Acontecia
de novo, Kurama sentia-se hipnotizado por aquela visão, pelos olhos
de Hiei... por sua boca. Mas não eram as únicas coisas que
o faziam esquecer-se de que o chão cedia num estremecer de terremoto
a cada passo que o gigante negro dava em sua direção, seus
roncos fétidos pelo ar. O coração daquela rosa disparava
mais ainda, todas as perguntas que um dia tivera a fazer estavam mais uma
vez sem resposta, porque estava perdido. Decerto que sempre o estivera,
mas dava-se conta de que não poderia dar mais um passo, estava incapaz
de fazer qualquer outra coisa além de aproximar-se de Hiei.
Seu
lento respirar...
Sua
boca...
Aquele
fio de saliva que já chegava a deslizar por seu pálido pescoço...
Seu
desejo de beija-lo, mais forte ainda, aquele cheiro doce de flor, que Hiei
exalava, enlouquecedor. Era uma promessa de beijos ainda mais doces, mas
eram apenas sensações, Kurama não conseguia mais pensar,
tornando-se somente sensações que faziam seus instintos mais
selvagens aflorarem, não importasse que ao seu redor o mundo estivesse
se acabando em fogo, não importava que todos estivessem morrendo
e ele soubesse que encontraria a morte naqueles lábios...
Impossível
resistir...
Soltou
as mãos lentamente das raízes em que se segurava, ignorando
a aspereza que o feria, mas não era a dormência da raiva que
agora o impedia de sentir qualquer coisa, não estava mais se lembrando
de que não era um animal, todos seus impulsos eram essenciais, básicos,
fome, calor, medo, desejo... tudo era apenas uma sensação
que o fêz rastejar pela lama, aproximando-se como um pálido
felino de mãos e juba vermelhas, suas pupilas dilatadas, evitando
qualquer ruído, seu respirar abafado pela ânsia, arquejando
brevemente, o cheiro tão doce... Kurama estava alheio a se deixar
rastejar, tão servil, implorando por alguma coisa que não
sabia conscientemente o que era, e nem importava.
Mas
quando viu que não era a única criatura afetada por aquela
visão, por aquele cheiro, voltou a ficar imóvel, seus dedos
se fechando na lama escura da outra margem do córrego, e somente
olhou, indiferente, no mais invejoso, o que também surgia de entre
as folhas, perto dele, aquele focinho fino de gazela, cheirando, esbarrando
o queixo de Hiei, cheirando também suas roupas sujas... A gazela
também não parecia se importar muito com os rugidos, com
a ameaça do híbrido cuja destruição era algo
que parecia tão pequeno perto do que acontecia agora...Pois
aquele não era um monstro de verdade... Aquele sim, este sim era
um verdadeiro monstro...!! Impressão apenas sua ou Hiei estava maior?
Ou via-o assim por que estava parado? A lama deslizava entre seus dedos
compridos e muito vermelhos, da mesma forma que a língua da gazela
deslizava sobre a saliva de Hiei, subindo por seu pescoço como se
encontrasse algum prazer profano em faze-lo, sorvendo a saliva que também
estava sobre o queixo dele, cheirando, procurando. Kurama estremeceu e
sentiu o ímpeto de fugir, ao mesmo tempo em que a gazela também
sentiu isso, quando os olhos de Hiei deixaram subitamente, de estarem perdidos
no espaço para fixarem-se nela, e tudo acontecia tão rápido,
tão selvagem que era uma perfeita obra de arte do terror, o terror
estava nos olhos da gazela, enquanto ela sentia que estava perdida, perdida
como estaria Kurama se fosse ele a aproximar-se primeiro.
O
animal não foi rápido o bastante para escapar do salto, e
não foi forte o bastante para se livrar das unhas afiadas que rasgaram
fundo seu couro, abrindo-o quando seu dorso foi agarrado em um abraço
de morte, e a doçura daquela saliva que era um puro néctar
de flor venenosa foi a última coisa que provara antes de morrer,
quando Hiei aproveitou-se daquele descuido, da pouca distância, para
lançar a cabeça para o lado, rompendo as veias do pescoço
da gazela, fazendo o sangue espalhar-se sobre si, sobre a terra, sobre
as folhas ao redor...
Então,
Hiei a devorou, o calor da carne sendo despedaçada a dentadas ferozes
e famintas podia ser percebido até na distância em que Kurama
estava.
Tudo
tão rápido.
Tudo
tão perfeitamente violento e natural.
Todos
seus gestos quase ocultos pela penumbra das árvores, pelo escuro
de entre as folhas e galhos e raízes expostas.
O
som da carne sendo vorazmente devorada o fez pestanejar. Poderia ter sido
ele. Deveria ter sido ele. Aquela era a sua doce flor de fogo, o menino
que não se deixava tocar. Era fascinante, era terrível, e
por isso era encantador. Genkai não precisava ter criado mas uma
aberração para adornar as sangrentas lendas que viviam naquela
floresta escura e desabitada, somente para ver-se livre de Kurama. Kurama
teria se entregado passivamente a morte naqueles lábios pequenos
e deliciosos, deixaria com todo o mais pervertido dos prazeres que fosse
a sua garganta a próxima a ser rasgada para saciar aquela fome impressionante.
Mas
não teria este prazer tão cedo, talvez nunca chegasse a experimenta-lo.
