada de Deus, reguladora da ordem; segundo, absoluta obediência a essa lei
por parte da criatura. Estas são as regras fundamentais indispensáveis para
dirigir qualquer unidade coletiva, seja molecular ou astronômica, seja fisiológica
ou social, unidade constituída em forma orgânica. Encontramo-nos logo diante
da necessidade lógica de uma obediência absoluta. A necessidade da colaboração
numa ordem perfeita era tanto maior, quanto o sistema era perfeito e devia
funcionar na perfeição. Que desastre, pois, resultaria à mínima desobediência
e desordem! Mas
seria possível uma desobediência? Começam aqui as objeções. Num sistema
perfeito, composto de elementos perfeitos, não é concebível uma possibilidade
de erro. O grau de perfeição que a ordem possui, devia torná-lo invulnerável,
pois estava isento de qualquer defeito. Como tal, o sistema devia permanecer
inviolável, acima de qualquer risco. Mas,
observemos com maior atenção. Se as criaturas, sobre as quais pesava o perigo
de uma desobediência, eram perfeitas porque constituídas de substância
divina, elas possuíam uma perfeição relativa. Eram perfeitas em relação à
sua posição na hierarquia, e a função que deviam executar no organismo. Em
si mesmas, em relação às suas posições, eram totalmente perfeitas, mas não
o eram diante da perfeição de Deus, a única absoluta. Esta é a conseqüência
lógica da estrutura hierárquica do sistema, o que dava lugar a uma subordinação
de posições no todo, tanto como função a executar, quanto como perfeição
ou como conhecimento. Com relação à sua posição e função a executar, as
criaturas possuíam em grau perfeito as qualidades necessárias e o completo
conhecimento. Mas não possuíam as qualidades do Ser Supremo, e diante de Deus
não sabiam tudo. Daí a necessidade da aceitação de algumas partes da Lei
apenas por obediência, nos pontos que seu conhecimento não atingia, como
acontece com as células dos tecidos musculares que obedecem às células
nervosas, embora todas juntas obedeçam ao “eu” central do ser. Era
nessa relatividade da perfeição como do conhecimento, – conseqüência
direta da estrutura hierárquica do sistema – que se aninhava a possibilidade
de erro. As criaturas podiam errar todas as vezes que, fora do campo que lhes
fora preestabelecido, se aventurassem nesse espaço desconhecido; todas as vezes
que houvessem procurado ultrapassar os limites impostos pela obediência à
ordem da Lei; todas as vezes que elas tivessem querido exagerar o próprio
egocentrismo, indo além dos limites de suas funções e de seu conhecimento
relativo. Dada
a estrutura orgânica do sistema, não podia ser concedido a cada elemento
componente o conhecimento absoluto, que só podia caber a Deus. O mesmo ocorre
em nosso organismo, no qual cada célula sabe e executa o seu trabalho e não
pode entrar no campo de trabalho e de conhecimento das outras células, de outra
natureza, adaptadas a funções diferentes. Cada uma, em perfeita obediência,
permanece no seu posto diante do “eu” central, que dirige todo o organismo.
Em cada sistema orgânico há necessidade absoluta de todos trabalharem de comum
acordo. Todos os elementos sabiam disso, conheciam o dever e a utilidade
imediata da obediência. Mas sabiam também que acima de cada um, acima de si,
na hierarquia, havia alguém que sabia mais, até chegar a Deus que sabia tudo.
