(Cross-over de Yu Yu Hakushô e Saint Seiya Em Homenagem à Jade)
Kurama permaneceu em frente a janela do hotel, imóvel feito pedra, ignorando o belo nascer da manhã inundar com suaves faixos de luz o horizonte. A face tensa, sustentava um par de olhos verdes profundos com enormes olheiras e as longas madeixas ruivas despenteadas. A pele de porcelana estava pálida, toda suada, aderida ao pijama amarrotado. Passara a noite em claro, teve medo de adormecer. Sua imagem era pura preocupação. Acontecera de novo e ele estivera tão perto... tão perto... As muralhas de sua fortaleza desabaram no final. Insólidas. Confiara em demasia no seu potencial. Perdera a batalha na qual a única saída era a vitória. Outro seria o senhor da situação. Ele só poderia acompanhar seus passos obediente ao destino desconhecido e implorar que fosse favorável a ele. E agora? Onde esconder tudo aquilo? Desespero nunca fora bom conselheiro. Vontade de chorar. Sobraram lágrimas? Os olhos doíam, avermelhados. Porque acreditara que tudo estava resolvido? Bem até ontem estava, não estava? Foi um linda viagem ao Oriente, sem nenhuma complicação aparente à vista. Muitos sorrisos, muitos pontos turísticos, muitas fotos, muita grandiosidade. Tudo solucionado e esquecido. Poderia voltar ao Japão tranqüilo e animar as conversas no restaurante de Keiko um bom tempo, contando histórias das maravilhas do mundo. Susto passageiro. Normal ter acontecido. Sentia-se especial, querendo abraçar o mundo. Até ontem...
O sono tombava a visão cansada. Chacoalhou a jarra de café. Vazia. Não importa, ele ficaria ali até vê-la desaparecer completamente. A venerada traidora. A sua amada infiel, toda ornamentada em fascinantes tons prata, estava zombando dele no céu estrelado, destruindo toda a sua vida atual. Ela não gostava dos cabelos de fogo e dos olhos esmeralda, muita austeridade para a fada luminosa das noites negro-arroxeadas conceder sua companhia. Ela preferia a sombra vaporosa, sua irmã, de lindos e traiçoeiros olhos dourados aprontando travessuras na escuridão igual criança marota a diverti-la, em fingida inocência, reflexo da sua vaidosa beleza. Era o merecido castigo pela sua hipocrisia. Ele tinha traído a todos, sem remorsos, na garantia da impunidade. Traíra Kuronue e Yomi. E mesmo sendo Shuichi insistia no erro em nome de outros ideais. Uma boa causa justificaria? Não tinha muita certeza. Traíra seus companheiros no roubo dos tesouros do Reikai. Gouki estava morto e Hiei quase não sobrevivera. Sabia desde o princípio deste desfeixo. Planejara, sórdido, tudo em minúcias, por sobre os planos do jovem demônio de fogo, deixando pistas nos lugares mais óbvios. Iam ser pegos no tempo certo; o Reikai era lento, não cego. Seu último e perfeito plano. Chave de ouro. Ele morreria pelo espelho das trevas salvando sua mãe, uma singela recompensa aquela senhora de grande coração. Não queria morrer. Gostava da vida no Ningenkai, mas não havia outro jeito. Gouki e Hiei seriam eliminados pelos enviados do Reikai. Faria uma boa ação e de quebra, livraria o mundo de 3 demônios perigosos. Gouki era nojento. Foi-se. Bendito Yuusuke! Não tinha arrependimentos. Se estivesse vivo provavelmente ele mesmo o eliminaria. Hiei é caso a parte, teve pena de tramar contra ele, tinha 11 a 12 anos na época, um demônio jovem demais e cheio de poderes mal controlados, fechou os olhos optando pela segurança da mãe e do Reikai em vez da criança abandonada. Ficou aliviado quando verificou que ainda respirava após a luta com o detetive espiritual espevitadinho e usou todos os argumentos imagináveis para livrá-lo da punição. Traíra Yomi de novo. Não. Este não contava... Adorava ser sacaneado! Riu em desgosto. É a lista de traições era enorme. Sobrou somente um último nome... O nome que se defendeu com a ajuda da sua dedicada amiga, traindo-o primeiro. O castigo estava determinado, hora do pagamento, sem apelações. O último faixo de luz iluminou todo o quarto, ela tinha partido. Ele poderia descansar um pouco e refletir melhor sobre os acontecimentos.
