Por Mica-Chan
Ele observou a garota lavando os pratos, e pensou
no quanto era irracional os seus sentimentos.
A verdade, é que sentia-se perdido em
um turbilhão de emoções e não fazia a menor
idéia de
como livrar-se dessa situação.
Percebendo que estava sendo observada, ela interrompeu
o trabalho por um instante e virou-se.
Foi com surpresa que deparou-se com os olhos
brilhantes e cinzentos de Yue.
Nos últimos meses, o guardião vinha
lhe visitando com mais freqüência. A princípio estranhara
um pouco, mas acabara se acostumando com sua
figura alta e imponente. Sem se dar conta,
acabaram ficando mais próximos e agora
conviviam muito mais do que no período que sucedeu
a captura de todas as cartas.
Sorriu como sempre à figura séria
do amigo. Era tão raro vê-lo sorrir, mas ela não entendia
o
porquê. O sorriso de Yue era maravilhoso,
calmo e sincero.
"Yue! O que faz aí parado?"
Ele demorou um pouco para responder, como se estudasse
o efeito que sua palavras
provocariam.
"Nada realmente. Apenas a olhava."
"Não sabia que estava aqui."
"Seu irmão e Yukito vão estudar."
"Ele não me avisou... se bem que ele nunca me avisa de nada!"
O guardião sorriu em seu íntimo.
A inocência de Sakura era algo encantador. Não se admirava
do amor quase reverencial que Tomoyo lhe dedicava.
Era algo que a garota inspirava nas
pessoas, mesmo inconsciente.
"Quer ajuda?"
Ela olhou para a louça que ainda restava
na pia e se deu conta do quanto estava cansada. Mas
não seria certo pedir a Yue para ajudá-la.
Esta era a sua obrigação e...além do mais, seu irmão
iria exigir a presença de Yukito logo.
"Não, não é preciso. Estou quase acabando."
"Como quiser."
Ela ainda o fitou por alguns instantes antes de
voltar para o trabalho. Nunca havia parado para
pensar na beleza do guardião. Ele era
terrivelmente belo sob aquela aura prateada. Os cabelos
longos e brilhantes eram fascinantes, assim como
os olhos, geralmente duros e inflexíveis, mas
que sabiam tornar-se quentes e afáveis,
como agora.
Seu irmão era uma pessoa de sorte, com
certeza. E ela...bem, ela se considerava uma pessoa de
sorte também, apesar dos pesares. Não
fora fácil quando Shaoran tivera que se afastar para
aprimorar sua magia. Os meses que o rapaz mantinha-se
recluso em treinamento eram como anos
para ela. No início, chorara dia e noite,
todo o seu ser sofrendo com a ausência do rapaz que
amava. Mas com o passar dos meses, acostumara-se
ao vazio e a dor que tornaram-se seus
companheiros inseparáveis.
Não sabia dizer quantas foram as vezes
que banhara em lágrimas Kero e Yue. E tampouco sabia
se teria resistido se não fosse pela presença
dos dois.
Talvez essa fosse a razão para Yue estar
tão perto ultimamente. Apesar dela insistir na relação
de amizade entre eles, o guardião jamais
deixara de lado a sua obrigação de protegê-la, fosse
de
algum perigo externo, ou de seus próprios
sentimentos.
Sentia-se grata pelo carinho dos dois. Kero, com
seu jeito mais expansivo, e Yue com seu
cuidado austero, mas sincero. Sabia que poderia
contar com os dois para o que fosse
necessário. E Shaoran... bem, o rapaz
voltaria algum dia, assim que estivesse pronto para isso.
O guardião observava a garota, em silêncio.
Ela estava perdida em pensamentos, e ele era capaz
de jurar que sabia quem era o dono da atenção
de Sakura. Jamais duvidara do amor do
descendente de Clow por sua dona, assim como
sabia que este afastamento era necessário para
o crescimento do rapaz, mas doía em sua
alma vê-la tão angustiada.
Era impressionante o amadurecimento de Sakura.