E o egocentrismo em que se baseava a sua individualidade, é, por natureza sua,
expansionista e depois centralizador. Cada um teria podido permanecer no posto a
si designado, em sua perfeição e conhecimento relativos, limitados, mas
completos em relação à posição ocupada e ao trabalho a executar. As posições
mais altas eram mais ricas de poder, mas também de deveres, e todas igualmente
dignas e honrosas. Só assim, todos coordenados, pode existir um belo edifício,
onde os menores tiram proveito do poder e sabedoria dos maiores.
|
A hierarquia não constituía uma injustiça. Representava apenas uma distribuição de funções e de trabalho. Com relação à própria posição todos eram igualmente perfeitos, sábios e poderosos. Obedecendo a essa ordem, todos aproveitavam essa distribuição de trabalho, ajudando-se reciprocamente. Tudo podia assim funcionar com perfeição, se fossem respeitadas as regras estabelecidas. Podemos constatar quanto sejam verdadeiros estes princípios, porque ecoam em nosso mundo, onde tudo caminharia na perfeição se fossem aplicados. Mas a verdade é haver necessidade absoluta de respeitar a ordem estabelecida, pois ela é indispensável ao funcionamento de qualquer coletividade organizada. Por isso, havia uma lei do Sistema e como primeira condição, o dever de obedecer-lhe com perfeita disciplina Mas,
se de um lado, existiam elementos que impeliam à manutenção da ordem, de
outro lado havia elementos que impeliam em direção contrária. Se havia de um
lado, para o ser, uma zona de conhecimento completo com relação à própria
posição na hierarquia e à função a executar, além dessa zona, havia para
cada um, também uma zona que em relação a eles era de ignorância, onde a
criatura não podia penetrar, por incompetência, falta de conhecimento e aí
era possível o erro. A obediência do ser fazia parte da disciplina
compreendida no Sistema de ordem, na qual estava construído todo o organismo do
Tudo-Uno-Deus. O ser possuía a sua zona de domínio próprio. Estava assinalado
o limite além do qual não podia passar. Além dele estava a zona tabu,
proibida, que, por obediência, devia ser respeitada. Isso tudo não constituía
uma imposição caprichosa ou irracional do Chefe, mas era uma conseqüência lógica
e necessária da estrutura do Sistema; não era uma prisão ou escravidão do
ser, pois este permaneceu tão livre, até lhe ser possível desobedecer: era
apenas uma medida de defesa para sua própria vantagem. Entretanto,
permanecia sempre diante dos olhos das criaturas essa zona inexplorada, na qual,
em verdade, não se deveria entrar, mas que, de fato, escapava ao seu domínio não
se sabendo o seu conteúdo. Podia representar uma zona de domínio ainda maior e
uma vantagem a conquistar. Esse impulso de autocrescimento, que impelia a
explorar o desconhecido para ampliar o próprio domínio, derivava da própria
natureza do ser, criado à imagem e semelhança de Deus, como individuação
egocêntrica, e portanto tendente ao expansionismo. E era esse o impulso
fundamental do ser. Entre
esses impulsos contrários, a criatura estava perfeitamente livre apenas
cabendo-lhe a escolha. Tendo-a criado de sua própria substância, Deus lhe
havia transmitido as mesmas qualidades que lhe eram próprias, e em primeiro
lugar a liberdade. Essa também foi uma condição lógica e necessária na
construção do Sistema. Baseava-se esta na ordem e na disciplina, mas numa
disciplina espontânea de seres livres e convictos, e não naquela escravidão
forçada ou inconsciente de autômatos. Sendo livre a criatura, a obediência
devia ser o resultado de uma escolha livre, que concluísse numa adesão espontânea
à ordem da Lei, expressão da vontade de Deus. Sendo livre o ser, ele devia
obedecer espontaneamente, mas podia também não obedecer. Ninguém o podia
impedir. Permanecia tudo em poder da livre aceitação da criatura. Tratava-se
de uma verdadeira prova de verificação, de modo a só poderem vir a participar
definitivamente do Sistema os seres que a tivessem superado. Os elementos que não
tivessem sabido superar o exame, deveriam aprender a lição de forma mais dura
e forçada, para atingir o estado perfeito em que tinham sido criados e em que
teriam podido permanecer, se tivessem obedecido. Tratava-se como de um segundo
curso, mais lento e cansativo, para os mais duros e rebeldes, a fim de os trazer
ao porto de salvação. Condições necessárias, dados os elementos em jogo,
como vimos. Doutra forma, como teria podido a bondade de Deus obrigar todos a
salvar-se, sem violar a liberdade individual? Este segundo curso ou queda, não
foi portanto, um erro, por defeito, mas uma possibilidade prevista, deixando à
liberdade da criatura o pleno direito de escolha. Esse respeito à liberdade da
criatura, Deus a tem, porque a vê em Sua própria natureza, e foi elevada a um
grau tão alto, que Deus respeita essa liberdade até mesmo no rebelde que
quisesse permanecer para sempre rebelde. Só por último destruindo-lhe a
individualidade com a perda da substância que a constitui. Somente voltando a
substância a Deus, é possível a eliminação definitiva do eterno rebelde,
sem violar o princípio de liberdade. |
Estamos
no momento decisivo. Vimos os impulsos que estavam em ação. O ser estava no
meio, a fim de realizar sua livre escolha. Qual das duas forças contrárias
teria vencido, tomando a supremacia? O conflito está no seu auge e o ser
envolve-se num turbilhão. Os
seres foram criados do tipo “eu sou”, menores mas do mesmo modelo de Deus.
