Memórias


Por Senhorita Mizuki


Aquilo fervia e animava a sua alma, era a vida que desejara aos céus. Brigar, lutar, encontrar alguém mais forte, tentar supera-lo e a si mesmo. O gosto do sangue na boca era tão suave e doce, tão seu.

Mas agora havia exagerado na dose, devia ter sido menos ambicioso. Desafiar cinco cavaleiros de prata fora uma estupidez, não conseguia vence-los, não via uma abertura, uma brecha sequer na guarda deles. Mas também não podia desistir da luta, ou poderia ser tachado de covarde. E eles não pareciam querer parar, mesmo ele sendo inferior a eles. Também estavam ávidos por sangue.

Os seis olhavam um para o outro, esperando quem iria atacar primeiro. Um Milo ofegante conseguiu ver e se defender do primeiro golpe; o segundo veio logo em seguida e, milagrosamente, também defendido. O terceiro, numa velocidade imperceptível, acertou o estômago em cheio, jogando-o contra o pilar. Cuspindo sangue, ainda tentou se reerguer, junto com sua honra de guerreiro.

- Olha só irmão, ele ainda tem forças para se levantar. Reconheça, garoto, você é nada para nós. Não acredito que queira se tornar um cavaleiro de ouro, não consegue nem passar por nós!

- Ele quer é apanhar, não vê? É um masoquista...

- Seus...i-idiotas...vocês é que são os vermes! Ficam com toda essa pose, mas não passam de lixo!

- Ele que ta pedindo...

Os insultos foram uma forma que encontrara de se defender dos outros, desde pequeno. Só que, naquele momento, tinha efeito contrário, provocador.

Fechou os olhos, esperando pelo soco, que não chegou ao seu destino. Cauteloso, abriu um dos olhos, para ver o que havia acontecido. Um rapaz de cabelos azul escuros e compridos se encontrava à sua frente, de costas, segurando o punho do agressor. Era impressionante, a potência daquele golpe deveria ter estraçalhado a mão dele, mas mesmo assim segurava firme. Apenas o trincar dos dentes denotava o esforço que fazia, pois sua posição não estava tensa, com os pés um pouco afastados um do outro, a expressão impassível.

Sem que se percebesse, foi congelando a mão que segurava. Em alguns segundos depois, o cavaleiro gritou, sem sentir os dedos, que estavam congelados. Com um olhar sério e superior, o rapaz começou a falar, num grego carregado de um sotaque francês.

- Vocês não têm vergonha? Cinco cavaleiros de prata contra um de bronze? As regras do Santuário proíbem esse tipo de briga, aliás qualquer briga sem sentido! Como é que vocês se tornaram cavaleiros, hein?

- Olha aqui, garoto...

- Olha aqui vocês! Isso que vocês fizeram foi covardia! Se o mestre souber disso...

- Ah, o menino agora é dedo-duro?

- Não, apenas justo. Como homens com o seu caráter juraram proteger Athena, se nem sabem o que é justiça nem respeito?

- Vamos embora, manos. Nós já demos bastante lição de moral naquele moleque mesmo.

- Hunf! Certo. Ainda te pego, francesinho, na Arena. Vai ter o que merece.

O rapaz esperou os cinco cavaleiros se afastarem, para então se virar para Milo, oferecendo sua mão.

- Você está bem?- sorriu, quebrando o aspecto sombrio e sério que a pouco havia demonstrado.

- Uh? E-eu? Estou sim...acho...Só um pouco confuso.

- Foram eles que te incomodaram, provocaram a briga?

- Não, na verdade...fui eu.

- O Quê? Contra cinco cavaleiros de prata?

- Bem...é que...- ruborizou de vergonha.

- Que loucura você fez! Por quê?

- Por nada. Eu estava meio entediado, desde que eu cheguei que não tem uma briguinha sequer!

- Entediado? Há quanto tempo você chegou?

- Anteontem...- disse inocente.

- O quê??

- ...- olhou para o chão, embaraçado.

- Bom...Mas mesmo assim! Lutas sem motivo e causa não são permitidos aqui, vai ter de se acostumar com isso. Veio para cá a treino?

- Sim, e para competir pela posse da armadura de ouro!- falava e gesticulava entusiasmado.

- Haha, eu também. De onde você veio?

- Da ilha de Milos.

- Eu vim da França, sou Kamus.- estendeu-lhe a mão em comprimento.

- Percebi pelo sotaque, me chamo Milo.

- Pelo que vejo, já fez muitos amigos, não é?

- Nada, ninguém...Todos aqui são competitivos, eu por exemplo...

- Estão todos aqui para o campeonato das armaduras de ouro, ele começará logo.