Em quase nada lembrava a menina de dez anos
que acidentalmente abrira o lacre do livro. Ela
crescera em todos os aspectos possíveis. Ainda
podia vê-la, pequenina, sobre um banquinho
para alcançar o balcão. E agora, muito mais alta –
mas ainda bem menor do que ele – fazia tudo com
graça e delicadeza.
A verdade é que Sakura fora uma criança
linda e estava se tornando uma moça ainda mais bela.
E conservara a inocência e pureza de antes,
apesar do seu nível de magia ter evoluído de forma
inacreditável. E seu caráter também
amadurecera, tornado-a mais forte e persistente.
Não podia deixar de sentir seu coração
ser inundado com um sentimento de total gozo e prazer
quando a via. O seu corpo vibrava e sua pele
ardia ao simples toque da garota, e isso o deixava
completamente confuso. Seu coração
era um caleidoscópio de emoções e não sabia
como lidar
com elas.
"Yukito?"
A voz de Touya o fez despertar de suas reflexões.
Virou-se e fitou os olhos escuros e sérios do
rapaz.
"O que faz aqui, Yue?"
"Não sei...exatamente."
Sentiu-se envergonhado. Era como se o rapaz pudesse
ler seus pensamento e perscrutar sua
alma. Gostaria de entender como ele poderia conhecê-lo
tão bem.
Touya desviou os olhos do guardião e os
voltou para a irmã. Sakura lavava os pratos,
inteiramente alheia aos sentimentos que reverberavam
a sua volta. Não sabia se isso o deixava
feliz, ou triste.
"Vamos subir, ou quer comer alguma coisa?"
"Não, vamos subir."
O rapaz lhe deu as costa e dirigiu-se para o quarto.
Era surpreendente que, mesmo após tanto
tempo, Touya ainda se sentisse tão incapaz
de demonstrar o que sentia. Havia momentos que ele
mostrava exatamente o que queria, mas em outros,
como agora, ele se fechava em uma concha
que nem mesmo Yue conseguia abrir.
Ele entrou no quarto logo após o rapaz.
Sempre se sentia estranho neste lugar, como se ele fosse
muito grande e desajeitado. E a presença
de Touya, impregnada em cada espaço do quarto, o
desconcertava. A verdade é que a intensidade
dos sentimentos do rapaz o deixava um pouco
desorientado. Queria saber como agir, mas o seu
próprio coração era um tornado incontrolável,
que o fazia exaurir-se de tanto analisar os próprios
sentimentos.
Touya pousou os olhos sobre o guardião,
que recostara-se na porta fechada de seu quarto. Ele
era tão fechado e ao mesmo tempo tão
transparente. Queria poder solucionar a dúvida que
pairava sobre o coração de Yue,
mas não se atreveria. Seria doloroso demais para ele.
O guardião aproximou-se do rapaz, tocando
com delicadeza a face angustiada. Os olhos, que
brilhavam com uma dor profunda, fecharam-se ao
contato com a pele fria e macia do guardião.
"O que houve, Touya?"
Deus, como queria que fosse fácil. Não
sentir seu corpo amolecer cada vez que ele o tocava, seu
coração sorrir cada vez que ele
o olhava.
Abriu os olhos e fitou os de Yue, muito próximos aos seus.
"Eu...eu poderia falar com o Yukito?"
Os olhos do guardião abriram-se de espanto. Pensara que ele o quisesse ali.
"Mas... você tem algo a dizer. Eu sinto isso."
O rapaz afastou-se do toque febril do guardião.
"Não quero falar sobre isso...não agora."
Yue sentiu o coração enternecer
diante da dor estampada nos olhos do rapaz. Ele sabia. Antes
do próprio Yue tomar consciência,
Touya já sabia. E agora ele não fazia idéia de que
atitude
tomar. Por que tudo tinha que estar tão
confuso dentro dele?
Afastou-se alguns passos, abrindo espaço
para suas asas surgirem e o cobrirem. Se ele queria
Yukito, que assim fosse.
A figura tranqüila de Yukito apareceu diante
do olhar atento de Touya. Era sempre interessante
observá-lo surgir do nada e sorrir confuso.