Haveria de morrer sim, por aquela hedionda criatura que estava exatamente
a um passo deles. Vencendo precipitadamente as distâncias, agora
tão grande e esguio, um tanto humanóide, que conseguia já
arrancar as árvores menores em seu caminho, e o fazia sempre com
aquele rugido, gritando e esperando como se o estivesse chamando. E era
indecente e nojento Kurama descobrir que aquela coisa estava chamando por
ele mesmo. Por ele!! E pior, ele compreendia naqueles sons que ele era
procurado, que era chamado,que com
a obediência de uma criança, aquela aberração
fazia o que Genkai ordenara. Farejava o ar, expandia um youki distorcido
em busca do dele, que agora estava contraído ao máximo que
podia, tentando não se fazer perceber. Seu cheiro de rosa era único
naquela floresta do Makai, era inconfundível de todas as flores
daquele mundo, era tão estranho a tudo o que era natural ali que
era como ser um intruso em um mundo no qual ele deveria ter seu lugar,
pelo sangue que dividia, naquele laço profano de seu nascimento.
Escutava
os rugidos muito mais perto, mais a escuridão natural da floresta
não deixava que ele visse o que estava logo tão perigosamente
perto. Hiei continuava naquele estado de quase transe, devorando, aquela
carne rasgando-se em um ruído baixo e intimidador. De repente, um
par de mãos... Não, reconheceu que não eram mãos!!...
Eram garras nuas de pelos, mas de dorso coberto de negros e longos espinhos,
abarcavam num só gesto duas árvores, que fechavam as margens
do riacho do resto da floresta, impedindo que fosse possível seguir
por ele mais adiante. E, quando aquelas garras apertaram, e puxaram, as
árvores não se partiram, não estremeceram com seus
grossos caules partidos, e sim foram arrancadas inteiras do solo, grandes
torrões de terra caindo pelo ar quando elas foram erguidas e jogadas
longe, e naquele curto espaço de tempo, em que foram tocadas pela
fera, estavam quase podres, secas e se desmanchando.
Não
havia engano nenhum, a fera estava agora cara a cara com Kurama, e seu
rugido era tão alto, tão forte, que o ar deslocava-se numa
lufada fétida. Aquele híbrido não tinha alma. Não
importava opoder que tivesse, a
força, mas não tinha alma, era como aquele que havia morrido
ao sair ao sol, na prisão onde Genkai estava. Mas nem de longe o
medo que sentira naquele dia se comparava ao de agora, não havia
escuridão dissimulando as formas medonhas, e não havia lugar
algum para onde pudesse fugir, e nem fazia idéia de como mata-lo,
não havia certeza nenhuma sem que fosse a de que queria lutar, não
se deixar render-se assim.
O
monstro de espinheiro estava olhando para ele, esperando por um gesto para
atacar. Estava agindo como uma serpente que montasse o bote, esperando
que o medo fizesse Kurama se trair e tentar fugir, o que seria muito pior.
Por um momento, Kurama viu a si mesmo fazendo aquilo antes, também
sendo um monstro tão cruel quanto aquele e mais uma vez sentia que
era aquilo que estava se tornando. Deslizou a mão pela lama, e mesmo
que a terra estivesse fria, ele sentia que seus dedos se aqueciam, o vermelho
subia por seus braços, enquanto ele contava as bufadas revoltantes
daquele monstro, cuja face era muito parecida com o esqueleto de um animal,
a cabeça descourada de um bicho, que estivesse em carne viva, seus
músculos e as órbitas marrons de seus olhos muito expostos.
Revoltante. Genkai não dera a oportunidade de viver a nada que valesse
a pena, exceto Hiei e aquele híbrido viera para mata-lo também,
no final das contas.
Estava
concentrando seu youki para reagir de uma só vez, mas também
não poderia deixar Hiei ali, como estava gora, com o término
de sua refeição: sentado no meio de todo aquele festim sangrento
e olhando para suas próprias mãos, lavadas de sangue. Mãos
tão pequenas... Ele era todo tão pequeno, que talvez não
conseguisse se defender sozinho!!
Kurama
encarou de volta por mais uma vez o gigante que o olhava fixamente com
suas órbitas expostas como se procurasse entender o que ele significava,
tentando assimilar que Kurama também fosse um híbrido...
Fez neste instante uma coisa que contrariava todo seu proceder, mostrara
seus dentes num esgar de fera e fizera um ruído de ameaça,
saltando sobre a lama, sobre a terra pisada daquela margem tão estreita
do córrego.
No
mesmo movimento do salto, espalhou várias das sementes que deixava
escondidas em seu cabelo, arrastando-as de lá com seus dedos (da
cor que se confundia com eles, vermelhos como o sangue que sempre estivera
em suas mãos, nesta vida e naquela que um dia fora de Kurama, o
Youko...), jogando-as sobre a lama num gesto largo, quando só havia
tempo para se erguer e pular sobre Hiei, segurando-o sobre a cintura e
usando seu peso para mantê-lo junto ao chão, em que o híbrido,
gigantesco, apavorante, arrastava as árvores dalí, tentando
pega-lo, seu avanço, emquatro
patas, massacrando o chão, revolvendo a terra, entre galhos apodrecidos
e a viscosidade que brotava de seus músculos e poderosos, gotejando
dos extremos de seus espinhos, num odor fétido que empesteava o
ar pesado do bosque, o ar carregado e sem vento, que anunciava mais um
temporal; aquele céu cor de chumbo, recortado de raios silenciosos,
a única coisa a testemunhar a luta pela vida de seres que desafiavam
a própria vida por existirem simplesmente.
Sentindo
aquela deslocação de ar agora quase às suas costas,
Kurama não sentiu que apertava com mais força ainda Hiei
contra o chão, e ele, quase inerte, não tivera tempo de reagir,
parecia acordar agora, como se houvesse despertado, mais do que ter acordado
depois de desmaiar nos braços de Kurama na noite anterior, agora,
a luz em seus olhos vermelhos parecia trazer claridade a tudo. Olhou com
susto para aquele rosto pálido e transtornado perto do seu, sem
saber se o sangue que estava na sua boca era seu mesmo ou de outra criatura.
