Descobertas
 
 
Por Astásia
 
 

Capítulo 3 - A Ópera dos Fantasmas


...Nesta noite, faço o que nunca pensei que faria tão cedo. Vou para meu quarto, sem falar mais nada com Shiori. Nosso assunto se esgotou. Inútil falar com meu avô paterno, já que ele passou a odiar minha mãe depois do acidente, culpando-a, e se recusando a tornar a me ver. Não tenho duvida alguma que ele me odeia também.

Quando atravesso a porta, não me dou o trabalho de olhar para o lado onde Hiei está, viro a chave e vou tomar um banho. Não quero jantar, quero ficar aqui. E organizar minhas idéias.

Quando volto, enrolado na toalha, vejo finalmente Hiei, esticado sobre meus lençóis, de olhos fechados, mas balançando um pé de um lado a outro, sobre o calcanhar. Engraçado. Ele até parece humano, agora. Está sem as botas, sem a capa, a espada está escondida em algum lugar que não quero adivinhar, só com as calças largas e as meias. Eu riria se tivesse mais disposição. Me aproximo dele tentando pensar no que dizer, como pedir que me ajude. Que me ajude a clarear as coisas que o fantasma colocou em mim, feito espinhos na minha carne...

Hiei abre os olhos com uma doce desconfiança, e se senta, abraça minha cintura. Sinto vontade de pedir que vá embora, mas meu vazio é tão grande, e eu o quero... mas faço o que nunca imaginei que faria, quando ele me deita na cama, e puxa minha toalha, seca minha pele com seus lábios pequenos...

"Hiei..."

"Kitsune? Machuquei?"

"Hoje não, Hiei... Por favor." - Fecho os olhos para não achar o ódio dentro dos dele...

Ele se afasta devagar, com cuidado, até se sentar na ponta do colchão, bem longe de mim. Não há raiva no vermelho dos seus olhos. Ele me entende, eu quero acreditar.

Me olha daquela sua maneira desconcertante, cheia de curiosidade, me vendo pegar a toalha de novo, acompanhando meus gestos quando visto a peça de baixo do pijama. Nunca recusei seu amor em noite alguma, por mais cansado que estivesse, por mais tarde que fosse, mas há primeira vez para tudo, não é?

Ele faz com que eu me debruçe em seu colo e enxuga meu cabelo. Carinhos. Perguntas sem palavras. Um beijo em minha testa. Um beijo no canto de seus lábios. Sim, Youkai, eu também te amo.

Somos monstros e sabemos disso.

Você deve estar querendo me matar por eu estar sofrendo por tolices de nigen...

 

__________

 

Pela primeira vez na vida, não quero ir para o colégio. Amanheço sem a quentura macia do corpo de Hiei ao meu lado. Beijo minha mãe e vou enfrentar os fatos da vida de frente. Começando pela morte...

Fui no cemitério, no domingo, e sei que meu pai não está em paz em sua cova, o que seria o normal... É duro, mas é verdade. Ele veio me alegrar quando eu precisei, da mesma forma que cantava para me fazer dormir, mas quando eu fui ver seu túmulo, ele me pediu ajuda. E eu quero ajudar e não sei como. Ele me deu algo que não sei o que significa. Quando encostou sua testa ensanguentada na minha, deixou dentro da minha cabeça coisas que não entendo.

Sua morte foi tão estranha que deixou a todos perplexos, afinal, ele dirigia bem, não era tarde, e disso tudo só se pode culpar o tal freio. Mas, se fosse isso, não haveria motivo de ele me pedir que iluminasse seu caminho.

Já escutei isso antes.

Foi há muito tempo.

Estou agora sentado na beirada de uma ponte, no meio do bosque que atravesso quando volto da escola.

Penso sinceramente no que faria um fantasma dizer aquilo. Ele está preso a este mundo? Tem dívidas típicas de fantasmas?... Sou um detetive espiritual. Eu deveria saber essas coisas. Não sei.

Não quero saber, mas quero tirar aquela sombra de medo e angústia de dentro dos seus olhos.