Olhou para os objetos espalhados pela cama: colares marroquinos, pulseiras indianas, véus de seda bordada a ouro... Pequenas estátuas de mármore seculares era o mais recente aquisição. Permaneciam mais ou menos guardados nas variadas caixas de sedex, enviadas dos hotéis turísticos por onde passara em data fixa de postagem, o dia anterior. Constavam notas falsas para a firma do Sr. Hatanaka, aos seus cuidados. Foi difícil explicar a sua família aquela imensa quantidade de pacotes. A mãe não engoliu muito bem a história de produtos de uso diário e ficou muito zangada. Voltou a observar a paisagem local. Estava em Atenas, Grécia. Berço da civilização. Terra de deuses quase humanos, cruéis, diferente do seu venerado Inari-sama. Longe de casa, longe da segurança de Tokyo. Os amigos não o ajudariam. O Reikai não o ajudaria. A viagem não acabara. Yuusuke tinha de chegar logo. Recomeçou a caminhada desesperada pelo quarto em busca de uma solução. Estava em maus lençóis e pondo em risco sua reputação ningen. Inari o ajudasse! Isso não estava certo. Isso não podia estar acontecendo! Ele precisava resolver isso antes do pior acontecer... antes de perder tudo que mais amava...
O sol resplandeceu acariciando as colunas do templo com sua acalorada energia. Saori, Avatar de Atena, apreciou o surgimento do servo de Apolo com imensa alegria, despedindo-se das constelações protetoras dos seus amados cavalheiros acalentadas por uma lua adorável, reinado de Diana. Nascia um novo dia carregado de esperanças para a humanidade e ela fora abençoada com uma das mais raras dádivas concedidas pelos deuses para os seus devotos. Estava radiante a perspectiva do futuro vindouro.
Após a batalha de Hades, Zeus, pai dos deuses, convocou seu espírito imortal para o conselho sagrado. Ele estava cansado de tantas batalhas sem sentido ao pé do Monte Olimpo. As 12 regiões místicas secretas, dominadas cada uma por um deus, tinha 3 dos seus templos cobertos de sangue recente e estava abalando as bases da fé dos seus fiéis. Os mortos não tinham descanso, os mares estavam revoltos e justiça perdera grande parte da sua força. Milhares de preces desesperançadas vinham de todos os lugares pedindo uma solução para o tormento. Isso não poderia continuar. Era necessário o perdão e o concílio, antes de haver um colapso e os deuses desaparecerem deixando a desilusão como herança do mundo. Os Olímpicos permaneceram dias reunidos, ouvindo os argumentos de Atena, Possêidon e Hades, e negociando uma trégua mútua até chegarem a um consenso. Houve muitas acusações sobre a influência de Ares como incitador de desavenças. Tudo negado pelo irado deus da guerra. No final do julgamento, os deuses perdedores foram absolvidos. Possêidon retornou ao corpo de Julian Solo, com seus generais e Hades recuperou seus juizes e semi-deuses; julgados fundamentais ao andamento das obrigações de seus templos. Carregaram para o oceano e o mundo inferior a sua humilhação, embora aliviados. Ares, sob protestos, teve seus poderes restritos e foi advertido sob nada de revanches. O deus concordou rapidinho, para não perder tudo, em resmungos mal ouvidos. Sabia que ninguém acreditara em sua falsa injustiça, nem ele, e conhecia o terrível castigo de se levantar contra as decisões do conselho olímpico. Melhor esfriar a cabeça no seu retirado templo. Daqui a alguns séculos esquecimento mudaria as coisas, sorriu maquiavelicamente. Atena foi considerada única cumpridora da vontade divina e recebera uma graça exclusiva: o direito de escolher o destino de seus cavalheiros perdidos nas batalhas. Zeus conduziu-a com pompa, ao seu santuário eterno no topo do Monte Olimpo onde a aguardavam as almas de seus valorosos guerreiros de ouro, prata e bronze. Diante de tantas faces, Atena chorou, arrependida por não ter sido forte o suficiente para impedir suas sinas, muitos mereciam ter destinos melhores no lugar de uma morte indigna; era tarde. Ela perdera bons aliados e estes fariam falta. Nem todos poderiam voltar. A graça era grande, mas limitada. Foi dolorosa a escolha. Iniciou sua jornada pelos poucos infiéis, entre eles 2 cavalheiros de ouro, Afrodite de Peixes e Máscara da Morte de Câncer. Seus espíritos estavam condenados a vagar pelo Santuário de Atena até conseguirem redenção. Era uma chance para aprenderem a serem nobres e teriam utilidade para afugentar os indesejáveis curiosos. Decidiu saudosa que os cavalheiros de Prata e Bronze honrados iriam em glória para o Paraíso de Atena, junto dos seus antecessores. Despediu-se deles agradecida e voltou-se ao restante: os 5 principais cavalheiros de bronze, os 10 cavalheiros de ouro e o antigo mestre do santuário, Shion; seriam ressuscitados para ajudá-la em sua missão de reerguer a majestade de seu templo. Zeus deu-se por satisfeito e devolveu-os ao templo da justiça. A ordem retornava ao universo grego.