Tentou fazer força para sair daquele abraço firme, e foi
assim que deu-se conta, olhando para o lado, que estava não mais
no meio da floresta (e ele nem sabia como havia ido parar lá...),
e sim no meio de uma vala de terra revolvida, ao redor de umas poucas árvores
que restavam, por serem pequenas e flexíveis demais para se romperem
com o gesto do monstro que os atacava, mas até estas já morriam
do jeito terrível que tudo que o monstro tocava morria, apor terem
sido tocadas por seus finos tentáculos que saíam de suas
palmas.
E
eles viram, lado a lado, enquanto erguiam-se, como a fera aproximava-se
mais e mais, com outros estrondos, com mais gritos, estridentes e quase
ensurdecedores, Hiei e Kurama sem pensar deram-se as mãos, e Kurama
tentava fazer com que ele ficasse atrás de suas costas, tentava
defende-lo, não sabia como, e ainda levava as mãos de volta
à cabeça, puxando as últimas sementes e arrastando
Hiei para que corressem, terminando de completar um semicírculo
ao redor da fera.
Hiei
nunca havia visto nada igual, nada tão terrível. Se havia
um inferno em algum lugar, e se nele haviam demônios verdadeiros,
haveriam de ser como aquela coisa encurvada, coberta de espinhos, humanóide,
de carne exposta, que os perseguia. E nem conseguia distinguir o que era
aquilo, mas reconhecia, não imaginava como, e sentia-se semelhante
a ele também, da mesma forma que sentia-se semelhante a flor que
segurava-o pelo pulso, que o largava agora, para enfiar os dedosna
terra revolta e vibrante do youki do híbrido, concentrando o seu
mesmo o máximo que conseguia, e a dor que Kurama sentiu, quando
o fez, como se seu coração fosse explodir no peito, tanta
foi a força de que precisou para não esgotar-se de uma só
vez, também foi a dor de Hiei, e também era a dor da fera.
E desta foi a dor, quase imediatamente, unicamente dela, de sentir o meio
do seu corpo varado de galhos afiados, aquelas mesmas sementes que Kurama
espalhara em meio círculo, por onde correra com Hiei, fazendo a
aberração girar sobre si mesma, aproveitando seu tamanho
para prende-la.
Só
que havia esquecido-se de um detalhe, e foi lembrado dele tarde demais,
somente quando ele viu, quando se levantava, tonto pelo esforço,
a mão de Hiei sobre seu ombro, como se querendo avisa-lo de que
algo estava errado. Aquela coisa inominável silenciara com o golpe,
como se todo o seu ar fosse perdido de uma vez, todavia, no mero instante
de imobilidade que teve, foi não para outra coisa, e sim sugar a
seiva e o youki daqueles galhos que se enviesavam em suas entranhas. Sem
querer Kurama o estava deixando mais forte.
O
que eu devo fazer? Minha espada não está aqui... Eu preciso
dela para fazer alguma algo, ou esta coisa vai acabar conosco... Por que
eu me importo com ele? Ele não é nada para mim... O que eu
posso fazer? Eu não sei o que fazer... eu não sinto o meu
youki, eu não sinto nada, somente este gosto de sangue...
“Ainda
está aí!!”
Hiei
arregalou seus olhos com aquele grito, aquelas palavras ditas por sobre
o ombro, enquanto Kurama adiantava-se, um algo que parecia uma cobra subindo
por dentro da manga de sua túnica agora enegrecida de lama e sangue,
e surgindo como um chicote, rodando no ar, estalando, fazendo seu youki
afeta-lo de tal modo que toda sua pele estava vermelha e não só
suas mãos.
Hiei
apertou as beiradas do obi, juntando-as rente ao pescoço sujo, sufocado
e friorento, mas sentindo-se também cheio, feito houvesse mais ar
dentro de seu peito do que lá coubesse. Adiantou-se, para estar
sempre perto de Kurama, melhor estar perto do que ser um alvo fácil
demais sozinho, desorientado e sem saber o que havia acontecido com aquela
energia que não muito tempo atrás ainda conseguia flamejar
nas suas palmas, mas quando tentava se aproximar, uma das patas da fera
impediu-o de continuar, e o rugido veio em sua direção, e
não adiantava em nada Kurama tentar chamar sua atenção,o
chicote se dilacerava todas as vezes que encostava em seu dorso coberto
de espinhos...
“Não
corra!!” – Kurama gritou de novo, mesmo que Hiei também percebesse
que seria um erro fazer isso. A fera estava mais uma vez concentrando-se
em olhar para ele da mesma forma que encarou aquela rosa demoníaca.
– “Não corra!... Ainda esta aí!!” – Ele dizia mais uma vez,
e Hiei imaginou do que ele estaria falando. Havia tantas coisas que queria
saber, e eram perguntas demais de uma só vez, tantas que a única
coisa que ainda poderia motiva-lo era ter aquelas respostas.
Hiei
somente olhou para ele, por entre as pernas longas, as patas horrendas,
animalescas, um arremedo humano mal feito... De uma única vez, ele
apercebeu-se frente ao que estava. Não havia dúvida de que
era um híbrido, e que Genkai havia dado seu sangue àquela
criação, por isso aquela coisa tinha formas mais impressionantes
ainda, tanta astúcia...Hiei
olhou para Kurama como a perguntar o que fazer...