"Touya!"
O rapaz balançou levemente a cabeça,
desorientado. Há anos vinha dividindo sua existência
com Yue, mas acordar da mais completa escuridão
era sempre uma sensação estranha.
"Eu já deveria ter me acostumado a estes
vácuos, mas nunca deixo de me surpreender quando
me dou conta que eu sumi de novo."
"Yukito, o que você sabe do Yue?"
A pergunta repentina pegou o rapaz de surpresa. Qual o interesse de Touya em seu alter ego?
"Não muita coisa. Eu o sinto comigo, sei
que ele está aqui e às vezes seus pensamentos se
confundem com os meus, principalmente enquanto
durmo, mas ainda não consigo lembrar do que
faço quando ele assume o meu corpo. Não
sei realmente o que pensa ou o que quer. Por que?"
Touya ouvia a voz quente e agradável de
Yukito, mas não sentiu o tradicional aconchego que a
voz do amigo lhe proporcionava. A verdade é
que se sentia ameaçado e a simples idéia de
perder Yukito o deixava aterrorizado. Deveria
ter conversado com Yue, mas não tivera
coragem. Tudo o que via acontecendo ao seu redor
parecia dançar em sua mente, toldando seu
raciocínio. Na hora, a única coisa
que conseguira pensar foi que precisava ver o rosto sereno e
alegre do amigo. Poderia resolver mais tarde
seus problemas.
"Touya?"
Sentiu-se fraco diante da voz mansa e doce do
rapaz. Seu coração batia acelerado e uma
angústia gigantesca tomava conta de seu
ser, mas não conseguia pronunciar uma única palavra.
Queria gritar de forma que o mundo todo ouvisse,
mas nem o mais leve gemido escapava de
seus lábios.
Mais uma vez deu as costas a Yukito e aproximou-se
da janela. A noite estava mais calma do
que de costume. As luzes das casas vizinhas o
faziam pensar nas famílias reunidas para jantar,
felizes. Esse pensamento não o consolava.
Pensar em todos os outros sorrindo, amando,
divertindo-se, apenas o fazia entristecer-se
ainda mais. Por que era tão difícil?
A mão do amigo, pousada em seu ombro, o
obrigou a voltar-se e encará-lo. Ele era tão diferente
do guardião. Muito mais baixo e meigo,
e no entanto...
Yukito analisou com cuidado a face de Touya. Havia
algo de errado com o rapaz, isso era certo.
Touya dificilmente deixava suas emoções
transparecerem, mas agora tudo em seu corpo parecia
gritar por socorro. Cada gesto era feito com
extremo pesar, cada olhar com uma angústia
destruidora. Não sabia o que o estaria
afetando de tal forma, mas fosse o que fosse, o
machucava ver Touya tão infeliz.
"O que está acontecendo? Por que não fala para mim?"
O rapaz pensou muito antes de responder. Como expor o que sentia?
"Yukito, o que faria se eu me apaixonasse por outra pessoa?"
As palavras de Touya foram como um choque percorrendo
o corpo de Yukito. Ele não poderia
estar falando sério.
Sem pensar, ele se afastou do irmão de Sakura, os olhos refletindo todo o espanto que sentia.
Touya observou a reação de Yukito.
Podia compreender o choque do amigo, ele se sentiria da
mesma forma se fosse o outro quem lhe tivesse
perguntado tal coisa. Mas precisava começar de
algum lugar, e simplesmente não fazia
idéia de como expor o que se passava dentro de si.
"Eu...você...você...se apaixonou?"
Os olhos escuros de Touya fixos nos seus, não
lhe diziam nada. Tampouco o rapaz respondera
sua pergunta. Apenas ficara ali, como se esperasse
que falasse que não se importaria. Mas ele
se importava, e muito. Touya era sua vida. A
única razão dele existir. O único motivo pelo qual
sujeitava-se às constantes transformações
em Yue.
"O que...fará agora, Touya?"