Saori, ainda em meio aos festejos do Santuário pelo milagre concedido pelos deuses, orava grata todos os dias ao nascer do sol, a generosidade olímpica. Haveria paz, pelo menos por um tempo. Tempo este suficiente para preparar novos cavalheiros e reafirmar os ideais da missão de Atena ao mundo. O número de aprendizes crescia, o solo sagrado limpava-se das manchas de desonra sob o som agitado das vozes estridentes e o balançar dos longos cabelos nas armaduras reluzentes, tão apreciado. Trabalho não faltava, ela era necessária na coordenação geral auxiliada por Shion. Atena exigira extrema dedicação nos treinos para os novatos com muitas doses de compreensão e paciência. Breve, o santuário de Atena seria novamente sinônimo de Justiça para os homens. Seus belos cavalheiros mostrariam ao mundo que eram dignos de confiança e merecedores da posição ocupada. Justos e caridosos, sua benção protetora. Sorriu vitoriosa.
Olhou para o relógio, 7:00hs. Precisava tratar daquele último assunto pendente. Os bens do Sr. Kido, seu guardião, deveriam ser entregues ao legítimos donos, seus 100 filhos, porém os 10 cavalheiros recusavam-se a assumir seus direitos e ela continuava a controlar tudo, desde a mansão até as negociatas internacionais. Estava cansada, não podia se dividir em dois. Atena desejava ardente deixar de ser Saori Kido, uma usurpadora de privilégios não seus. Ficaria somente com a Fundação Kido, uma forma de homenagear aquele grandioso senhor pelo cuidado e consideração por uma deusa estrangeira. Reviu os documentos a sua frente: os empreendimentos japoneses iam bem lucrativos, principalmente os geridos pelo Sr. Hatanaka. Tinha conversado com a Sra. Hatanaka, uma exemplar dona-de-casa e secretária do marido, no dia anterior, confirmando o compromisso em nome da família Kido. Senhora adorável. Ficou feliz pelo Sr. Hatanaka, velho amigo de seu avô, ter uma nova esposa para preencher a vida solitária. Era um bom homem, honesto e trabalhador. Sofreu cuidando da mulher doentia e criando o filho pequeno. Sua primeira esposa não tinha saúde e piorou depois do parto, culminando numa morte súbita. Muito triste. Separou a documentação por pastas e deu-se por satisfeita. Ele seria um bom tutor para os meninos e uma indicação precisa para a presidência da organização. Apesar da presidência ser passeio, perto de lidar com 10 desmiolados teimosos! Bom, eles precisavam de alguém para impor respeito; e segundo os relatórios, os 2 filhos do casal eram moços de futuro promissor. O santuário de Atena transformou-os em bons cavalheiros, faltava serem bons cidadãos japoneses. Ela não poderia fazer isso. Trabalho e estudo eram fundamentais no momento. Eles estavam crescendo. Deixaria a mansão a disposição do tutor. O convite estava preparado, só precisava do herdeiro certo para o envio. 7:30h. Todos já deveriam estar acordados a esta hora. Estava convocando um dos guardas para procurar Shun, o cavalheiro de Andrômeda no alojamento dos cavalheiros de bronze quando Milo, cavalheiro de Escorpião, surgiu em sua presença cumprimentando-a e intervindo no assunto.