Que
ironia, ele comandara exércitos, conquistara fronteiras e tivera
seu nome dito com temor entre seus soldados, tamanha era a sua ferocidade
e pela primeira vez não sabia o que fazer. Estava frente a frente
com o mais terrível inimigo...
E
somente sentia aquele algo transbordante...
Crescente...
Ardente,
subindo por dentro dele, se misturando ao gosto de sangue...
__________
“Eles
já foram convocados, majestade. Tomei a liberdade de envia-los diretamente
as fronteiras da terra de ninguém, onde estão esperando por
suas ordens”
O
conselheiro de guerra de Yomi não quis adiantar-se em mais aquele
passo dentro do vestíbulo dos aposentos do rei, tão opressiva
era a escuridão que reinava ali dentro. Suas notícias avisando-o
dos mercenários não tardaram. Restava agora ele saber o que
mais Yomi queria que fosse feito, qual ordens ele daria e...
“Se
eu não estiver sendo indiscreto, majestade... o que pretende, no
final de todas estas ações?” – O youkai de avançada
idade que era o conselheiro riu nervosamente, estremecendo perante a resposta
que era sempre um silêncio compenetrado de Yomi, sentindo as partes
de sua armadura tilintarem.
“Está
sendo indiscreto, sim.” – A voz profunda e subitamentemais
grave de Yomi veio, ele estava muito mais perto o tempo todo do que o youkai
supunhae estava quase invisível
pelas roupas que vestia... A luz que entrava do corredor pelas bandas abertas
da porta do quatro dele o iluminaram. Mas... qual raios... Yomi vestia
um traje de batalha!!
“Majestade!
Mil perdões, mas isso é...??!” – O conselheiro quase não
acreditava no que via, era como estar vendo diante de seus olhos o mesmo
Yomi de anos atas, não o rei, mas o bandoleiro que erguera seu império
ali. Não era mais o Yomi que ele conhecia... ou achava que conhecia.
Um
som de ar sendo riscado foi a única resposta que ouvira, antes de
sua cabeça tombar no chão, ainda tão rápido
acontecera e tão de repente, que ela, sozinha e inerte, ainda tentara
mover seus lábios num impropério, enquanto rolava no chão,
parando quase ao lado dos pés do sentinela que guardava a porta
do quarto.
“Você
era muito sábio, companheiro. Pena ter se esquecido daquele velho
ditado... O silêncio é de ouro.”
Então,
ele saiu do quarto, passando por cima do cadáver que inundava o
chão com um lago de sangue esverdeado e viscoso. Foi assim que os
dois sentinelas viram, em silêncio, embora impressionados e impassíveis,
o que provocara aquele inoportuno comentário do conselheiro de guerra.
Yomi
estava em vestes que não eram suas usuais túnicas, não
eram roupas de cerimonial, tampouco. Eram os trajes de batalha, de couro
negro, estreitas, fazendo com que ele ficasse parecendo mais alto ainda,
mais pálido e igualmente fazia surgir um ar de atrevimento em seus
gestos. E seus cabelos, estavam soltos do mesmo modo que sempre, mas pareciam
refletir o que havia em seu coração, e em seu andar, eles
ondulavam com selvageria, seus chifres, muito brancos, muito lisos, reluzindo
no meio deles...Saindo assim, era com se deixasse seus envolvimentos reais
para ser apenas um homem em busca de saciar aquele desejo. Que desejo?
Aquele desejo tão antigo quanto seu ódio, aquele amor que
também era um pouco disso, que também era decepção
e alegria. Ele estava descendo aos jardins do inferno que era o Makai naquele
instante, para colher a sua flor de fogo...
Não
houve quem se atrevesse a estar em seu caminho quando Yomi atravessou os
corredores, os criados acompanhando a ida de um perfeito bandoleiro, com
aquele olhar indeciso de surpresa e medo e admiração. Então,
aquele era o discreto Rei Yomi, antes de subir ao trono?... Esta também
foi a pergunta que se fizeram os soldados, dispensados, encostados todos
nas colunas e muros do pátio da frente, e do general que estava
com eles, quando o viram passar. Ao longe, atravessando os muros, indo
sozinho encontrar o desconhecido. Estavam tão concentrados em sua
bisbilhotice de soldados ociosos e covardes que não perceberam,
que quando Yomi
passou, antes de sair dos limites do castelo, quando passou
ao lado do capitão da guarda de Gandara voltou-lhe brevemente o
rosto dizendo:
“Execute-os,
os indolentes. Desertores e traidores.” – Ele se referia inquestionavelmente,
aos que se recusaram a obedecê-lo e ainda perdiam seu tempo vagabundando
tal aqueles pátios pertencessem a eles mesmos.
Yomi
lamentou não poder ficar para escutar (e somente escutar...) os
gritos de protesto e misericórdia daqueles soldados quando a guarda
interna viesse prender a todos, convocando um imediato tribunal marcial.
Erguendo ali mesmo, depois que os portões foram cerrados detrás
de si, com um pesado baque, um cadafalso e erguido também o machado
do carrasco...
__________
Uma
movimentação estranha se deu nos acampamentos que resguardavam
o limite da floresta, um campo estreito como uma garganta e opressivo,
claustrofóbico, dada a dificuldade de sair dali se houvesse um ataque.
Caso fossem atacados, aqueles soldados morreriam todos. Mukuro não
lamentaria por aqueles youkai fracos, que já morriam em simples
brigas entre si, quanto mais enfrentando aquela besta vermelha que a aleijara
mais ainda. Bando de idiotas... Pena não poder ver, da distância
que estava, ali, jogada num catre, sentindo sua carne formigar em torno
dos implantes de ligas com que reconstruíram seus ossos quebrados,
por baixo da pele, o que fazia os soldados correremtodos
para o lado mais alto do acampamento, alguns, subirem nas pedras da encosta
que isolava aquela passagem, apontando, gritando uns pelos outro, chamando.
