Por Astásia
Capítulo 8 - Verdades e Mentiras
De um momento a outro o estalar ligeiro da chuva fina sobre o telhado silenciou. Mas em seu lugar logo veio, como antes, só que mais acentuado, o silvo do vento gritava mais alto; balançava os galhos, agitava animais pequenos. Selvagem. Frio. Um ronco de trovão ao longe, muito longe e baixo. As gotas de chuva ficavam mais grossas e pesadas. Estalavam as folhas do chão, e o vento começava a ergue-las em redemoinhos a despeito de estarem molhadas.
Kurama mergulhou no escuro denso e mal quebrado pelas velas, chamando por sua mãe, sem ver Genkai em parte alguma, sem percebê-la encolhida no canto, rindo só, desvairada. Encontrou Shiori cochilando debruçada numa mesa, como se houvesse dormido enquanto escrevia. Inclinou-se para olhá-la bem, chamar seu nome bem baixo.
"Hã?" - Ela arregalou os olhos com aquela visão incomum, um menino que na escuridão parecia todo da mesma cor de seus cabelos, o que só acontecia quando ele estava com raiva, ou então, e não devia ser isso, pois ele sorria, devia estar muito feliz com alguma coisa, mas era um vulto surpreendente até para sua criadora... - "Aconteceu alguma coisa?"
"Aconteceu, sim! Mãe, levante-se, eu quero lhe mostrar uma coisa que eu achei!!" - Estava tão alegre que podia pareccer humano se não estivesse tão vermelho... - "Vamos, mamãe, durma depois, você mesma diz que eu durmo demais!! Você tem de ver!!"
"Espere." - Ela mesma parou, levantando-se da cadeira. Algo lha dizia que aquilo não estava certo, que havia algo de errado na pressa de Kurama, mas não sabia bem o quê. As palavras desvairadas de Genkai ecoaram em sua memória, mas não quis ouvi-las. - "Fale devagar e não minta para mim... Kurama, o que você encontrou, afinal de contas?... Do quê você está falando?"
Ele empalideceu em tons de vermelho até ficar naquela palidez habitual, só seu cabelo incandescendo sob o dourado das velas. Mas ainda reprimia um sorriso. Estava ansioso demais, sem dúvida. Ele segurou as mãos dela, estava todo muito quente.Tremia. Parecia, Shiori riu consigo, para afastar sua própria desconfiança, achando que ele parecia um menino apaixonado.
"Eu achei uma flor." - Falou, bem devagar, os olhos brilhando ffosfóreos no meio das linhas azul-violeta que os contornavam.
"Há muitas por aqui. É uma floresta."
"Eu achei uma flor como eu."
"..."
"Eu achei uma flor de fogo."
Os olhos de Shiori arregalaram-se, a voz de Kurama era agora somente um eco das estranhas palavras de Genkai. E a tempestade lá fora era apenas um pálido reflexo da que começava a se formar em sua mente.
******
A chuva ainda estalava, estalava e estalava sem parar sobre as folhas, o vento ficava mais indomado do que a tempestade que começava a dançar no céu.
Um relâmpago
silencioso iluminou tudo de repente e até os troncos onde Kurama
havia deixado sua mais nova descoberta esperando-o, mas não havia
mais ninguém ali, havia um caminho de folhas queimadas no chão,
das que estavam secas e forravam o chão, onde um monte ou outro
de capim molhado destacava-se na escuridão da mata.As marcas queimadas
no chão, podia-se bem notar, tinham formas exatas de pegadas...
O vento que ficava mais forte levantava os papéis de sobre a mesa. Kurama e sua mãe ainda estavam silenciosos, entreolhando-se com as respirações suspensas e ele começava a dividir a estranha ansiedade de Shiori. O vento fazia bater as bandas de uma janela aberta qualquer na casa, ritmado, uivando vez por outra como um animal ferido, batendo com mais força, e de repente parou. Som de madeira estalando, e Genkai começou a rir, do nada, seu riso estalou junto com os galhos do lado de fora, que se partiam com a força da tormenta, e a banda da janela bateu com mais força, tanta que Kurama imaginou que talvez ela houvesse sido quebrada, ou que o que estalava fosse na realidade passos duros sobre o assoalho e voltou-se para certificar-se de que não estava enlouquecendo, e finalmente viu Genkai encolhida junto a parede, rindo e balançando-se para a frente e para trás, perfeitamente louca, sussurrando algo consigo mesma, e gritou, quando viu Kurama a sua frente:
"Sua flor estúpida e fútil!!! Eu me importo com alguém sim, mais do que a sua mãe nunca se preocupou com você! Eu também tive meus sonhos, mas eu soube fazê-los reais, sua rosa dos infernos!! Eu não criei minha flor para morrer, eu a criei para matar!!!!!!"