- Salve Atena, Senhora da Justiça e de todos os cavalheiros! Sinto muito informá-la, mas Andrômeda não se encontra no alojamento, venho de lá. Eu o dispensei dos treinos ontem para as comemorações do Festival e ele ainda não retornou. Se quiser, posso enviar um aprendiz para encontrá-lo.
- Por favor, Milo, faça isso. Preciso dele urgente para o compromisso hoje a tarde. É por pouco tempo, garanto, não vai atrapalhar a rotina de vocês.
Batidas na porta foram ouvidas, quando o relógio marcou 7:30h, tirando Kurama dos seus pensamentos sombrios. Ele guardou os objetos novamente na mala e abriu a porta do quarto.
- Nissan, posso entrar? - a face moleca de Shuichi-Kun apareceu no vão da porta - Nossa como você está horrível! Você está bem, Nissan? Mãe!!!! Shuichi está doente! - gritou o menino impossibilitando Kurama de impedi-lo a tempo, já dando passagem a uma exasperada Shiori.
- Shu-chan? O que você tem?
- N... Nada mãe. - sorriu abatido - Acho que não estou acostumado a viajar tanto. Provavelmente foi algo do jantar.
- Oh, filho! Eu sabia... esta viagem estava exótica demais para não dar problemas. Eu os avisei não? Mas vocês, homens, nunca nos escutam! Ainda bem que trouxe minha malinha de remédios... Shu-kun avise o seu pai para levá-lo as ruínas sem mim.
- Não mãe! Não estrague sua recente lua-de-mel por minha causa! Estou adorando viajar com vocês. China, Marrocos e Índia foram maravilhosos. O Taj Mahal é inacreditável e foi divertido ver Tousan cair do camelo e ficar coberto de baba. - riu, sob o olhar reprovador da mãe - Fizemos ótimos negócios também, as mercadorias vão nos trazer bons lucros. Deixe alguns medicamentos na mesinha e vá com papai. Por favor! Ficarei triste se perder o passeio... Até a tarde estarei melhor, juro! Só preciso descansar mais um pouquinho - incentivou - Diga a Tousan, ficar tranqüilo e não se preocupar, eu recepcionarei os parentes do falecido Sr. Mitsumasa Kido. Além do mais, tenho de providenciar mais quartos.
- Quartos?
- Sim. Tousan permitiu aos meus amigos virem ao Japão, recompensa pelos meus bons serviços. Ontem telefonei a Yuusuke e ele e mais alguém, provavelmente a namorada, chegarão amanhã e terminarão a viagem conosco. Bom, não é? Assim meu casal de meia-idade preferido terão mais tempo só pra si! - riu.
- Este casal de meia-idade tem tempo suficiente para si mesmo e cuidar dos filhos! Mas gosto da idéia do seus amigos estarem aqui, você anda muito estranho nos últimos tempos. Eles sempre o deixam alegre. Tem certeza que pode ficar sozinho aqui? - duvidou a mãe, ao aceno afirmativo - Bem... se você diz... eu lhe telefonarei a hora do almoço. E, Shuichi... - o rapaz moveu a cabeça interrogativo - Trate bem os parentes do Sr. Kido, ele foi um grande amigo do seu pai e nós lhe devemos muito como família Hatanaka. É importante sermos gentis com eles.
- Claro mãe! Tousan e eles tem alguns negócios conjuntos. Negócios grandes. Passaríamos por momentos difíceis se as relações ficassem duvidosas. Não os decepcionarei!