O rapaz fechou os olhos por um instante. Conhecia
Yukito há muito tempo. Sentia-o como se
fosse uma parte de si, e a verdade é que
uma parte dele vivia no amigo. Perdê-lo seria como
apagar o brilho das estrelas ou o calor do sol.
Sabia o que sentia por ele, e no entanto a sua
recente descoberta o atemorizava mais do que
poderia supor.
Avançou alguns passos, de forma que ficasse
bem próximo de Yukito. Os olhos meigos ainda
retratavam o espanto e um certo temor. Ele tocou
com delicadeza o queixo de Yuki e o fitou por
alguns segundos. Não sabia como agir.
A impressão que tinha é de que haviam voltado no tempo
e tudo estava incerto como antes. Ele queria...não,
ele precisava fazer algo, mas não sabia o quê.
Podia sentir o leve tremor do rapaz. Yukito estava
no escuro, sem saber ao certo o que acontecia
a sua volta. E ele não pensou em explicar.
Não ainda.
Inclinou-se levemente e pousou os lábios
sobre os do amigo. Era uma sensação maravilhosa,
que acalentava seu espírito. E podia sentir
todas as emoções de Yukito lhe inundando em uma
torrente sem fim.
Pretendia dar-lhe um beijo suave e terno, mas
quando deu por si, apegara-se a Yukito como um
moribundo apega-se a vida. Precisava sentir o
calor do corpo do rapaz, a doçura de seus lábios,
a maciez do seu toque.
Como se pudesse sentir a angústia que se
apoderara do coração de Touya, Yukito correspondeu
ao beijo, entregando ao amigo todo o seu ser
e recebendo a paixão desenfreada que apossara-se
de Touya.
Quando o rapaz finalmente afastou-se, Yukito pôde
ver as lágrima que sentira deslizar de Touya
e rolarem por sua face.
"Eu te amo, Yukito. Jamais serei capaz de deixar de amá-lo."
O rapaz sorriu com ternura. Há muito haviam
esclarecido seus sentimentos, mas era tão raro ver
Touya pronunciá-los em voz alta. E nunca
havia feito com tamanho desespero.
"Você sabe dos meus sentimentos por você, Touya. Qual o seu medo?"
Era hora. Colocar em palavras o que se passava
em seu íntimo era quase tão sufocante quanto a
dúvida que o corroía.
"Yue."
"Yue? Yue é o seu medo?"
"Sim."
"Mas por quê? Você o salvou!"
"Eu não sei ao certo. Eu não sei o quanto ele influi em você, e nem como influi em mim."
Yukito tentou compreender as palavras do rapaz,
mas para ele parecia impossível pensar que
Touya temesse Yue, mesmo porque, Yue sempre estivera
com ele. A menos que fosse
exatamente esse o problema.
Como se algo acendesse em sua mente, Yukito finalmente
se deu conta do que vinha afligindo
Touya. O seu medo não era de Yue, mas
por ele. Desde que ele e Touya se conheceram, o rapaz
tivera consciência da existência
do guardião dentro dele. Enquanto seu relacionamento ia se
desenvolvendo, Touya via Yue por trás
de Yukito. Para ele, o guardião era apenas mais uma
parte do amigo, e como tal, aprendera a amar
da mesma forma. No entanto, quando abdicou de
seu dom pela vida do rapaz, Touya também
deixou de enxergar Yue e Yukito como uma única
pessoa.
Não havia dúvidas de que era mais
fácil para ele quando não precisava separar um do outro.
Agora, a sensação que tinha era
de que amava duas pessoas distintas, e isso o estava matando
aos poucos.
Mais uma vez Yukito aproximou-se de Touya, tentando
ler o que dizia a face do rapaz. Mas ele
fechara-se novamente, o rosto bonito transformando-se
em uma perfeita máscara.
"Você me perguntou o que eu sabia de Yue, mas... o que você sabe dele?"
Touya compreendeu onde Yukito queria chegar. E
talvez fosse realmente o momento de falar
tudo. Vinha postergando por anos, mas diante
do quadro que se apresentava diante dele, não
mais poderia esconder-se ou maquiar a verdade.