No centro de cada um domina o egocentrismo. No espírito de disciplina, na
consciência da Lei, na obediência a Deus, o ser devia achar a força para
resistir ao impulso expansionista do próprio eu. Na livre aceitação do
limite, o ser devia achar o freio que o mantivesse em seu lugar. Ele devia
reconhecer, espontaneamente, que era menor diante do Chefe, colocar-se na sua
posição devida à escala hierárquica, subordinando-se como menor ao maior,
pois isto é indispensável a uma coletividade orgânica. Eles conheciam esse
seu dever, viam que a disciplina era necessária para o bom funcionamento do
todo, conheciam a lei que ordenava obediência e sabiam que essa Lei exprimia o
pensamento e a vontade de Deus. Mas
havia mais. Os seres sabiam que esse mesmo “eu” que ansiava expandir-se,
como existência individual autônoma, fora um dom de Deus. Esse dom, de existir
como “eu” distinto independente, fora-lhes dado gratuitamente por Deus, por
um ato de Amor. Antes da criação existiam como substância, mas desta ainda não
havia nascido a sua individualidade, que agora os constituía, tornando-as
criaturas existentes como tais. Para gerá-los, Deus os havia tirado de um
estado em que eles, como indivíduos, não existiam, constituindo-os com a própria
substância. Para poder fazer isto, fora necessário subdividir-se em tantos
“eu” menores, por ato de Amor; a Divindade quisera como que despedaçar-se
em tantos infinitos fragmentos, aos quais, por um ato de altruísmo, comunicava
a sua existência, o próprio existir. Amor infinito. Nascidos do Amor e do
sacrifício, primeiros elementos da criação, e por isso também primeiros
elementos da redenção (Cristo), o qual reconstrói o que estava destruído,
esses infinitos seres em que a Divindade se havia pulverizado, tinham o dever
sagrado de obedecer, como dívida de gratidão. Mas,
se num primeiro momento, o Tudo-Uno-Deus se havia como que dividido em tantos
elementos, num segundo tempo, para não se dispersar, os havia retomado em
unidade, reconstituindo-se em forma orgânica, na ordem de um Sistema do qual
aqueles elementos constituíam o que, em nosso organismo, são as células.
