Descobertas
 
 

Por Astásia
 
 

Capítulo 2 - Músicas de Ninar


Minha garganta se fecha quando escuto sua voz dizendo aquilo. São palavras que não penetram na minha compreensão...!!

É a minha própria voz que diz isso!! Era como se eu estivesse me vendo agora com a camisa, antes de um azul claro, já quase negra, no colarinho, de um sangue que não pára de correr. E ele parece sentir tanto medo... Seu rosto é calmo como sempre as fotos mostravam, mas a angústia debaixo dele é atroz.

Meu pai...

"Ilumine meu caminho, Kurama..."

Céus, é muita loucura!! Demais para meu resto de juízo!! Ele sabe tão bem quem sou eu que me chama por um nome que só eu sei ser o meu verdadeiro...!! Ele sabe que eu sou um demônio - raposa? Faz idéia do que fiz à existência de sua criança? Um labirinto de pensamentos insensatos não me deixa pensar. Tenho vontade de gritar por Hiei, mas tudo o que faço é crispar os lábios, sem poder conter o par de lágrimas grossas que descem por meus olhos.

Reconheço a voz que cantava para que eu dormisse à noite, mesmo sabendo que eu nunca chorava, quando era um bebê. Se ele sabe tão bem o que sou, agora, depois de morto, o que impediria, então... Não, é horrível demais... sórdido demais...!!

Seu rosto parece pálido sob as fitas de sangue, vivo, tanto que sinto o cheiro metálico cortando o ar, e sua forma é tão nítida que os raios do sol que se põe resvalam nas linhas de sua face tão calma.

"Não entendo..." - Caio para o lado, tentando me apoiar na pedra para levantar.

"Não precisa entender... Kurama... Ilumine meu caminho...!"

"Eu não entendo!!"

"Não consegue ver que não está acabado?" - Ele faz menção de abrir os braços, o sangue já escorre para seus ombros, e ele se torna uma visão aterrorizante. Um fantasma terrível, feito dos pedaços de cada uma das minhas culpas...!!

"Mas eu ..."

"Cante, Kurama... Ilumine meu caminho...!!"

Deus...!! Fico de joelhos. Ele não está há mais do que quatro passos, senão menos, de mim!! E é aterrador. Eu SEI que ele está morto, que cada mínimo pedaço dele apodreceu debaixo da terra, que estou falando com um fantasma, que isso é um atestado da minha loucura, que nem quando eu era um demônio verdadeiro, isso jamais aconteceu...E sei que há algo de muito errado com isso tudo, comigo, com essa maldita situação... E principalmente com ele.

Não consigo tirar os olhos dele.

Sem se mover, ele se aproxima de mim, e segura meu rosto entre mãos sólidas como a mais perfeita ilusão, e lentamente encosta sua testa na minha, olhando-me tão profundamente nos olhos que sinto que ele conhece cada segredo meu, melhor do que eu mesmo.

E o que passa por minha mente, pela frente dos meus olhos, como num filme em retalhos, é tão chocante e apavorante, que se fixa em mim, como uma peste, e eu não consigo mais pensar...

 

_________

 

Vejo o rosto preocupado de Hiei na minha frente, ele me sacode de leve, me chamando, com urgência, com inquietação. Há um alívio em sua expressão quando digo seu nome.

"Você se machucou? Caiu?"

"Não!! Eu acho que não... Por que, Hiei? Você me viu cair?..." - Eu pergunto, querendo que o que digo seja a verdade, que tudo o que vi e ouvi e senti sobre minha pele e o que estava se entremeiando com o que pensava, agora, fosse produzido por um galo na cabeça, de um tropeço em alguma calçada do cemitério, que tudo fosse um mal entendido... E eu mesmo quase começo a acreditar nisso, como quase acreditei que na noite anterior, também fosse... E logo vi que não era.

"Não, Raposa, mas é que tem sangue no seu rosto..."

"O quê?!"

"Tem sangue no seu rosto! E marcas de dedos, mas eu não senti nenhuma energia por perto, desde que você pulou para dentro desse lugar..."

Consigo me firmar, sentado, buscando apoio na grama e nas folhas sêcas do chão. Ainda não está de todo escuro, só o céu está mais vermelho, e uma faixa lilás surge do lado oposto ao qual o sol se põe. Ele não viu nada?

"Mas, então, Raposa, eu senti uma coisa muito forte, mesmo do lado de fora, da árvore onde eu estava esperando por você. Era uma energia muito parecida com a sua, mas não poderiam haver dois Kuramas no mesmo lugar!"

"Hiei, o que... como eu estava quando você me encontrou?..."

"Parado, aí, feito um baka, eu me assustei de ver sangue em você, mas pelo visto, não é seu mesmo. Já está secando." - Hiei se ergue do meu lado, me ajudando sem esforço, à levantar do chão, espanando alguma poeira presa em meu cabelo.- "Venha, eu ajudo você a tirar essas manchas, ou a sua mãe vai enlouquecer só de imaginar o filhinho querido machucado..."

Até sentir sua ironia é um alívio. Mas não me distrai dos pensamentos inquietantes que estão soando em meus ouvidos, e o mais estranho de todos, é que não me pertencem. E eu sei disso. Com toda minha alma, eu sei disso!!...