Suspirou profundamente antes de falar qualquer
coisa, e quando o fez, foi com o olhar distante,
como se temesse encarar o amigo.
"Eu sempre o conheci. Eu o via, adormecido dentro
de você, e estava tão acostumado a ver Yue
como estou a ver você. Eu não sabia
quem era ele, ou por que usava a sua forma, mas jamais o
temi. Quando ele finalmente despertou, foi que
me dei conta que você não tinha consciência que
não era humano. E então ele começou
a enfraquecer, e junto com ele, você. Yukito, eu fiquei
desesperado. Eu te amava como jamais amei alguém
antes ou depois, e a idéia de te perder era
insuportável. Eu sabia que precisava falar
com ele, mas por algum motivo que eu desconheço,
ele nunca se apresentava para mim. Quando finalmente
consegui encontrá-lo e transferir meus
poderes...foi a primeira vez que eu realmente
vi Yue. Você não estava lá. Nunca está quando
ele
aparece. Talvez por isto eu o tenha feito prometer
que não deixaria você desaparecer. Foi só ali
que me dei conta que você sem ele não
existe, mas ele não precisa de você e jamais precisará.
E
eu tive tanto medo que você não
voltasse para mim.
Quando acordei, já sem meus poderes, eu
o vi com outros olhos. Era apenas você, Yukito. Eu
sabia que Yue ainda estava ali, mas eu não
o enxergava mais. Isso não importava muito, pois eu
tinha você e isso era tudo o que eu precisava.
Mas então eu revi Yue. Eu mesmo não imaginava
a reação que eu teria. Foi como
se meu corpo todo se aquecesse e eu ficasse incapacitado de
pensar. De repente a verdade me assolou com fúria:
eu amava Yue com uma intensidade tão
esplendorosa como eu amo você.
Minha cabeça tornou-se um redemoinho. Enquanto
eu os via como um único ser, não sentia o
quanto era estranho amar os dois, mas quando
me vi tendo sentimentos iguais por seres distintos,
quase enlouqueci. E aos poucos Yue foi entrando
em minha vida, aparecendo para falar com
Sakura, conversando comigo, ou apenas ficando
em casa, com seu silêncio habitual.
É impossível deixar de amar alguém
a quem se vê constantemente. Eu simplesmente não pude,
entende? Eu me sentia confuso e perdido, mas
estava lidando bem com a situação, até que..."
"...você percebeu meus sentimentos por Sakura."
Touya voltou-se ao ouvir a voz do grave do guardião.
Não havia percebido que Yukito dera
lugar a Yue.
O guardião permanecia parado em meio ao
quarto. As asas abertas lhe dando uma aparência
mais feroz e, talvez por este motivo, ainda mais
bela.
Observou atentamente o semblante sério
de Touya. Compreendia os sentimentos do rapaz. Não
era fácil para ele se ver dividido entre
dois amores, mesmo sendo ambos o mesmo ser. E
quando percebera que seus sentimentos por Sakura
iam muito além da relação imposta pelas
cartas, naturalmente viu-se perdido e com medo.
Recolheu as asas e caminhou até o rapaz.
Ele estava frágil e machucado. Não gostava de ver
Touya sofrendo assim. O rapaz havia lhe dado
a vida, e depois disso dividiram muitos
momentos juntos.
A verdade é que ele estava tão atordoado
quanto Touya. Os anos que passara servindo e
protegendo Sakura, haviam feito seus sentimentos
em relação à garota crescerem de forma
extraordinária. A obediência inicial
transformara-se em dedicação, respeito e – por que não
admitir? – amor.
No entanto, seu coração insistia
em bater descompassado a cada vez que deparava-se com
Touya. O jeito sério e calado do rapaz
lhe tocavam a alma. Não sabia se o que sentia era apenas
um reflexo das emoções de Yukito,
mas, se assim fosse, por que ele também sentia-se gelar
quando estava frente a frente com o rapaz?