Hyoga acordou zonzo, tinha perdido a conta do vinho bebido no Festival. Do seu lado Shun continuava dormindo, exausto da longa noite de prazeres. Tinham adormecido abraçados admirando o céu estrelado e o luar aos sons noturnos na clareira. Embeveceu-se com a imagem de Andrômeda ao céu matinal. Estava vestido com uma leve túnica grega branca complementada com uma guirlanda de margaridas e violetas realçando os cabelos verdes. Guirlandas despedaçadas das mesmas flores e de hera com folhas de parreira enroscavam-se pelo corpo esguio. Se não o conhecesse, julgaria ser uma delicada hamadríade daquele bosque. Um pássaro pousou na sua cabeça e num gesto mecânico, elevou a mão tentando alcançá-lo. Os dedos prenderam-se em hastes. Uma guirlanda de hera e folhas de parreira embaraçava no seu cabelo doirado, todo despenteado, formando nós doloridos. Analisou-se melhor, também vestia uma túnica curta e estava coberto por flores e folhas. Riu em silêncio. Desse jeito iram virar bacantes! O pássaro iniciou uma melodia suave apreciando a cena. Corou envergonhado - imagine se seus mestres os vissem agora? - pensamento medonho. Viu uma nascente próxima; ira lavar-se e retirar todos os vestígios incriminadores para voltar a vila do templo. O que pensariam os outros ao verem chegar nestas condições! Levantou-se junto com uma revoada de borboletas. Não tinha reparado nelas, escondidas entre a vegetação rasteira, misturadas as flores. Eram uma visão maravilhosa, davam um toque mágico à paisagem. Estava em bom humor. Belo amanhecer! O pássaro persistente continuou pousado nas folhas da sua guirlanda em vez de fugir em revoada, teve vontade de acompanhar o canto assobiando, mas não queria despertar Andrômeda. Refrescou-se nas águas límpidas e sentou numa árvore próxima remexendo na cesta que haviam comprado. As garrafas de vinho estavam vazias, só havia alguns cachos de uva. Resolveu comer estes, café da manhã. Uma sensação incômoda atravessou seus sentidos e estreitou os olhos ao redor em vigília, notando um par de olhos infantis conhecidos.
- Jacó! O que está fazendo aqui?
O menino tinha sido trazido da Sibéria para ser o novo aprendiz de Kamus há poucos dias.
- Quer uvas? - ofereceu quando o pequeno se sentou a seu lado.
- Não, obrigado! Vim trazer uma mensagem.
- Pra mim? Kamus precisa de mim?
- Não. - respondeu o menino balançando a cabeça. - É para o cavalheiro de Andrômeda. O Sr. Milo me pediu para procurá-lo e acompanhá-lo de volta ao templo. Urgente. Pedido de Atena.
Hyoga franziu o cenho. Não gostava de Milo desde que descobrira a sua "amizade" com seu amado mestre Kamus. Ciúmes filiais. Kamus merecia coisa melhor. Ele era tão discreto e educado, um lorde, o outro vaidoso e arrogante. Não tinha um pingo de sentido.
- Acho que não vai dar pra ser agora, Jacó... Shun está descansando...
- Pode deixar, Hyoga! Eu já acordei. - Shun esfregou os olhos e sorriu para os dois. - Só me dêem um tempo de um banho rápido e em poucos minutos estaremos lá. - Piscou dirigido-se a nascente.
Hyoga retornou as suas uvas, decepcionado.
- Onde você encontrou Milo, Jacó? - perguntou curioso.
- Na casa de Aquário. Ele prometeu acordar o mestre enquanto eu vinha aqui. - respondeu o menino inocente.
Hyoga sentiu as uvas tornarem-se azedas de repente. Grunhiu raivoso e ia dizer poucas e boas sobre o cavalheiro de Escorpião estar tratando a casa de Aquário como a casa da mãe Joana quando a voz suave de Shun interveio, lendo os seus pensamentos.
- Mestre Milo é um bom homem. Tenho certeza que Kamus não se importou. Eles se dão muito bem.