Feito isto, era necessário que eles se mantivessem aderentes à ordem
estabelecida, em perfeita obediência à Lei. Da criação nascera u'a máquina
perfeita. Mas tudo precisava ficar em seu lugar. Tudo
isso pode justificar a agravar a culpabilidade, mas não suprime a possibilidade
da desordem, não eliminava os impulsos que constituíam as tentações,
instigando-os ao abuso. Sem dúvida, além do limite imposto pela lei, havia um
conhecimento e um poder maior. A criatura não os possuía. Por que não
conquistar, também, tudo isso? Não eram livres os seres? Por que não
experimentar? O eu, de acordo com sua natureza, fazia pressão internamente, na
direção expansionista. Eis a tentação, o impulso que devia traí-los: uma
exageração do eu. Isto foi chamado de orgulho. Era a natureza do seu “eu”
que os havia de trair. Mas
os seres não sabiam o que havia além do limite. Aqui residia o perigo. E era
justamente esse desconhecido que mais os tentava. Ele estava além de seu
conhecimento. Podia ser também uma grande conquista, e por que perdê-la? É
verdade ter Deus, com Sua Lei, traçado o caminho da obediência. Mas Deus teria
podido fazê-lo para impedir-lhes esta conquista, reservando-o só para Si. O
homem continua hoje também a fazer raciocínios semelhantes, e ninguém se
pergunta de qual modelo tenha nascido essa sua forma mental. Assim, não sabendo
os seres o que havia além daquele limite, fizeram uma suposição que não foi
verdadeira. Foram punidos pela desilusão e pela ruína que se lhes seguiu.
Dessa forma, colocaram-se fora da ordem, fora do Sistema, do qual se acharam
automaticamente expulsos. A ruína não foi o Sistema, pois como obra perfeita
de Deus, este não podia arruinar-se, mas foram eles que se precipitaram no
Anti-Sistema, no qual tudo se emborcou. Assim caíram os elementos rebeldes, mas
não a obra de Deus, que permaneceu inviolável. Não será este o significado
profundo, oculto na simbólica narração da Bíblia, de Adão e Eva tentados
pela serpente, que já era anjo rebelde e decaído, a fim de comerem o fruto
proibido, e depois expulsos por sua desobediência do paraíso terrestre? Os
seres rebeldes enganaram-se quanto ao resultado de sua revolta, mas sabiam que
era uma revolta contra a ordem. Seu erro e culpa foi de querer substituir a
ordem, chefiada por Deus, por outra ordem chefiada ao invés, pela criatura. O
movimento assume exatamente a forma de inversão. Explica-se dessa maneira o
emborcamento de todos os valores que ocorreu no Anti-Sistema. Trata-se,
portanto, de erro culposo, cometido, abusando da liberdade concedida por Deus. A
reação que se seguiu, não foi apenas o último elo de uma concatenação lógica,
de um exato desenvolvimento de forças, como efeito proporcionado à causa, mas
também um fato merecido, segundo a justiça de Deus. A
culpa dos seres desobedientes foi querer possuir uma utilidade ainda maior do
que derivava do manter-se disciplinados na ordem. Por isso, foram lançados
fora. Como vemos, tratou-se de verdadeira expulsão do paraíso. O Anti-Sistema
foi o produto de uma expulsão do Sistema, e por isso continuará
desenvolvendo-se até agora a concatenação lógica, acompanhando o processo da
queda e do reerguer-se, até ao fim, até à recuperação de tudo, restituído
ao estado de perfeição originária. Pela
Divindade onisciente e previdente, o Sistema era munido de impulsos inibitórios
ou freios contra o erro. Mas tudo isso, para não atentar contra a liberdade do
ser, foi deixado em seu poder, à sua livre escolha; conforme o resultado, alcançado
em perfeita liberdade, ficaria decidido, como após um exame, quem poderia ou não
continuar pertencendo ao Sistema. Também isso era lógico. Era necessário ter
aceito livremente uma ordem, à qual ninguém poderia obedecer à força. Com a
sua obediência o ser devia dar provas de que aderira plenamente, de que quisera