Ela
fez um esforço e chamou por um dos médicos que cuidavam dela
depois de seu embate com Yomi... Pura sorte ter um youki tão forte
para se recuperar tão rápido... O curandeiro veio, e escorando-se
no ombro dele, sentindo os componentes de seus membros metálicos,
refeitos, estalarem, as peças deslizarem uma na outra com um estridente
que dava nos nervos... Chegando até a entrada de sua tenda, onde
foi amparada também pelos soldados que estavam por perto, olhando
somente aquela agitação, ela foi informada em termos muito
simples do que estava havendo.
“É
o fim do mundo, Rainha Mukuro.”
“Como
assim???” – Ela alarmou-se, vendo que não só surpresa transparecia
na face de sua tropa quanto medo. Desvencilhou-se dos soldados e conseguiu
se manter de pé, com dor e custo.
“Os
soldados escutaram os rugidos de um monstro, majestade, tão grande
que pôde ser visto das encostas, pelos sentinelas, que nos avisaram
aqui embaixo. Ele está destruindo a floresta, mas não parece
estar vindo neste rumo!”
“Está
indo para os abismos que fazem o outro extremo da floresta?”
“Não.
Está no mesmo lugar, destruindo as árvores, pelo que os sentinelas
viram.”
“Maldita!!!”
– Mukuro sussurrou, mordendo a língua para não dizer o nome
de Genkai, o que sempre lhe trazia mau agouro, ou pelo menos era a impressão
que tinha.
“O
que devemos fazer, majestade??”
“Por
enquanto nada. Ele não está nos atacando... Não reconhecea
espécie dele?” – Voltou-se para o chefe do acampamento, estreitando
seu olho humano, o outro ajustando-se a distância.
“De
modo algum, majestade!”
“Como
eu imaginava...”
“...”
“Genkai
fez aquilo de novo!...” – Ela deu alguns passos para a frente, escutando
muito ao longe, com seu ouvido biônico, um arrebentar de troncos.
– “Mas talvez ela ainda possa ser útil para nós.”
E
começou a avaliar o que levara Genkai a ter gerado, com parcos recursos
naquele lugar sem nenhuma tecnologia, um ser de destruição
tão poderoso, tão grande. Talvez ela também quisesse
acabar com o que Shiori, a nigen, havia criado. Motivos? Quê importava?
O que lhe importava somente era que estava muito próxima de uma
vingança, contra Kurama, a rosa, e Yomi. Ainda que esta viesse por
mãos que não fossem as suas.
Quase
poderia tentar adivinhar o que Genkai queria agora, mas ela se tornara
tão imprevisível, depois de ter enlouquecido, o poder que
tinha (ou achava que tinha) subira a sua cabeça, anos atrás,
e começara a criar híbridos perigosos como aquele, procurando
sempre, e ela o admitira mesmo durante seu julgamento, que procurava a
alma que pertencia a eles, perdida em algum limbo inexplicável,
apenas a espera de um corpo para continuarem suas vidas a partirdo
ponto em que pararam. Heresia contra todas as leis dos três mundos.
Mukuro tomara imediatamente a decisão de executa-la. E naquele dia...
Pensou
em Yomi, em suas palavras duras, em seu olhar cerrado e acusador, se é
que poderia conter as duas coisas em si, na dura lição que
recebera, de não confiarem
si mesma em demasia. Poderia ter tentado mata-lo só por ele atrever-se
a dizer o nome de Hiei. Sete meses. Sete meses sem Hiei ao seu lado no
seu reinado. Fora ele que não deixara o carrasco matar Genkai e
assumira o poder de vida e morte por ela, sendo que a única condição
para que ela continuasse viva era nunca sair dos limites do reino de Mukuro,
onde ele poderia seguramente saber onde ela estava, graças àquele
terceiro olho, o jagan violeta que ele trazia em sua testa... Mas quando
ele desaparecera...Ah, mas o que estava acontecendo? O chão estava
estremecendo...
Aquelemonstro
estava emitindo youki, caótico e distorcido, não havia padrão
algum, no entanto se ele tinha um youki, era um sinal claro de que Genkai
estava usando sangue youkai, talvez o seu mesmo, para originar aquela aberração.
E além daquele, havia um traço muito forte de mais outro,
fazendo o chão vibrar numa freqüência diferente, porém
crescente, apenas ela entre todos aqueles youkai percebia isso, o metal
das peças que compunham a parte biônica de seu corpo servia
de uma maneira peculiar para lhe indicar isto.
Não
era natural que isso acontecesse... O youki de Kurama, aquela rosa que
entrevira na escuridão da prisão não reagia assim,
havia traços dele somo um rastro que poderia seguir mata adentro,
mas não estava forte a ponto de percebê-lo vivamente. Talvez
ele estivesse morto, pois estava quase desaparecendo... O youki de Yomi,
quando a derrubou, também não. Só havia uma forma
daquela energia que fazia os metais de seu corpo vibrarem...
“Mas
ele está morto!!!!!!”
____________
Sim,
ele estava morto, ao mesmo tempo que não estava. Estava morta a
sua vida de antes, mas não as lembranças que tinha dela,
de cada instante que lhe pertencera então, e agora não mais.
Não sentia-se outro, no entanto, sentia-se diferente,sem
saída alguma...
“Está
aí... Ainda está aí, Hiei!” – Kurama disse movendo
os lábios sem som. – “Não corra!...”
