Descobertas
 
 
Por Astásia
 
 

Capítulo 1 - Ilumine meu Caminho


Acordo no fim da tarde, com um abraço delicado e bem conhecido em torno de mim. Hiei. Digo seu nome, reconhecendo-o sem abrir os olhos. Ele está com aquele cheiro de novo, meio de hortelã, meio de pinho. Abro os olhos para encontrar os dele, grandes, vermelhos, quase indiferentes. Não consigo nem desconfiar o que se passa atrás deles, mas eu sei o que se passa comigo, e nem sei se ele vê no meu olhar o quanto estou agradecido por haver suportado meu medo irracional na última noite. Agora, tudo parece tão distante quanto um sonho. Apagado, mas a recordação do que vi no momento que me deitei aqui é bem real, e me assalta com um frio na barriga. Deveria ter passado, mas essa parte não passou.

Fica parado um longo e tenso momento, olhando-me nos olhos, até me beijar suavemente sobre os lábios. Retribuo mordendo-o muito de leve. Enquanto estreita nosso abraço, tira minha raposa de pelúcia desbotada de meus braços. Permito.

"Melhor agora?" - Ele sussurra, enterrando o rosto de Sereia do Gelo na curva do meu pescoço, falando perto do meu ouvido, encostando de propósito os lábios úmidos na minha orelha, porque sabe que isso acende meu desejo.

"Bem melhor... Obrigado por ter ficado... Hiei, obrigado."

Ele não responde, mas percebo seu sorriso quando seu beijo desce para meu pescoço. Me pede que eu lhe conte finalmente o que aconteceu na noite passada. Estremeço. Nem eu sei o que dizer. Digo a verdade, da maneira mais simples que posso interpretar os fatos, o que não é exatamente fácil, mas é mais suportável que a versão integral das coisas. Sem querer, acabo falando do sonho, ou seja lá o que foi aquilo, que tive com meu pai. Bruscamente, ele se afasta de mim.

"Você ainda pensa nele? Quero dizer... Você o sente? Ainda o percebe perto de você?"

"Sim..."- Respondo depois de avaliar bem o que percebo. É mais ou menos a mesma sensação que tenho em minha forma de Youko, sentindo algo vivo por perto.

"Ele se parecia com você?"

"Sim."

"Quer visitar o túmulo dele... agora? " - Hiei pergunta, tirando sua espada de cima de minha mesa, onde a deixou quando chegou. Coloca-a de novo na cintura, sem desviar os olhos de mim.

"Eu... Sim, eu quero." - Estou assustado com a decisão que tomei, e nunca havia pensado nela desta forma. Nunca pensei nele, sequer... Vontade estúpida de chorar. Controlo esta vontade e pulo da cama para pegar meus sapatos. Não me reconheço mais. Kurama Youko, tão respeitado em todo o Makai... Desabando por tudo e por nada. Há menos de cinquenta anos, eu riria de quem me dissesse que este dia chegaria... Da mesma forma que eu teria gargalhado com prazer de quem me dissesse que eu iria me apaixonar...

******
 
 

Ele está me leva pela mão, mais parecido com o Hiei por quem me apaixonei, e a conclusão me faz ter saudades do que ficou no meu quarto. Não chego a ir perguntar para minha mãe qual era o cemitério em que meu pai, ou melhor, o pai de Suichi, foi enterrado. Deixei que Hiei me leve, na sua incrível velocidade, até longe de casa. Paramos bruscamente, em uma alameda vazia no anoitecer deste Domingo extremamente calmo na cidade. Ele me pergunta sem palavras qual direção seguir, e numa certeza que se faz dentro da minha cabeça, eu aponto o caminho da esquerda, e bem mais normalmente, vamos por ele, caminhando.

Não imagino o que me dá essa certeza. É uma certeza construída de recordações que não me pertencem?! É uma direção que sei que é descoberta pela dor que sinto, que não conheço, mas meu coração sabe...

Após um bom tempo sem encontrar ninguém (acho que Hiei desconfia de que não sei o que estou fazendo, como poderia saber?), quando nossas sombras projetadas no asfalto já são longuíssimas, de longe eu posso ver, por ser mais alto, e por estes olhos verdes do morto Suichi Minamino, o pai, o pai deste corpo, ainda serem quase tão bons quanto os do Youko, também já morto, as grades enferrujadas e meio tortas de um cemitério que nem eu sabia existir daquele lado da cidade... Quase começo a rir com as mais absurdas conclusões que o pensamento me arranca. Se eu estou morto, se o Suichi de óculos e cabelos curtos também, isso quer dizer que ambos somos fantasmas, certo?