empenhar-se na manutenção da ordem. Doutra forma o sistema teria sido um
amontoado de escravos, com a revolta ocultada em seu íntimo. A aceitação,
demonstrada com a obediência, era a resposta lógica e necessária por parte do
ser, expressando também o pensamento deste, resposta que Deus tinha o direito
de exigir de um ser livre de aceitar ou não aceitar. Ora,
a resposta não foi igual para todos os seres. Uma parte ficou do lado da ordem,
no Sistema, e outra parte lançou-se à desordem e, com isto, para fora do
Sistema, rompendo as filas da disciplina. Esta parte, acreditando conquistar
sabedoria e poderes, ao ultrapassar os limites da Lei, acabou achando-se perdida
fora da Lei. Os primeiros escolheram o impulso centrípeto, unitário,
dirigindo-se para Deus; os segundos escolheram o impulso contrário, centrífugo,
tendo como centro o seu egocentrismo, para expansão deste contra Deus. Então
partiu-se em dois o Sistema: em Sistema e Anti-Sistema, dando origem ao
dualismo. Mas veremos agora que, ao invés de dizer: o Sistema se dividiu –
implicando a idéia de um estrago – é mais exato dizer: o Sistema permaneceu
perfeitamente íntegro como era, de estrutura inviolável; enquanto o
Anti-Sistema foi produto da expulsão feita dos seus elementos rebeldes. Uma
vez iniciado este movimento, de afastamento, a desintegração da parte
corrompida, expulsa do Sistema, continuou rápida e automaticamente, à maneira
de uma desintegração atômica ou em cadeia. E tudo, como vimos, precipitou-se
do estado de puro pensamento no estado de energia e, finalmente, no de matéria.
Nas galáxias, na qual da energia nasce a matéria, está o mais profundo
inferno do ser, tendo atingido o máximo da descida involutiva, e daí começa o
estafante caminho da subida para Deus. |
Com
estes esclarecimentos, não terminaram as dúvidas e objeções. Oferecendo uma
visão mais pormenorizada, respondemos a muitas delas. Para responder a outras
continuemos a observar. Objetam:
mas Deus, sendo onipotente, não podia impedir a queda e, com isso, todas as
dolorosas conseqüências resultantes? Em geral, fazemos da onipotência uma idéia
de arbítrio, de capricho que pode tudo, mesmo contra a lógica e a ordem da
Lei. Nós mesmos, quando invocamos a liberdade, procuramos “obedecer” à lei
escrita em nossos instintos. A onipotência de Deus não pode ir contra a lógica
e a ordem da Sua Lei, porque se fosse contra ela, iria contra Si mesmo. Então a
nós, filhos da revolta, pode parecer que Deus não seja onipotente. Deus
não podia impedir a queda sem violar o princípio da liberdade. Tinha construído
um Sistema de ordem, em que cada impulso tinha uma função. A perfeição não
pode ser senão determinística. Sendo perfeito o Sistema criado por Deus, ele
se nos apresenta com as características de fatalidade. Num sistema perfeito, não
se admitem oscilações de incerteza que derivam do livre arbítrio e da
possibilidade de escolha. Chegamos, assim, a um conceito de Deus que se avizinha
da abstração a que está chegando a ciência moderna: ou seja, um Deus inteligência
e pensamento, um Deus Lei, que dirige, de dentro, todos os fenômenos. Então,
para não contradizer a Si mesmo, o próprio Deus não podia sair da fatalidade,
da concatenação lógica, representada pelo desenvolvimento das forças
depositadas no Sistema, nem podia romper os liames que fatalmente prendem e
fazem o efeito proporcional à causa. Cada
elemento ocupava no Sistema o seu devido lugar quanto a conhecimento e poder. A
onisciência e a onipotência só podiam pertencer ao Chefe, elemento máximo e
centro do Sistema. Cada ser havia recebido todo o necessário, de acordo com a
sua posição e função. Além do mais, se não quisermos cair no absurdo,
temos de admitir Deus como justo. Ora, não se pode negar o fato concreto, por
todos conhecido, da presença do mal e da dor em nosso mundo e o fato do quanto
custa emergir deles com a evolução. Se Deus é justo, tudo isso deve ser