Não
correr. Hiei nunca fugira, recuara, mesmo quando estivera frente a frente
com a maior de todas as tentações, ele não se entregara
a nada sem lutar, sem resistir, sem dignidade. Aquela fera olhava-o nos
olhos, tentando prever seus movimentos, acompanhando até seu respirar
tenso. A seda de suas roupas não o aquecia do frio que subia por
dentro dele. Mas as pontas de seus dedos sujas do sangue da gazela estavam
tão quentes... Não correr. Mas Kurama estava movendo-se devagar,
erguendo o chicote de novo, um vento que desgraçadamente levava
seu cheiro permeado de adrenalina soprou no sentido contrário e
a fera virava-se a tempo de encara-lo também, dispensando momentaneamente
Hiei, porém, não só voltou-se contra Kurama quanto
errou de parti-lo em dois, se ele não se esquivasse, se não
saltasse para o lado, correndo de novo, desistindo de espalhar as sementes
que falharam anteriormente. A fera continuou a golpear, inconformada, errando
sempre por muito pouco e cada vez menos , escavando em cada investida de
suas garras, alternadamente, valas fundas e estreitas e paralelas, sinais
de onde suas unhas riscavam a terra, e reduzindo as beiradas da túnica
de Kurama a tiras, e por mais que tentasse continuar a lutar, não
conseguia, exausto daquilo, e por fim deixando-se cair sobre os joelhos,
olhando por cima de seu ombro, como o monstro parecia rejubilar-se em não
ter pressa de chegar-se aele. O
chicote mais uma vez desfeito e sem energia para reconstruí-lo,
depois do derradeiro golpe, estava enegrecido em torno de sue braço,
e se desfazia em um pó denso e negro, tão fétido quanto
o esqueleto com restos de carne que estava pronto para devora-lo, faminto
de sua carne e de seu youki, pronto a crescer mais ainda depois disso...
Kurama
pensou em tudo o que vira até alí, certo de que teria seu
fim, todavia, lamentando muito mais por Hiei estar vendo aquilo, por com
certeza ele não conseguir se defender sozinho... Algumas rosas desabrocham
para morrer em seguida. Outras, como ele se via então... morreriam
assim, em botão. Lembrou-se de sua mãe. Gratidão,
ressentimento, ele não sabia nomear o que passava em sua cabeça.
Mas quando se lembrou, quase escutando aquela risada desvairada, de Genkai,
só o que havia era raiva...
Ele
se sentiu tão pequeno, sob a sombra do monstro que eclipsava o dia
escuro sobre suas cabeças, e sentia-se pesado demais para erguer-se
do chão, cada instante que sentia aquele youki como a devorar antecipadamente
o seu era como sentir que sua pele, tão vermelha, neste momento,
estivesse mesmo em chamas...
Ardia,
quente como em brasa, pedia a tudo, ao nada, que algo, alguma força
superior, se houvesse, que cuidasse de Hiei agora quer ele havia fraquejado.
Tão quente... estava sentindo-se em fogo. Fogo. Havia fogo sobre
a terra! Tudo o que via, ainda que fechando seus olhos estava em fogo,
escarlate como ele vira suas mãos, encarnado como eram os olhos
do menino que ele beijara debaixo da tempestade. Havia fogo em tudo ao
redor deles, fogo verdadeiro, a fera estava vendo, sentindo, que ao redor
deles se formava um redemoinho de fogo, que serpentava baixo sobre o solo
sem mata, calcinando a terra e queimando os galhos que se misturaram a
ela na destruição que se dera.
Kurama
não conseguia fixar a vista além das formas terríveis
que se contorciam para ver de todos os lados o que estava acontecendo,
e vinha aquela pata em garra em sua direção, os tentáculos
se abrindo pelas brechas dos músculos sem pele do híbrido,
prometendo um abraço fatal em torno dele, um quente e apertado abraço
em que sua carne iria e desfazer como ele vira acontecer com as árvores,
com as outras plantas. O fogo que corria sobre a terra se fechava em torno
do híbrido gigantesco, separando-o dele, mas mesmo quando Kurama
ainda tentava fazer um doloroso esforço para afastar-se mais daquela
coisa, ela caíra sobre ele, tombando para a frente, invencível,
espalmando uma das patas sobre ele, soltando um grito de triunfo cheio
de um fedor insuportável, que o obrigou a suportar uma náusea
violenta, e aquela besta em carne viva usou os dedos, suas longas unhas
para fazer de sua mão uma prisão inescapável para
Kurama.
Sentindo-se
preso entre a terra e aquela mão deformada, ele rolou, suas costas
se esfregaram dolorosamente nas terra e nos restos de raízes e lama
que estavam nela, e virou o rosto para o lado, num último olhar
na direção de Hiei, um olhar marejado de lágrimas
de dor, a secreção que gotejava do dorso espinhoso da criatura
caía em sua pele, sobre a pele exposta pelos rasgos da túnica,
e ela o queimava, e onde deslizava por sua pele, deixava um lastro negro
e profundamente machucado.
Fixou
a vista com esforço, aquele fogo que era impossível saber
de onde vinha consumia as extremidades dos espinhos que desciam pelos calcanhares
da besta, mas não estava somente fazendo isso, o fogo estava ficando
mais denso como se estivesse se concentrando, e nessa densidade, escurecia,
e em breve, muito breve, Kurama via, maravilhado na dor e na iminência
da morte, que o fogo tornava-se negro, e quando isto acontecia, ele também
podia ver, mais com sua intuição, e notar pela forma que
o mostro ficava subitamente imóvel, de dor e desespero, que o fogo
estava já queimando sua carne, chegando aos seus grandes ossos e
seu sangue escuro e grosso espalhava-se pelo chão, queimando também.