Ela se ergueu do chão num salto e agarrou os lados de sua túnica, fazendo-o voltar-se para a porta escancarada, sem entender nada daquelas palavras duras, sem saber se havia algo ali, naquela escuridão que dava para a floresta agitada, pois era tudo o que ele via, quando Genkai o obrigou a olhar.
Um relâmpago iluminou tudo de uma única vez, como se até o céu soubesse o que ia acontecer, e no súbito clarão, o que Kurama viu foi uma coisa que encheu-o de medo e fascinação, foi o faiscar de metal, de dois olhos vermelhos que olhavam sem enxergar, e de um terceiro, que os via por completo.
Genkai olhou para o chão, procurando a espada que deixara enfincada ali, nas tábuas do chão, e não viu nada, e o que viu, também a encheu de um medo que não imaginou que sentiria neste momento.
Num halo de azul pálido causado pelo relâmpago, um menino delineava-se, nu, no ébano da noite, e seus cabelos revoltos eram de chamas azuis, e tal com um arauto da morte, levava a espada erguida a sua frente, e era ela que reluzia, o aço perfeito e afiadíssimo tremeluzia na escuridão vacilante.
O silêncio pulsou.
Kurama tentou dar um passo em sua direção, mas o seu fascínio era mais forte, e paralisou-o, boquiaberto, espantado em sua ingenuidade de flor e em sua crueldade que nascia das lembranças de Kurama, o Youko.
"Foi você...!"- A espada que estava na direção de Genkai tremeu, era vacilante a mão que a empunhava, o olhar que sustentava a da cientista. Eram olhos grandes e estavam bem abertos; fascinaram Kurama com aquele faiscar vermelho, com o cintilar das lágrimas que não rolaram, apenas os deixaram rasos e mais vermelhos ainda.
Então, Kurama, a rosa em botão, que mal se descobria e descobria o mundo de maneira tão atroz, pensou, isto é uma flor desesperada? (Mas Kurama via tudo, menos que aquele menino de aura negra não era uma flor, e que a doçura de seu beijo era uma ilusão...)
"Foi você, Genkai. O que você fez comigo?..."
Ele estremecia violentamente, seu youki inflamado, quase palpável.
"Veja o que fez comigo, sua louca... Veja no que me transformou."
Sua voz era muito profunda, quase profunda demais para a de um adolescente como julgara Kurama, confundia-se com o rosnado da tempestade; baixou a lâmina; dois pequenos baques no chão de madeira tilintaram e parecia que o som delicado fazia Genkai despertar, como um lapso de sanidade.
"... por favor... por favor, Capitão, me escute. Tenha calma, eu só quer... " - Então, Kurama pensou, meio alarmado e meio chocado, eles se conheciam. O que estava havendo, afinal? O menino que ele tirara de dentro da caverna suja devia ser mais velho do que parecia, ou assim era o que diziam as lembranças de sua vida antes de ele despertar daquele bulbo negro...
"Quem lhe deu o direito de decidir por mim? Quem lhe deu o direito de fazer isto comigo?!"
Genkai parecia mais assustada do que nunca. Um menino falava-lhe com autoridade, com a autoridade de... sim... um capitão. Ela gaguejava e baixava os olhos sem coragem de enfrenta-lo. Tão desarmada quanto quando viu como Kurama podia ser perverso... do mesmo modo que o Youko foi um dia.
"Eu só queria ajudar... eu não podia, eu não devia... Eu não podia deixa-lo ali, eu..."
"Veja o que fez comigo... Veja no que me transformou!!"- Ele gritou, o terceiro olho faiscando, e o aço da espada também, novamente erguido com nova força. Era como se aos poucos ele se desse conta da raiva que estava sentindo, mas também fosse frágil demais para suportar aquilo tudo em si.