Caminhavam silenciosamente pelo santuário, Milo percebia e sentia a calma que o novo amigo emanava. Aproveitando o silêncio, pôs-se a observa-lo melhor. Tinha uma pele branca, alva, macia, diferente da sua que, por viver numa ilha do Mediterrâneo, era queimada e rude, o que lhe dava uma aparência robusta. Ao contrário do francês, que parecia delicado e frágil. O cabelo sedoso e longo balançava no vento que vinha da marinha, o brilho intenso do sol refletindo nos fios, lembrava as ondas do mar.

O andar era vago e suave, como se flutuasse e não simplesmente andasse. Os gestos calmos e sem afetação. Parecia mais um lorde, do que um cavaleiro. Tão diferente de si, que andava apressado e desajeitado, de gestos nervosos e precipitados. Fazia se sentir inferior.

Sentindo que era observado, Kamus parou de andar e se virou para Milo, com uma sobrancelha levantada.

- O que foi? Tem resto de comida no meu dente, é isso?

- Não! Não é nada. Está tudo perfeito.

- Perfeito?- baixou as sobrancelhas, indagador.

O olhar firme e direto deixou-o sem graça e vermelho, virou o rosto tentando disfarçar.

- Er...Cara! Aquilo que você fez foi demais!- tinha de mudar de assunto, rápido- Como fez aquilo? O golpe devia ter quebrado a sua mão!

- E quase quebrou mesmo,- estralou a mão indicada- ainda está doendo para caramba!

- Sei, to vendo sua expressão de dor...- zombou, realmente a expressão dele era impassível de qualquer sentimento.

- É sério! Eu não sinto o meu dedão! Acho que vou ter de passar na enfermaria. Era uma vez um dedo...Não só eu, não é?- apontou para o corpo surrado de Milo.

- Ah, isso? Não dói nada.- mentiu, batendo na barriga para demonstrar- Ai!

- Ahn, claro...

Começava uma grande amizade, de confiança e intimidade. Passaram a treinar muitas vezes juntos, só que Kamus também tinha de supervisionar o treinamento dos outros garotos, por ser mais experiente e um tanto mais velho, além de ser o mais maduro e sensato.

Mas dava uma assistência especial para Milo, já que sua ansiedade e fama de briguento poderia comprometer suas lutas no campeonato. A maior parte do tempo juntos, Kamus só se soltava quando estavam sozinhos. Na presença dos outros, mantinha uma natureza reservada e quieta, com uma máscara de seriedade no rosto.

Mas apareceu um garoto, que também iria competir. Chamava-se Afrodite, mas parecia uma garota, de tão delicado e afetado que era.m Milo antipatizara com a figura logo no primeiro dia de treinamento com Kamus. Ele praticamente grudara no francês, pegava na mão de seu amigo, incessantemente.

Kamus ficava extremamente ruborizado e sem graça com essas atitudes expansivas. Em contrapartida, Milo fervia de ciúmes e raiva, e o rapaz parecia perceber, pois provocava mais ainda.

Muitas vezes o treinamento dos dois se transformava em briga, engalfinhavam-se pelo chão, sob os olhares desesperados de Kamus, que tentava, sem sucesso, separa-los. Uma disputa que duraria até a morte.

O dia do campeonato chegara, e centenas de candidatos do mundo inteiro se amontoavam na arena. No altar, o Mestre ditava as regras do jogo, atrás de si, encontravam-se as nove armaduras. Três estavam ausentes, a de Sagitário sumiu, junto com Aioros, o traidor que tentara matar Athena; a de Libra continuava com seu dono, que se refugiara em algum lugar remoto da China; a de gêmeos também tinha paradeiro desconhecido, Saga sumiu logo após o nascimento da pequena Deusa.

Como lhe fora prometido, o cavaleiro que antes havia ameaçado Kamus era seu último adversário. Enchia-o de insultos, enquanto o francês se limitava a se esquivar dos ataques. Um "Ataque Aurora" congelou o outro e parte da Arena, em seguida, quebrou o gelo com um golpe imperceptível. O cavaleiro de prata caiu a seus pés.

- Francesinho é a mãe!

Simultaneamente, nas outras arenas, aconteciam outras oito batalhas. Milo se encontrava na reta final, com dificuldades para abater o inimigo. Mas gostava desse tipo de batalha, esforçada, as cicatrizes adquiridas lhe davam orgulho. Ao contrário de Afrodite, que prezava sua beleza acima de tudo, como um Narciso. Este lutava com rosas afiadas, evitando o combate direto com o adversário.

No fim da partida, todos os vencedores foram convocados ao templo central e agraciados pelo Sacerdote do Santuário.