 

__________

 

 

Vamos andando pela alameda, a mesma que nos levou ao cemitério, o céu, já mais lilás do que vermelho. Meu rosto já está limpo, mas minha cabeça está cheia. Tento parar de pensar em meu pai, todo ensanguentado, mas é quase impossível, doeria menos chegar próximo de minha mãe e dizer-lhe com todas as letras o que é o filhinho dela. Absurdos, absurdos. Vou realmente fazer uma loucura, se não organizar meus pensamentos logo.

Hiei desconfia de que não lhe contei tudo, questiona meu silêncio, me pede para falar se fêz algo errado, se me magoou. Não, Hiei, o problema não é com você. É comigo. Eu preciso conversar com alguém, gostaria do fundo do coração (Que é seu, nunca duvide...), que você pudesse ficar do meu lado agora, mas eu sei que à contragosto eu tenho que ficar só, ou vou enlouquecer, e enlouquecer você também, com essa tristeza. Eu quero poder dizer tudo isso, mas apenas olho para ele, e baixo meus olhos sem resposta alguma. Eu quero voltar para casa. Quero a minha mãe, minha raposa de pelúcia, dormir bastante. Ir para o colégio no dia seguinte e fingir que isto não dói. Mas sei que as coisas não vão tomar o rumo que eu quero.

 

__________

 

Na minha cabeça ecoam pensamentos que não me pertencem, recordações, que mais do que dessa vida humana e dissimulada, não são minhas, nunca poderiam ser. São fortes, que não compreendo. Estou muito cansado, e sem fome, recuso os biscoitos que minha mãe me oferece quando me vê chegar em casa, pela porta da frente, enquanto Hiei entra pela janela de meu quarto, mas aceito o copo de leite, que aquece meus dedos pelo vidro do copo. Na mesa da cozinha, ela se senta na minha frente e passa a mão macia em meu cabelo. Me entende mesmo que eu não diga nada. Mas não sabe no que estou pensando.

" Mamãe..."

"Suichi..."

Falamos ao mesmo tempo. Rimos juntos. Peço que ela fale primeiro, pois talvez seja mais importante.

"Suichi, você ainda está triste pelo que eu lhe fiz? Está tão distante..."

"Sempre estive distante..." - Sorrio para lhe confortar da verdade da minha resposta. Assim, posso dizer a verdade sem medo de a machucar...

"O que está acontecendo com você...?"- Ela pergunta, baixo.

"..."

"Como o... como o papai morreu?..." - Acho que demoro bastante para conseguir falar.

Ela fica, por um certo tempo, imóvel. Desvia os olhos dos meus. Será que foi tão horrível assim? Tenho medo do que vou ouvir, do mesmo jeito de que tenho medo de tudo o que me cerca, desde que descobri a verdade sobre quem ele era.

"Ele?... No acidente de carro, Suichi. Eu lhe contei quando você me disse que os seus professores perguntaram sobre isso no colégio... O carro perdeu o freio, você sabe..."

"Como assim? Estava chovendo?"

"O guarda rodoviário disse que o seu pai perdeu o controle da direção, numa curva, como se estivesse sem freio, mas... O que restou... Do carro, não ajudou muito à descobrir." - Sinto uma tensão em sua voz baixa, escolhendo as palavras. Você sabe que não pode mentir para sempre para mim, mamãe...! Penso no quê ela pode estar me escondendo, agora.

"E ele?... Como ele morreu? O carro pegou fogo?"

"Não. Não estava chovendo, também, mas foi uma pancada no alto da cabeça. Uma pancada e um corte. Ele morreu com a hemorragia, pelo que o meu sogro me contou, depois. Mas estava vivo quando foi para o hospital."

"Você ainda falou com ele, mamãe?" - Não sei por que raios pergunto isso, nem por que outros raios estou enchendo-a de perguntas vazias que não fazem sentido algum, como nada tem feito muito sentido, desde que me dediquei a bisbilhotar os armários. Ignoro o que me faz querer saber o que houve. Eu só sei que talvez tenha aí uma resposta, ou uma pergunta ainda maior, quem sabe?...

"Foi o meu sogro que o viu. Eu... não fui logo para o hospital... Você... Estava de colo, ainda... Chorou a tarde inteira. O acidente foi ao anoitecer... Ele estava... e-estava voltando do trabalho!..." - Sua voz some, no fim do que disse, e me dá as costas, sai rápido da cozinha, escondendo seu choro de mim. - "Meu Deus... Eu não me esqueço nunca..."

Fico parado no mesmo lugar, perdido. Eu devo ter perdido o juízo mesmo, penso. Que diferença faz, afinal, se ele morreu e isso é imutável?... Não vai mudar nada se eu souber até o que ele pensou quando fechou seus grandes olhos verdes para sempre...

Olhos verdes como os meus...

Vou atrás dela, sinto uma urgência de morte em cada movimento que faço. Shiori, eu a vejo agora, está em seu quarto, o mesmo de quando ainda não era viúva. Seus braços estão cruzados perto do corpo, ela treme.

"Você sempre disse que eu não chorava nunca."

"Mas só dormia quando ele cantava para você..." - Sua voz é tão amarga. É como se nem ela entendesse o que se passou... E eu também não...

 
 
CONTINUA....