No meio daquele redemoinho de fogo, havia somente Hiei, sua túnica
negra era exatamente da cor que fogo tornara-se, e seus olhos estavam tão
vermelhos quanto somente Kurama vira que eram.
Ele
tinha um braço erguido na frente do corpo, e todo o fogo o envolvia,
em negro, sua pele escurecida e negra como seus cabelos, como uma imagem
esculpida com delicadeza em ébano, seu youki mais forte do que Kurama
sentira quando lutaram naquela noite da tempestade, flamejando em negro,
todo em negro, como um sonho que nunca Kurama poderia esquecer, afinal
tornado realidade, com um algo tão familiar, e tão apavorante...
O jagan, seu terceiro olho, violeta, tão brilhante quanto seus olhos...
Só
que nem tudo era sua surpresa, de ver Hiei abrir-se, soltar o youki destruidor
que dormia dentro dele, depois de descobrir que aquela não era a
vida de que ele se recordava. Sentiu algo se insinuar, rasgando primeiramente
o tecido das mangas de sua túnica, e soltando um grito, em que não
disse nome algum, não quis dizer nada além de seu horror
frente à morte que viria, viu que os tentáculos vinham em
sua direção, em cheio sobre sua cabeça, errando por
pouco tocar seus cabelos, e mais daquela secreção escura
gotejava sobre suas pernas e braços, eu ma delas, correu fina e
insuportável por seu rosto.
Neste
instante, seu grito não havia se extinguido, ainda estava vivo em
sua garganta, e tornou-se em verdade o grito da criatura, muito mais alto,
quando tirou o braço em chamas de cima dele, seus espinhos entortando-se
em finas espirais amolecidas antes de se desfazerem nas chamas negras,
sacudido no ar, acima das copas das árvores. Kurama continuou no
mesmo lugar, tão somente erguido nos cotovelos, não apercebendo-se
paralisado de medo, mergulhado numa recordação que voltava
viva como se estivesse acontecendo agora, aquele fogo todo ao redor dele,
envolvendo-o, o cheiro de carne queimada. Um cheiro que parecia ser o da
sua carne queimando, e não a da fera, como se ele mesmo fosse a
fera que devesse morrer, que em um vagalhão de fogo negro, que vinha
de ao redor de Hiei, era toda envolvida, encoberta, dilacerada em mil partes
em chamas, que voaram pelos lados, pedaços transformados em carvão,
de sua carne indo pelo céu em todas as direções, quando
o Dragão Negro o envolveu, o atravessou, indo rumo ao céu.
Kurama
continuou alí, vendo sem enxergar, aterrorizado, vendo somente o
fogo que crescia, incontrolável, quentíssimo, estourando
o crânio do gigante, fazendo seus ossos surgirem, brancos e em seguida
negros, e suas órbitas expostas, olhando para baixo, sempre para
baixo, para ele, para Kurama, e para Hiei, fazendo-o até o último
instante, antes de elas explodirem numa geléia esbranquiçada
e escorrerem por sua cabeça carbonizada, desfeita aos farelos, na
explosão final.
E
enquanto tudo acabava, Hiei mantinha aquela mão erguida, o punho
cerrado, como fazia ao tentar se defender, mas então conscientemente,
ele próprio sem acreditar que poderia lançar aquela descarga
de youki sema necessidade de um
condutor. Estava sem reconhecer-se, vendo sua pele tão negra, regressando
lentamente a cor pálida de antes, seu jagan que se fechava, no gesto
de ele baixar sua guarda, vendo que tudo se acabara num campo de destruição
e morte. Era uma grande vala de cremar os mortos de batalha, mas havia
somente uma criatura morta,e havia
o cheiro dela, carne queimada, nauseante e penetrante, terrível,
pelo ar.
O
que foi que eu fiz? Eu consegui! Ele estava certo, estava aqui o tempo
todo!, pensou, saltando, seu corpo todo cansado, como se não fosse
ter equilíbrio nem para suportar-se sozinho, indo para perto de
Kurama, que estava do outro lado do trecho de terra calcinada onde o gigante
estava de pé momentos antes. A fumaça desfazia-se lentamente,
o Dragão Negro que subira aos céus, perdendo-se entre as
nuvens, havia feito a chuva se desfazer, e agora o céu se abria
em um rasgo cada vez mais largo de azul, as nuvens se espalhando, no vento
fresco que dissipava o fedor, e o sol brilhava, inclinado, as sombras longuíssimas,
do dia que se acabava... Por que Kurama não se movia? Ele não
havia sido tocado pelo monstro, não estava tão ferido e...
Chegando
mais perto, passando por cima de um pedaço de tronco que terminava
de queimar, Hiei viu, com seus grandes olhos de menino, que os ferimentos
não eram fatais, ou pelo menos não o eram para um ser como
Kurama, aquela rosa largada no chão, ao lado de seu corpo ainda
gotas ácidas da secreção da pele da besta, e fundos
furos na terra e na lama, marcas de suas garras. Hiei voltou a se sentir
assim... indefeso, quando viu que ele estava com os olhos abertos, olhando
para o céu, vidrados, e estava todo pálido novamente, mas
estava não com aquela adorável cor de pérola, aquela
cor que reluzia na escuridão. Sua pele estava branca demais, azulada,
e suas mãos não voltaram ao normal. Estavam vermelhas, clareando
aos poucos na pele que subia por seus braços, mas não gradual
como já começava a habituar-se a ver. Estava se desfazendo
em espirais, a cor desvanecia em espirais muito finas. E os cabelos de
Kurama estavam espalhados, sujos de terra, e não mais tinham aquele
viço de antes.