Há algo perto de mim! Não tenho coragem de olhar... Veio de repente! Minhas mãos se fecham, até que eu sinta as unhas se cravando nas palmas, essa dor tem de me fazer acordar...!! Está tão perto... Mas sua respiração é tão longe. Não posso dizer que seja uma ilusão criada pelas sombras de um cemitério. Onde está? Não está em lugar algum! Não sei de que direção vem, mais uma vez, essa sensação!!

"Me deixa." - Ouço minha voz dizer, minha garganta apertada, falo com dificuldade.

"..."

Sei que essa coisa está detrás da minha costa, sua respiração é tão cansada... O que mais posso dizer? Eu tenho medo. Papai, eu tenho muito medo! Não me peça ajuda, eu sou só um demônio com rabo de raposa...!!

"Me deixa, papai, por favor... Eu não sei como ajudar você...!"

"... Vai saber. Filho, eu ajudei você quando estava se afogando..." - Sua voz é tão real... Poderia ter me enganado. Penso se não é um demônio tentando me enganar. Uma vingança de qualquer uma das tantas pessoas que dariam um olho para me destruir (mas não posso tirar uma conclusão dessas sobre Yomi, por exemplo, afinal, eu mesmo mandei que o mercenário o cegasse; é uma conclusão mórbida, mas não deixa de me dar vontade de sorrir...). de alguma criatura a quem eu matara ou magoara. E não foram poucas...

Mas o que acontece acaba com todas minhas dúvidas.

Quando ele diz isso, eu me lembro do que ele colocou dentro da minha mente, e de uma coisa tão terrível, que me aconteceu há tanto tempo, que eu nunca disse a ninguém, algo que eu quero esquecer, que só eu sei como me senti... No momento em que encarnei neste corpo.

"O quê?!" - Minha voz desta vez não tem resposta. Falo sozinho mais uma vez, descubro quando me viro e não o vejo, mas o sinto.

Giro sobre o corpo, eu estava olhando para a água. Agora, estou olhando para uma ponte vazia...

Exatamente como estou me sentindo.

 

__________

 

Minha mãe sabe que não fui para a aula. Digo isso a ela com todas as letras. Entro em casa, no meio da manhã.

Me escondo de mim mesmo, ou pelo menos, eu tento, me encolhendo em mim mesmo, abraçando os joelhos, no sofá da sala escurecida pelas cortinas fechadas. Minha mãe está no trabalho. Controlo a vontade de procurar ajuda. Não por orgulho, mas sei que não adianta.

Eu me lembro de quando Kurama Youko morreu, no Makai.

 

_________

 

Eu me lembro e só eu sei o que senti quando aconteceu.

Eu quase cedo à tentação de pensar nisso quando ouço a chuva se chocando contra minha janela, me faz pensar em como chovia naquela época do ano. Agora não está chovendo, há, sim, uma manhã linda lá fora, e um fantasma lavado de sangue, que agora temo enxergar em cada canto ao meu redor.

Só eu me lembro que cheiro tinha a lama do pântano da Nogai, misturado com o cheiro do meu próprio sangue. Todos os homens do meu bando, mortos, e minha costela atravessada pelo golpe de lança que quase me matou para sempre, e a minha pele, caçada, por ser uma pele de Youko, por ser a do mais terrível ladrão do Makai, por haver uma recompensa oferecida por ela.

Ah, como chovia.

Nunca espero pensar nisso. No tamanho do meu próprio medo, naquela noite, e é tão claro quanto se eu houvesse acabado de sair de lá, como se não houvesse sido há dezessete anos na contagem nigen... E eu correndo, cada osso meu doendo do frio, me rasgando com as raízes afiadas debaixo da água suja, e eu pensei em Yomi, no horror que lhe fiz, pensei na minha mãe-youko, que não ajudei, que não perdoei. Pensei em meu irmãozinho, em meu pai, em Kuroune... Em todas minhas culpas. E me lembrei de que sempre lutei para estar sozinho em meu pequeno reino, e que eu conseguira, estava finalmente só, e que mesmo dos meus amores eu fizera tudo para estar livre...