Hyoga ficou calado abaixando a cabeça. Milo era o novo mestre de Shun junto com Shura. Lógico que ia defender aquela criatura sem vergonha. Sentiu o tom de advertência no meio das palavras. Era melhor andar depressa senão acabaria brigando com o amante, estavam quase no alojamento. Parou perto do poço enquanto o outro entrava para se trocar. Jacó ficou junto dele. Não falaram nada. O silêncio incomodava. Resolveu jogar uma moeda no poço atrás de si para distrair-se. Era o poço de desejos da vila. O que desejaria? Que tal Milo se transformar num rato e sumir numa fresta das ruínas? A moeda cintilou no ar, mas não caiu. Ficou presa aos dedos de Cisne. Sua honra de cavalheiro não permitiu o desejo mesquinho. Shun passou correndo por ele, puxando Jacó e dizendo um bom dia mal ouvido. Jogou a moeda desejando mais noites ao ar livre e foi dedicar-se com disposição renovada as suas atividades. Que cada um decidisse o melhor pra si, não era obrigação dele.
Shun chegou esbaforido a sala do mestre, os cabelos molhados exalavam um perfume floral com toques de orvalho, e dirigiu-se seguro a uma pequena biblioteca-escritório, escondida numa das laterais. Atena encontrava-se sentada defronte a uma escrivaninha, lotada de papéis. A deusa saudou-o com um sorriso. Ele devolveu o cumprimento, esperando paciente pelas obrigações de urgência. Franziu o cenho ao notar o selo da Fundação Kido nos documentos. Ia ser encrenca! Não queria brigas com os irmãos, principalmente com Hyoga. Quando o assunto era relacionado ao falecido Sr. Kido ficavam discutindo por horas e ele acabava chorando sozinho no quarto. Tudo andava tão tranqüilo, porque Saori cismava em desenterrar aquele homem nos momentos mais impróprios? Pensou se haveria alguma maneira de adiar aquilo, analisando o comportamento da adorada neta do pai. A face permanecia serena com uma expressão séria. Ela o analisava também, conhecia aquele olhar. Resignou-se baixando a cabeça.
- Shun, você deve ter percebido que o assunto urgente ao qual lhe chamei diz respeito aos bens do falecido Sr. Kido, portanto vou ser clara e objetiva, sou grata ao meu avô, mas não tenho mais condições de gerir os negócios de sua família e me responsabilizar por vocês. O Santuário de Atena precisa de mim, Shion e os demais cavalheiros se esforçam, porém são poucos e o trabalho exige muito. Não quero causar prejuízos a ninguém e decidi, mesmo contra a sua vontade, dividir as responsabilidades. Eu ficarei a frente da Fundação Kido e vocês responderão pelo restante auxiliados por um tutor. A mansão estará a disposição, terei de ficar na Grécia até tudo se resolver. Você está encarregado de conversar com o Sr. Hatanaka esta tarde com o convite formal, é um bom empresário e pai de família, não tenho dúvidas que aceitará os cargos propostos. Os papéis estão aqui, dê uma boa olhada para se inteirar do assunto antes de ir.
- Tutor?!?!?!? Mas Srta. Saori... - um espantado Shun tentava digerir todas as informações. Atena tinha jogado pesado dessa vez.
- Sinto muito, Shun. Nada de negociações. Eu tenho minha missão sagrada a manter. Vocês são excelentes cavalheiros. Está na hora de serem bons homens também. Têm de deixar esta postura infantil birrenta e assumir as responsabilidades por seus atos. As empresas Kido tem funcionários necessitados destes empregos para sustentar suas famílias. Eles dependem de vocês.
- Tudo bem... Eu entendo... Mas e os outros? Como vou contar isso a eles?
Saori sorriu. Sua estratégia finalmente parecia estar surtindo efeito. Graças aos deuses! Não agüentava mais discutir o mesmo assunto toda a vez como se tivesse falando para as paredes. Shun sempre fora maleável, por isso os outros o escolheram para representante de seus interesses. Confiava nele. Resolveu dar alguns minutos para o outro repensar. Não pretendia jogá-los na fogueira. Queria só balançar um pouco suas estruturas. Eram bons meninos, embora cabeças-duras. Concordariam com sua atitudes no devido tempo.
- Bem... Você tem um tutor para auxiliá-lo nisso... A menos que não queira a sua ajuda. Quer um conselho. Vá procurar o Sr. Hatanaka e depois fale com seus irmãos. Ou melhor, veja se algum deles pode te acompanhar e conhecer o tutor junto com você. O Sr. Hatanaka pode ter boas idéias para vocês. Talvez, termine com o impasse na questão do curso superior. Já se decidiram por alguma profissão em particular?