Como poderia repreender Touya por suas dúvidas,
se ele mesmo se via perdido em meio a
sentimentos tão conflitantes? Pelo menos
o rapaz amava as duas personalidades de um mesmo
ser, mas e ele? Ele tinha plena certeza do quanto
se importava com Sakura, e era incapaz de
resistir ao olhar intenso do irmão dela.
Sua situação era infinitamente pior.
Touya, acompanhando os movimentos do guardião
que se aproximava, tentou analisar os
sentimentos envolvidos de forma racional, mas
ao sentir a presença de Yue tão próxima,
percebeu que jamais conseguiria calcular que
atitude tomar. Acontecesse o que acontecesse,
alguém sofreria, e ele não estava
certo de ser capaz de abdicar de sua felicidade.
Quando Yue finalmente parou e encarou o rapaz,
o tempo pareceu congelar. Não havia nenhum
som, nenhum cenário. Eram apenas os dois,
lacrados em uma redoma, ouvindo apenas as batidas
ritmadas dos próprios corações.
"O que você pretende fazer?"
A voz do rapaz saiu baixa e rouca, como um gemido angustiado de sua alma.
"Eu não sei, Touya. É tudo novo demais para mim."
O leve aceno de concordância de Touya não
conseguia expressar o turbilhão de sensações que
passavam em seu peito. Queria agarrar-se ao guardião
e impedi-lo de abandoná-lo, mas como
sempre, o que saiu dos seus lábios foram
palavras bem diversas do que sentia.
"Você se importaria de me deixar sozinho
esta noite? Eu não vou conseguir estudar mesmo, e
preciso pensar em algumas coisas."
O guardião assentiu, mas antes de sair
envolveu o rapaz em um abraço. Podia sentir a pele
quente, a respiração ritmada em
sua nuca, provocando reações em seu corpo que ele não
saberia
colocar em palavras. Deslizou gentilmente sua
mão pelo cabelo sedoso de Touya, aspirando o
perfume que dele emanava. Era um aroma envolvente,
provocante. Fazia com que não quisesse
largá-lo. Se pudesse ficar assim para
sempre, apenas sentindo o corpo do rapaz junto ao seu,
apenas embalado pelo ritmo cadenciado de seus
corações.
Desceu suavemente a mão para a nuca de
Touya, massageando-a com extremo cuidado. Pôde
sentir a diferença no corpo do rapaz,
um misto de tensão e relaxamento.
Afastou-se do abraço, já sentindo
a falta do calor de Touya em seu corpo. A mão, ainda
repousando sobre a nuca macia, aproximou o rosto
do rapaz até o seu, e o beijou com carinho.
Não podia negar que era uma sensação
deliciosa. Poucas vezes se sentira tão vivo e tão ansioso
por algo.
Continuou a deslizar a mão, descendo da
nuca para as costas, a camisa fina não sendo suficiente
para impedir que sentisse o físico bem
trabalhado sob ela. Encostou novamente o corpo do
rapaz ao seu, abandonando os lábios de
Touya, para percorrer com os seus o pescoço bem
desenhado.
Touya não conseguia pensar ou reagir. Tudo
o que queria era corresponder ao pedido do corpo
de Yue, entregar-se de corpo e alma.
Foi com espanto que sentiu o guardião se agastar, os olhos claros o fitando muito sérios.
"Você disse que queria pensar. Eu vou embora."
O rapaz não teve tempo de protestar. O guardião já tinha saído.
Yue desceu as escadas tentando organizar seus
pensamentos, mas quanto mais tentava, mais
confuso ficava.
Quando alcançou a sala, encontrou sua dona
deitada no sofá. Estava tão calma e serena, que
sorriu involuntariamente diante da cena. Deveria
ir embora, mas a garota o atraía como um ímã.
Sentou-se diante dela, admirando a face relaxada.
O que estaria sonhando? O que realmente
passaria na cabeça da garota?
Como se pudesse sentir que estava sendo observada,
Sakura abriu os olhos e deparou-se com a
figura bonita do guardião.
"Yue! Ainda está aqui? Pensei que Yukito fosse estudar com o Touya."
"Aconteceram alguns imprevistos."
"E você vai passar a noite aqui?"