merecido. Termos sido criados, sem permissão nossa, para sermos condenados a
achar a felicidade através de um caminho tão duro, sem termos merecido essa
condenação, não é obra de justiça que possa ser atribuída a Deus. Com
a criação, estabeleceu-se um pacto, como um contrato de consentimento
bilateral, entre a criatura e Deus. A esta Deus dera uma existência individual
própria. Antes da criação, aquela criatura não era criatura, mas apenas uma
substância não individuada como criatura. A lógica do organismo nascido pela
criação impunha a criatura se coordenar no seio daquele organismo, com todos
os elementos componentes, sem o que o Sistema não podia existir nem o organismo
funcionar. Era indispensável cada um permanecer no lugar do seu dever. Como
Deus aí executava a sua função suprema de direção, assim deviam estar todos
os elementos componentes do Sistema, em suas posições subordinadas. Era lógico
e fatal, diante de tudo isso, que a parte que rompera o pacto fosse expulsa do
Sistema, pelo fato de numa ordem perfeita, não poder subsistir a mínima
desordem. Isto
ocorreu de parte da criatura e o remédio foi possível, isolando a parte doente
da parte sã, para esta não adoecer e tudo arruinar. Permaneceu de pé a parte
sã, intacta; e a isto se deve que a parte enferma poderá curar-se, reentrando,
após a cura, no Sistema. Mas imagine-se o que ocorreria se a desordem, ao invés,
tivesse partido de Deus. Dir-se-á ser isto impossível. E no entanto é o que
se pretende, quando se diz que Deus não deveria ter permitido a queda. Ora, na
ordem da Lei, dados os princípios nos quais se baseava, isso teria sido uma
revolução e uma tirania. Então Deus mesmo teria forçado o Sistema a uma
revolução não periférica, centrífuga (revolta do povo), mas centrípeta
(abuso do tirano) – uma revolução ainda pior do que a realizada pelas
criaturas. Isto porque, partindo de Deus, teria feito desmoronar-se não apenas
uma parte do Sistema, que se teria podido expelir dele, mas teria feito
desmoronar todo o Sistema. Enquanto no primeiro caso tudo é remediável através
de Deus e pelo Sistema, permanecidos íntegros, no segundo caso a queda teria
sido irremediável, porque, tendo a rebelião atingido o vértice, teria
arrasado o próprio Deus e tudo teria desmoronado irremediavelmente com Ele, sem
outra possibilidade de recuperação. Aí
está, pois, o que ocorreu na revolta e na queda. Dessa forma, indiretamente
respondemos a muitas dificuldades que apareciam contra a teoria da queda. Então,
as posições hierárquicas se emborcaram, e quem estava mais no alto caiu mais
em baixo, ou seja, quem estava mais próximo de Deus foi projetado mais longe até
o maior de todos os rebeldes, que devia estar mais próximo de Deus e se tornou
o chefe do Anti-Sistema. Este último, porquanto entre os maiores, era sempre
menor que Deus, e necessariamente maior deve ter ficado também na queda. Isto
significa existir entre os dois chefes, Deus – do Sistema, e Lúcifer – do
Anti-Sistema, uma diferença de grau em tudo, significando ser o bem mais forte
do que o mal, e, na luta entre os dois, a vitória final só pode ser do
primeiro. Assim,
o Sistema permaneceu de pé, representando a possibilidade de recuperação e o
ponto de apoio da redenção, que de outra forma seria
uma
palavra sem explicação e um esforço sem meta. E o Sistema ficou em pé, como
o mais forte, como era indispensável para poder reabsorver, em seu seio, o
Anti-Sistema. Um desmoronamento absoluto, ao invés de desmoronamento parcial, não
teria oferecido nenhuma possibilidade de recuperação. Pudermos
ver, desta maneira, neste capítulo – vencendo todas as objeções que pudemos
encontrar a respeito deste assunto – que Deus fez tudo otimamente e não teria
podido fazer melhor. Quanto mais observamos, mais devemos convencer-nos de ser
perfeita a obra de Deus. |
Os Exilados da Capela