Pois, bem, Kurama Youko, tome cuidado com seus desejos...

Meu pai-youko dizia isso, ele não se enganou.

Meus desejos se realizaram.

Meu sangue encharcava a túnica e fazia uma trilha no ar que qualquer um poderia seguir. Latidos. Gritos, as tochas de longe, acesas mesmo na chuva, iluminando meu último anoitecer como Youko. Arrisquei meus passos nas águas negras do Nogai, esquecendo do medo de não achar o fundo dele, e lembrando do medo que tinha do escuro que se insinuava nos meus olhos, detrás da tontura.

Pisei. Fui traído por minha energia que se esgotava, e agitava desordenadamente os vegetais onde eu pisava. Uma raiz se enlaçou em meu tornozelo , e me puxou para baixo. A chuva clareou minha vista, mas me afoguei. Me puxou de novo, engoli água... E estava tão escuro... E eu tive tanto medo quanto o filhote temendo o escuro, que fui um dia...

E mesmo quando eu consegui me segurar nos galhos apodrecidos que pendiam perto da outra margem... Tão longe... A outra margem estava tão próxima que eu a teria alcançado somente se esticasse o braço, mas a morte beijava meu pescoço...!! E eu tive tanto medo. Estava tão longe. Se eu chegasse lá, tudo estaria bem, eu sabia, com uma inocência infantil e boba, havia luz, alí, entre os troncos negros e retorcidos, mas havia... E eu queria chegar lá, mas estava ... tão longe!!

E assim, mesmo tão perto, eu não tive forças de atravessar a chuva cada vez mais forte e o escuro cada vez mais denso, mais frio.

Meus pés afundaram mais na lama, e eu afundei de novo, estirando o braço na direção da minha salvação, com uma fé cega de que se eu chegasse lá, a dor passaria... E o frio também.

As águas me cegaram... Eu não vi nada... E pela primeira vez na vida, eu implorei... Não sei se fui ouvido.

Mas sei que minha mão foi segura, e aquela coisa quente me puxou.

De olhos fechados, cego daquelas águas e do medo, eu ouvi os gritos de ira e surpresa, dos caçadores, achando somente minha túnica, que sempre era tão branca, minha vaidade, tão impecável... Boiando, presa nas raízes, nas escuridão do pântano de Nogai...

Tão longe.

 

__________

 

A primeira coisa que percebi, era que a luz era forte demais para que eu abrisse os olhos logo.

Perdido.

Eu sabia que não queria morrer, que tinha medo.

Agora, eu estava sendo abraçado, e naquele estranho abraço quente e próximo, eu era mais amado do que fora em toda minha vida, e eu não entendi. Reconheci o cheiro, parecido com o meu... Um inconfundível cheiro de...Deus!!... Tão perto.

 

__________

 

Estou correndo pela rua, com uma página rasgada da lista telefônica metida no bolso do meu casaco.

Estou fugindo de uma recordação que não deveria me pertencer.

Ela é de Shuuichi, meu pai.

Como ele poderia saber o que eu sentia?! Saber tão bem o tamanho do meu medo?! Aquele era o meu segredo... Costumava ser.

Corro pela rua, sem pensar no que as pessoas devem estar imaginando, me vendo descabelado, passando entre elas como um louco, como um raio.

Vou para a casa do meu avô, Hirose Minamimino. Não tenho medo algum de suas iras por minha família, e nem quero pensar nas grosserias que vou fazer se ele não quiser me ver... Ora, dane-se, a culpa não foi minha, disso tenho certeza. Minha consciência está tranquila sobre isto...

Mas não sobre o que ele disse antes de morrer. Ele deve ter falado antes de morrer...!!

E eu quero descobrir isso agora, antes que seja irremediável, antes que a culpa me devore, que eu enlouqueça, com seu fantasma em meus calcanhares, com suas recordações estranhas em mim!! Eu quero saber o que ele queria, antes de morrer...

E quero saber QUEM ele era de fato, quando viveu.

Eu quero conhecer você, papai.

Me espere!

 
 
CONTINUA...