"Eu não sei. Você quer que eu fique?"
Sakura colocou-se de pé e se aproximou
do guardião. Ele era incrivelmente alto, mesmo
sentado. Mas a sua altura era apenas um complemento
de sua beleza.
Beleza. Novamente ela se via analisando o físico
do guardião. Como poderia ter ficado tantos
anos ao lado dele, e jamais ter se dado conta
do quanto ele era bonito? Aquela expressão
levemente melancólica, a pele clara e
o toque suave. Talvez por ter Shaoran ao seu lado, jamais
tenha parado para ver qualquer outro homem. E
de repente notar como Yue era atraente, a
desconcertou um pouco.
Mas o que ela estava dizendo? Aquele era Yue,
seu guardião e, mais, a pessoa que o irmão
amava. Como ela poderia sequer pensar nele de
outra forma que não a de um amigo? Que tipo
de mulher era ela?
"Sakura?"
"Ãh?"
"Você está aí parada, olhando para mim sem dizer nada. Aconteceu alguma coisa?"
"Ãh...não."
De repente ela se sentiu como uma criança
pega em uma travessura. Tentou desviar os olhos do
guardião, mas não conseguiu. Aqueles
olhos claros e brilhantes a hipnotizavam. Queria
perder-se no olhar quente e profundo de Yue.
O guardião sentiu o seu sangue agitando-se,
o coração pulsando mais rápido e, mesmo sem
notar, sua respiração ficou suspensa,
esperando alguma atitude da garota.
Sakura não estava pensando, pois se estivesse,
jamais teria feito o que fez. Mas seu corpo não
estava obedecendo sua mente. Ele era autônomo,
tomando suas próprias decisões, certas ou
erradas. Não foi ela quem tomou o rosto
do guardião entre as mãos, que aproximou sua cabeça
bem devagar, sem jamais deixar de fitar os olhos
claros, que pousou os lábios sobre a boca
macia de Yue. Ela jamais faria isso, mas seu
corpo pediu, e ela não teve forças para dizer não.
Ele se viu mergulhado no beijo calmo e doce da
garota. A surpresa inicial dando espaço para
um calor agradável que tomou conta do
seu corpo. Ela era tão delicada e gentil. E ele a amava;
um sentimento tão forte que não
sabia explicar.
Quando ela o soltou, ele ainda podia sentir nos
lábios a doçura de Sakura. Ele a queria tanto, e
jamais acreditara que iria tocá-la algum
dia.
"O que foi isto?"
A voz dela era baixa, carregada de emoção.
"Eu não sei."
Ele não precisava dizer nada. Sakura pôde
notar a entrega do guardião, o carinho com que a
beijou. Não havia dúvidas de que
Yue nutria por ela sentimentos que iam muito além da
amizade.
Ela acariciou com suavidade a face bonita de Yue.
Não podia negar que o guardião a atraía.
Com seu jeito sereno e sempre presente, ele havia
conquistado seu espaço no coração da jovem.
Mas ela estaria disposta a arriscar todo o seu
relacionamento com Shaoran por algo com o
guardião? Ou....estaria Yue pronto a abandonar
Touya por ela? E ela? Iria querer isso?
"Yue...Você..."
Ele abaixou os olhos, ainda sentindo o toque de Sakura em sua face.
"Eu não sei ainda. Está tudo tão confuso."
Sakura sorriu e envolveu o guardião em
um abraço. Era estranho pensar que depois de tantos
anos, os papéis se inverteriam. Ainda
lembrava do quanto gostara de Yukito e como sofrera com
a realidade de que ele não a amava.
O guardião correspondeu o abraço
de Sakura, tentando raciocinar. Seus sentimentos pela garota
jamais morreriam, ele sabia disso, mas o contato
que tivera a pouco com Touya, ainda estava
vívido em sua mente e em seu corpo. O
que, afinal, ele faria?
Afastou-se de Sakura e sorriu, apesar do semblante continuar triste.
"Eu acho que preciso colocar algumas coisas em ordem aqui dentro."