Mas se ele está morto, definitiva e irremediavelmente, ele não deveria ter estado no meu quarto... deveria?

É um pensamento cruel, mas inevitável. Não quero pensar nas consequências que aquela visita significa. Vou em frente, com minha mão segura pela de Hiei, e de repente ele me abraça, com a cabeça debruçada em meu peito, e seus braços em torno de mim.

"Eu sei que quer ir sozinho, Kitsune, mas eu estou aqui. Sabe disso, não?"

"Claro que sei."

"Então tente não fingir que é indestrutível de novo, e lembre-se disso, de que pode me chamar, se precisar de mim..."

"Eu te amo, Hiei."

*****
 
 

Com um salto, chego ao alto do muro do cemitério. É um cemitério bastante antigo, túmulos de família, lápides esquecidas de famílias quase tão antigas quanto eu mesmo, o Youko de mil anos. Um calafrio como os da noite anterior retornam. Quero pensar que é só uma lembrança da noite de cão que tive. É primavera e ainda está bem claro por aqui, e eu nunca temi os mortos, nem a terra onde eram sepultados, mas agora, de pé aqui, sobre um muro cheio de limo, olhando as lápides, aprendo mais este temor. É um temor de se ver alguém que se ama perdido para sempre, sob sete palmos de terra escura, eclipsando toda uma vida. Vida...

Ainda não penso com certeza se amo aquela homem que me visitou de manhã. Eu poderia amar o pai que não tive?

Pensando bem, pelo que meu caráter se transformou desde que nasci neste mundo, eu amaria qualquer coisa que me amasse também...

Outro calafrio.

Sacudo a cabeça afastando reflexões inúteis.

Com outro salto, desço do muro, e sigo o mapa que minha intuição desenha. Cheiro de flores velhas, das frutas que se deixa nos túmulos, cheiro do capim alto que cresceu entre as fendas das pedras. Ouço um suspiro, mas não tenho certeza de que tenha sido meu.

Queria ter ficado longe deste lugar de morte, longe da dor.

Por Inari, o que foi isso?

No meio dos túmulos, algo se moveu, e posso apostar o que quiser nisso, não é humano, nem caminha como tal!!!

Não percebo nenhuma presença humana por perto e nem de longe. Corro entre os túmulos, me deixando enganar por minha própria sombra e por meu próprio medo.

"Que está aí?!" - Grito algumas vezes, seguindo um rastro de um cheiro que é muito parecido com o meu.

Sei que está se movendo, pulsando...!!

As árvores estão farfalhando, os arbustos também!!

"Quem está aí???!! Apareça!!"

Invoco meu Ki, até sentir que as raízes por perto de onde estou indo estão se movendo sob o solo, me acompanhando. Inútil.

Já começa a ficar escuro. Paro ofegante na frente de um descampado, onde, além dele só existem árvores. Essa coisa quer me enlouquecer! Caio sobre meus tornozelos, debruçado na pedra de uma sepultura, e sem pensar, eu olho para a lápide, numa súbita curiosidade de saber a quem ela pertence, e qual não é minha surpresa, ao ler, em letras escuras, debaixo de um retrato familiar, o nome de Minamino...

*****
 
 

Desconfio seriamente de que o nome de Minamino seja amaldiçoado.

Exaurido de tantas loucura, bato com a testa algumas vezes na pedra, tentando despertar de um pesadelo que é real, e sabendo que estou acordado.

De novo, quando vejo meu rosto no retrato do túmulo, a vontade de chorar retorna. Retorna também a sensação de que não estou só. De que um coração bate perto do meu. Sem pensar, eu me viro, e fosse o que fosse, desaparece, mas defino sua silhueta, contra o céu que está quase tão vermelho quanto os olhos de Hiei...

Paro de respirar um momento, e torno a olhar para a lápide. E ele está alí, também.

Mas não desaparece desta vez. Está bem parado, me observando, parece estar me observando, na verdade. Ele olha com muita curiosidade para a minha cabeça, de um lado para o outro. Me ocorre num susto maior ainda do que vê-lo, que talvez ele esteja vendo minhas orelhas de raposa... Meu rosto esquenta de vergonha, e eu me sinto nada mais que um filhote indefeso, quando ele começa a falar...

E, com um terror que me engasga, eu vejo fios escuros de sangue, quase nítidos demais para serem de apenas uma alucinação da minha cabeça cansada, escorrerem por seu rosto calmo e perplexo e angustiado, e pingarem pelas mechas de seu cabelo vermelho, até caírem no chão...Seus lábios quase não se movem, como se estivesse se esforçando para fazê-lo... E ele fala...

"Ilumine meu caminho...!"
 

 
CONTINUA.....