- Mais ou menos. Vou prestar História, o Hyoga - Direito, o Shiryu - Psicologia. Seiya parece que vai prestar Biblioteconomia... - Andromeda andava desanimado, o fim do ano se aproximava e nem todos tinham escolhido algo para fazer. Um tutor seria muito útil, poderia impor respeito. Melhor aceitar a sugestão de Saori.
- O Seiya?!?!? Biblioteconomia?!?!? Ele sabe o que isso?!?!? - Atena riu.
- Na verdade, eu acredito que não! Ele só queria o Shiryu fora do pé dele... - Shun concordou rindo. - Vou seguir sua sugestão. Com a sua licença. - retirou-se.
A vida de Kurama como o jovem exemplar Shuichi Minamino, era de fato boa, mesmo tornando-se Reikai Tantei e voltando ao Makai, ele não teve dificuldades reais. Três meses após o Torneio das Trevas, a agitação desaparecera num monótono dia-a-dia atarefado. Shuichi era pura realização humana, tinha uma boa família, amigos leais, beleza, poder, popularidade, dinheiro, um passado invejável e um emprego promissor. Só havia um pequeno problema remanescente. Sexo. Ou melhor, falta de sexo! Depois de renascer como Shuichi, Kurama não tivera chances na questão dos relacionamentos. Um pressentimento ruim incomodava em aviso urgente. A Natureza youko era sexual. Parceiros, essenciais a sua convivência. Kurama embora ningen, ainda tinha instintos youkais e no Torneio dos Monstros adquirira sua antiga forma selvagem, aumentando o seu insaciável desejo. Um crescente cheiro almiscarado sensual, camuflado sob o de rosas, poderia ser percebido desde a puberdade. Foram muitas noites acaloradas terminadas na lavanderia para o estudante. Sentia arrepios de adrenalina percorrer seu corpo e ouvia o Youko gritar em lascívia dentro de si nos momentos mais complicados. Ficava envergonhado, sem saber o que fazer. Ningens estavam proibidos a ele, a menos que quisesse ter fama de tarado e amantes youkais poderiam ser traiçoeiros. Ele não tinha ninguém em potencial! Parecia piada, mas era a pura realidade. Não era bem sua culpa. Sempre acreditara-se seguro após conhecer um "certo" demônio de fogo na pré-adolescência. Seu tipo ideal. O destino rolou maus dados no romance, criando barreiras e separando-os: a doença da mãe, a traição, os torneios do time Urameshi e do Makai, roubaram-lhe um tempo precioso e o transformaram numa pessoa só. A raposa sofreu calada com os hormônios juvenis e o retorno a um perturbador youko ninfomaníaco. Ficava cada dia mais difícil esconder certos hábitos, a mãe ralhava contra a janela aberta e o excesso de roupa suja para lavar. O carente Koorime andava frio, distante, não permitia aproximações e toques, principalmente agora, após encontrar a irmã e ser o poderoso herdeiro de Mukuro. Como convencer alguém assim a conceder sua companhia? Não havia mais uma linda ave negra dormindo em sua cerejeira, só o vazio enlouquecedor da ausência. Hiei não desistiria fácil das suas vitórias atuais. Podia procurar Yomi.... Torceu o nariz, em definitivo: não. Estava farto do rei de Gandaha. Ele não o atraía mais, melhor o tormento da solidão. Mukuro talvez não fosse páreo duro afinal. Bons planos futuros.