Hiei
colocou-se de joelhos ao lado dele, olhando-o com muita atenção,
vendo que ele chorava, que de seus olhos muito abertos, muito verdes e
sem brilho no meio daquelas estranhas faixasvioleta,
deles corriam finas e abundantes lágrimas, que desapareciam no meio
dos cabelos. Ele respirava tão devagar que de longe quase imaginou
se Kurama não estava morto.
Pensou
nas vezes que Kurama havia salvado sua vida... Mas.. desde quando ele se
importara com sua vida? Nunca tivera um pensamento de gratidão,
e muito menos por uma criatura que não era youkai e nem nigen, que
nem sequer era feita mesmo de carne, mas Hiei teve uma pontada de dor em
sua consciência, e tocou-o, colocou a mão pequena e hesitante
de leve sobre seu ombro desnudo, revelado pelo tecido rasgado, um dos poucos
lugares que via que não estava ferido, e Kurama pestanejou e retraiu-se,
voltando o rosto para o outro lado.
“Fale
alguma coisa...”
“...”
– Ele não respondeu nada. Queria enrolar-se para o lado, ficar sobre
a terra, e começou a esfregar seus pés descalços naquele
chão feio e revolvido.
“Por
favor, rosa... Fale alguma coisa...” – Hiei sentia uma preocupação
que não deveria ser particular a ele. O que teria acontecido a nigen
que cuidava de Kurama? Talvez ela pudesse saber o que estava acontecendo
agora... Hiei tentou tocá-lo mais uma vez, segura-lo pelos braços
para levanta-lo, sair daquele cenário de pesadelo, e fêz força
para que suas mãos não escorregassem como peso de Kurama.
Ele estava completamente gelado, frio como um cadáver.
Em
vez de dar-lhe alguma palavra, Kurama o empurrou, mas não querendo
machuca-lo, e sim nãodesejando
ser tocado por ele como se esta fosse uma seríssima ameaça
a sua vida. Hiei ficou sentado sobre os tornozelos, atônito com aquilo.
Aquela flor que lhe falavasempre
com tanta doçura irradiava tanto medo que até seu perfume
de rosa vinha completamente diferente, embora estivesse muito diferente
do que uma lembrança apagada da noite anterior lhe dissesse.
Sentado
de costas para Hiei, ele parecia ter enlouquecido com aquilo tudo, e cavava
a terra com as mãos feridas, alheio a dor, esfregava os pés
na terra, querendo enterra-los, desejando fazer exatamente isso, e quando
reconheceu este gesto, Hiei puxou-o com toda a força que tinha,
e mesmo menor que Kurama, conseguiu arrasta-lo para longe daquele buraco
que ele queria fazer...
“Pelos
deuses, o que pensa que está fazendo????” – Gritou, horrorizado
com aquilo, como se significasse que estaria a ser próximo. Hiei
estava ficando mesmo assustado, como nem quando tinha sua antiga vida dava-se
ao luxo de estar.
“...”
– Kurama estava chorando com ambas as mãos sobre o rosto, seus ombros
sacudidos violentamente.
“Estava
tentando criar raízes?? Era isso o que estava tentando fazer??”
– Aquele gesto banal de ver Kurama tentando enterrar os pés na terra
era-lhe chocante, tanta abominação quanto presenciar uma
tentativa de suicídio. E o mais incrível era que nem Hiei
mesmo sabia por que se espantara tanto com aquilo... Por que se importava?...
“...”
“Você
este com medo? É isso??” – Perguntou, insistindo várias vezes,
tentando fazer Kurama olha-lo de frente, fazendo força ao segurar
seus pulsos para mantê-lo no lugar, sem cobrir o rosto. Estava soluçando
muito, tremendo por inteiro, parecia não reconhecer Hiei, ou não
mais confiar nele, como desde o princípio confiara.
Por
fim, Kurama fez que sim.
Estava
com medo.
Mais
um espanto.
Hiei
nunca julgara-o capaz de ter medo.
“Do
que você tem medo?...” – Sussurrou, sua voz forte demais para seu
tamanho soou de repente muito doce, seu rostinho sujo, perplexo, pareciam
trazer de volta a mente de Kurama uma, aquela velha certeza de que ele,
Hiei, não lhe faria mal algum.
Hiei
soltou seus pulsos.
Era
inútil conte-lo, ele tinha mais força, mesmo que seu youki
estivesse tão fraco.
Kurama
continuou chorando, desolado, na sua frente, desfeito e ferido, por dentro
e por fora.
De
repente ele esticou um braço trêmulo na direção
de Hiei, que sem saber o que fazer, achegou-se a ele, reconhecendo aqueles
braços, seu coração batendo rápido, irregular.
Abraçados
como crianças perdidas na floresta, afinal Kurama respondeu, controlando
seu arquejar:
“Eu
não gosto do fogo!...”
Ele
disse-o tão baixo que Hiei não o escutou de fato. Hiei sentiu
aquelas palavras, da mesma forma que Kurama sentia as suas. E dito isto,
Kurama sacudiu-se com muito mais força, num pranto convulso e alto.
E dizia baixinho, abraçando Hiei com toda sua força, junto
a si, que tinha medo do fogo...
E
Hiei somente deixou-se abraçar, enquanto anoitecia, escutando aquele
choro sentido, e de certa forma acompanhando-o nele, pois ele também
trazia seus segredos daquela vida que não lhe pertencia mais...
E se Kurama era vermelho como uma rosa, e não se poderia explicar
isso, ele também era negro como um pesadelo, e também não
saberia explica-lo.
Afinal,
pensando bem, eles eram apenas crianças agora.
Continua.