Ela o viu apontando para o próprio coração,
e assentiu. Tomou as mãos dele e o olhou nos
olhos.
"Seja o que for que descobrir, Yue, nada mudará nossa amizade."
Ele lhe deu mais um sorriso e se levantou. Queria estar certo da atitude que tomaria.
Foi andando devagar até o quarto de Touya.
A decisão que tomasse agora, seria definitiva e,
fosse ela qual fosse, o faria sofrer.
Parou diante da porta temendo o momento que se
seguiria. Mas não podia retroceder agora. Não
depois de tudo o que acontecera.
Entrou em silêncio e observou o rapaz deitado
na cama. Os olhos de Touya estavam fechados,
mas ele não dormia. Assim que sentiu Yue
no quarto, abriu os olhos e fitou o guardião.
"Por que voltou?"
"Touya..."
Ele tentou falar, mas as palavras não saíram.
Como explicar o que acabara de passar com
Sakura? Podia ver a dor estampada nos olhos do
rapaz, como se ele soubesse. Mas isto era
impossível, não era?
"Sim, Yue, eu sei. Eu estava na escada."
As palavras ditas com suavidade doeram mais que
punhaladas. De repente Yue pensou em como
seria sua vida sem Touya. Cenas de um futuro
até então desconhecido desenharam-se em sua
mente. Se ficasse com Sakura, Yukito acabaria
por desaparecer, Touya perderia não apenas a
pessoa que amava, mas ainda teria que conviver
com a presença de Yue a lembrá-lo do seu
sofrimento dia após dia. E ele... ele
conseguiria viver sem Touya?
O guardião ajoelhou-se ao lado da cama,
abaixando a cabeça envergonhado. Não importa o que
falasse, jamais se perdoaria por ter feito o
rapaz sofrer. Foi com um fio de voz que finalmente
falou a Touya.
"Touya, eu amo Sakura. É um sentimento involuntário, nasceu sem eu perceber."
"Sim, eu sei."
"Eu queria poder lhe dizer que não a amo, mas não posso."
O rapaz permaneceu em silêncio, o rosto bonito sem qualquer expressão a não ser a dor.
"No entanto, eu não posso mais viver sem
você, Touya. Eu não agüentaria vê-lo sofrer mais.
Eu
estaria lhe tirando tudo com o que você
já se importou."
Quando falou, a voz de Touya saiu surpreendentemente calma e segura.
"Eu não quero que se sacrifique por mim,
Yue. Eu amo Yukito...você, de toda a minha alma, mas
não posso pedir que abdique de sua felicidade
por mim. Que amor seria esse que digo sentir, se
fosse agir de forma tão egoísta?"
Ele levantou-se da cama e se afastou do guardião
que permanecia ajoelhado ao chão. Estava
tudo terminado. Deus, e como doía.
Não percebeu a figura alada levantar-se
e aproximar-se. Foi com surpresa que sentiu o toque da
mãe de Yue em seu ombro, e as asas a lhe
envolver.
"Eu o amo, Touya, tanto quanto amo Sakura, e por
isso é tão difícil para mim. Perder Sakura é
como perder o ar, mas perder você...eu
não suportaria continuar vivendo se eu lhe perdesse."
O rapaz virou e encarou o guardião. As asas os colocando muito próximos um do outro.
"O que está dizendo?"
"Sakura não precisa de um amor, mas de
um guardião e amigo. Mas você...uma parte sua corre
dentro de mim, e eu jamais poderia lhe deixar.
Eu não ficarei com você para que não sofra, mas
porque eu preciso de você comigo."
Touya fechou os olhos e ficou sentindo a energia
do guardião. Deixou-se envolver pelos braços
de Yue e retribuiu o abraço. Sabia que
não seria fácil para ele, mas fora a escolha do guardião
e
ele a respeitaria.
Yue brincou com os cabelos de Touya, sentindo o corpo tenso do rapaz, relaxar.
"O que faria se eu tivesse escolhido Sakura?"
Touya sorriu e desvencilhou-se do abraço.
"Isso é algo que você jamais vai
saber."
FIM