- Eu os nomeio os Cavaleiros de Ouro do Zodíaco, os defensores máximos desse Santuário e da Deusa Athena!

Para comemorar, os dez novos cavaleiros mais poderosos resolveram realizar, nos aposentos do templo cedidos pelo Mestre, uma festa regada a vinho e comida. Em pouco tempo estavam todos embebedados, menos Kamus, que negava todo o copo que lhe era oferecido. Devido a insistência dos novos colegas, aceitou um copo, mas logo foi tomando vários e se soltando da timidez. As risadas podiam ser ouvidas dos alojamentos fora do templo, onde cavaleiros, amazonas e aprendizes dormiam.

- Kamus! O amigo Milo aqui disse que você dança muito bem!

- Mentira do Shura! Eu não falei nada disso!

- Toca uma musica aí, Um! O Kamus vai mostrar para a gente como se faz!

- E com quem eu vou dançar? Não vejo nenhuma garota aqui para tirar...

- O Afrodite é quase uma, tira ele para dançar.

- Ora seu...pelo menos eu não cheiro mal como você, Aldebaran!

- É só uma brincadeirinha...Toca aí!

Para a surpresa de Milo, Kamus se levantou e se aproximou de Afrodite, abaixando a cabeça e oferecendo a mão, num convite cortês. O outro sorriu e aceitou a brincadeira, segurando-se no ombro do cavaleiro. Começaram a dançar, mas estavam tão bêbados, que tropeçavam em tudo e riam sem parar. Milo era o único que não estava se divertindo com aquilo, mantinha a cara fechada, como um menino emburrado.

As pernas dos dois se enroscaram, fazendo-os trombarem no chão. Caíram na gargalhada, e Afrodite o abraçou. Aquela fora a gota d'água. Bruscamente, Milo levantou-se e saiu do aposento em passadas largas e furiosas. Recusava-se a presenciar a sem-vergonhice daquela florzinha para cima de Kamus.

Só diminuiu o ritmo dos passos quando se encontrou fora do templo, a noite estava fresca e calma, contradizendo a agitação do local que acabara de abandonar. Recostou-se num tronco de árvore, escondendo o rosto entre os joelhos dobrados junto ao corpo. Tinha vontade de chorar, mas não podia, se alguém o visse mergulhado em lágrimas, seria humilhante. Conseguiu conter o choro, mas não os soluços, que sacudiam seu corpo.

- Vai perder a festa?

Kamus havia se aproximado, sem ser percebido, com duas garrafas de vinho. Deu uma a Milo.

- Aproveita, que tem bastante e é de graça. Se fosse na civilização, nós seríamos presos por consumir álcool.

- O-obrigado. Eu saí porque estava muito quente e barulhento lá.

- Pensei que gostasse...Abre as pernas.

- Hã?

- Abre!

Milo obedeceu-o, e Kamus sentou-se entre suas pernas, encostando a cabeça em seu peito. Seu coração disparou. Virava a garrafa, sorvendo o líquido levemente amargo. Observava as estrelas, enquanto Milo se acalmava e o olhava, admirando o modo como a língua passava pelos lábios, lambendo o vinho.

Hesitou um pouco, antes de mergulhar os dedos nos cabelos escuros e sedosos. Temia que fosse rejeitado por tal ousadia, mas surpreendeu-se ao vê-lo fechar os olhos e suspirar, deliciado com a carícia.

- Porque você não deixa o seu cabelo crescer?- murmurou.

- Ele é feio, crespo...

- Não...são lindos. Se deixar crescer vão ficar ondulados, combina com a sua pele...

- Acha?

- Acho...Hi, hi. O que eu acho mesmo é que eu bebi demais. Amanhã eu vou me arrepender de tudo isso...Esquece tudo o que eu fiz ou disse, certo?

O cavaleiro caiu no sono nos seus braços, tinha uma expressão serena e doce. Não esqueceria nunca daquela noite, nem de quando o conhecera. Seus sentimentos estavam em turbilhão, confusos. Kamus havia despertado, ao mesmo tempo, um calor gostoso em seu coração e uma estranha perturbação. Talvez fosse amizade, coisa que nunca teve, apenas isso.

Afastou as preocupações da cabeça, abraçando-o, aproximando-o ainda mais de seu corpo. Encostou o queixo no alto de sua cabeça, e aspirou o perfume que emanava. Fechou os olhos, iria dormir com ele, naquele momento ele era só seu, de mais ninguém.

De longe, Afrodite observava tudo com lágrimas de ódio nos olhos.
 


FIM



Por Senhorita Mizuki kaho.mizuki@bol.com.br
Dezembro de 2001