Neste exato tempo, Kurama - Shuichi sofreu uma mudança inesperada. Crises de branco surgiram. No começo eram apenas momentos de esquecimento que o jovem ruivo despertava do transe em lugares estranhos. Amanhecia num bar a beira do cais, numa floresta próxima a uma vila ou ao lado de um portal do Makai. Cansaço e saudades, concluiu. No passar dos dias, manchas vermelhas discretas no pescoço, arranhões nas costas e joelhos ralados tornaram-se freqüentes diante da expressão confusa. A desconfiança estreitava os olhos verdes ao encontrar objetos desconhecidos escondidos pelo seu quarto. Tudo se confirmou durante a lua cheia, momento de libertar o Youko. Kurama lembrava-se da ida ao bosque, mas não tinha recordações posteriores a isso. Acordou no dia seguinte em sua cama todo suado e com um odor nojento de bebida e cigarro sob a pele pegajosa. O baixo ventre doía. A cabeceira da cama cintilava um caríssimo colar de pérolas com brilhantes em ouro fosco. A realidade caiu sobre ele como chumbo, a raposa prateada não aceitava mais seu modo de vida regrado. Enfiou o colar na gaveta e correu nervoso ao banheiro para livrar-se daquela sensação imunda. Onde e com quem estivera? Não sabia... Só sabia que Youko Kurama andava aprontando das suas. Precisava ir ao médico urgente! E se pegasse uma DST? Imagens de verrugas purulentas invadiram sua mente. No seu último trabalho escolar tinha feito uma palestra classificando mais de 500 doenças desde as comuns até as raras e incuráveis. Ganhou nota 10 e horrorizou todos os alunos com aquele monte de fotos nojentas. Imaginou a face desgostosa de Saori vendo o futuro médico da família terminar frente a um corpo cheio daquelas coisas. Seria uma vergonha! Acabaria com sua reputação! Nunca mais seria o brilhante farmacognosista de carreira internacional! No caminho do laboratório compraria muitos preservativos. Uma das melhores formas de prevenção! Se desse sorte, o Youko seria suficientemente ajuizado para usá-los. Os roubos seriam um problema mais complicado, a raposa adorava adrenalina correndo nas veias. Sexo e Aventura! Eram as necessidades básicas da vida do Youko. Porque não havia recordações? Kurama não compreendia muito bem o que estava acontecendo, tinha todas as memórias das duas formas até o mês passado e agora só tinha as de Shuichi Minamino por mais que se esforçasse. Em desgosto, foi obrigado a aceitar que a personalidade de Shuichi e Youko estavam sofrendo um tipo de separação. Seria stress? Era uma possibilidade. Estava se sobrecarregando de tarefas e comendo mal.
Diminuiria o ritmo e teria horários para as refeições.
Uma semana depois...
Tudo parecia mais ou menos sob controle. Nenhum
sinal de objetos alheios, os exames médicos não acusaram
nada e na quarta alguns preservativos faltam na caixa. Shuichi estava contente.
Tinha fé na volta das lembranças em breve. Levantou da cama
num salto e quase se esborrachou no chão. Escorregara em algo branco
escondido embaixo da cama. Ajoelhou ao lado desta e puxou alguns objetos.
Uma enorme caixa de sementes. Coisa útil. Tinha perdido muitas nos
últimos dias. Correntes e faixas? Riu. Youko Kurama era mesmo louco!
Ia jogar no lixo, porém uma pontada o deteve. Resolveu examinar
aquele material melhor e quase entrou em choque. Eram as faixas de Hiei
e as correntes de Mukuro! O youko estivera no Makai? Será que ele
endoidara de vez? Ele temeu por Hiei, Kurama-Shuichi tinha fixação
no Koorime e fora atormentado por sonhos eróticos durante um bom
período após voltar do Makai, ele, Shuichi, amava Hiei, o
Youko ainda era ele, portanto deveria sofrer da mesma forma, com uma diferença;
Shuichi se conformava com a situação e o Youko era audaz
o suficiente para arquitetar conquistar o demônio de fogo por bem
o por mal. De repente o convite dos pais para a viagem pelo oriente lhe
pareceu muito boa, quem sabe ele voltasse a controlar o espírito
raposa dentro de si nas férias? Estava odiando ter dupla personalidade,
queria ser inteiro de novo. Esperava que a viagem resolvesse. O youko sempre
teve gostos exóticos, talvez a viagem o agradasse e ele sumisse
por uns tempos. Não queria problemas com o Reikai. Koema tinha boas
influências, mas também seus limites. Poderia acabar preso
ou expulso para o Makai em definitivo. Ficaria sem família, sem
ninguém. Balançou a cabeça. Melhor verificar como
Hiei estava e aproveitar para rever alguns conhecidos de ajuda. Rápido
despediu-se da mãe e foi ao portal mais próximo, a fronteira
onde Hiei vigiava.
CONTINUA