"Eu não podia suportar vê-lo morto, Capitão!... Eu lhe devia a minha vida, eu... eu... Por favor, me perdoe." - Seja lá o que estava acontecendo ali, com certeza, a julgar pelo modo que Genkai arquejava, Shiori pensou, não estava acontecendo como ela esperava. Genkai arfava como uma criança confusa, torcendo a beirada da faixa do Kimono. Louca, de fato.
"Mas eu não lhe devia a minha!" - Gritou, enquanto que um estouro de trovão cortou o céu e tudo clareou, no único segundo que ele levou para atacar, erguer a espada como se fosse arrancar a cabeça de Genkai. Shiori mal pôde somente arregalar os olhos, talvez mais pelo trovão do que pelo assassinato que ia testemunhar.
"Meus Deus!..."
A espada não
descera para seu golpe fatal. Estava no ar, estática e tensa, no
ar, ainda no punho e ele... terrível... parecia parte de um tronco...
Seu pulso trêmulo estava contido no movimento por uma laçada
densa e apertada de uma vinha espinhosa: o chicote de Kurama.
******
Sua mão descerrou-se lentamente, então, como se desistisse do que ia fazer, como se sua vontade cedesse sob o chicote que vibrava no ar, mas apenas girou a espada no ar e cortou a vinha, libertando-se, e deslocando-se no rumo de Kurama, tão rapidamente que nada além da escuridão se movendo pôde ser vislumbrado. Parecia que a pele de Hiei tornava-se opaca e enegrecida, e que ele parecia ainda menos humano do que quando atacara Genkai. E nesta escuridão que se fez ao seu redor, sumiram nela ele mesmo e Kurama, quer regenerava seu chicote, com espinhos ainda maiores, e saltava em seu rumo. Shiori notou como a escuridão que o cercava se esticava, e até pelo chão, como uma grande mancha de óleo, e junto vinha um zumbido, como um silvo de serpente...
Ela fechou os olhos e tapou os ouvidos, não querendo ver as duas criaturas lutando, o chicote estalando, a morte indecisa de ambos. Mas Genkai viu tudo, alheia ao barulho perturbador, com uma expressão de pura fascinação, e nem ela pode dizer em que momento exato eles se moveram tão rápido quanto não poderia ver, e sumiram, com estalos de galhos quebrados em meio a chuva, no meio do bosque negro da floresta pantanosa.
Shiori abriu os olhos, mais espantada em não vê-los mais, mas o zumbido, o silvo de serpente ainda ecoava em seus ouvidos.
"Me diga que não fez isso..."
"Eu fiz. Acredite ou não. Eu fiz."
"Me diga que não fez isso!!" - Shiori tornou, sua voz delicada elevando-se de horror após ter visto o que Genkai criou.
"Eu fiz!! Eu criei aquela besta!! Ele nunca vai me perdoar pelo que lhe fiz, mas eu não poderia ter voltado atrás!! Não entende?? Não espero que entenda o que eu fiz, mas eu queria que fosse o melhor para ele..."
"Por Deus, Genkai... por que ?? Por que o transformou nessa coisa?..."
"Eu não transformei, ele já era. Assim como o seu filho, ele só está descobrindo sua verdadeira natureza."
"Eles vão se matar! E eu não posso fazer nada!!"
"É a lei
da selva, minha jovem..."
******
Aquela chuva estava muito fria.
O frio lhe fazia muito mal, queimava sua pele, o tecido molhado colado a pele o sufocava.
Tenso, Kurama escondeu-se no vórtice de um tronco, em meio as folhas, numa fenda da madeira apodrecida, sem como sempre nunca notar como seu corpo estava todo naquele tom de vermelho escuro e intenso, tentando ver alguma movimentação, tentando sentir com sua energia a de Hiei, tentando pensar no que fazer e no que lhe dizer, se é que era necessário. O que Hiei sentia, era tão próximo e real que era quase palpável, e quase poderia confundir o que Hiei estava sentindo com seus próprios sentimentos. Acontecia o mesmo com o outro? Que importava? Agora devia tentar segurá-lo, e pelo bem dele mesmo, evitar que se machucasse... ou se matasse.
Não sentia nada, devia estar longe, esperar sentado não ia ajudar, e expandiu seu Youki em todas as direções, erguendo-se do tronco, quando esbarrou, sua energia e sua consciência resvalaram em algo vivo, e tão inumano quanto ele mesmo.
Ele se moveu como
uma sombra, pela sua frente, desaparecendo, no rumo do extremo da floresta,
estavam longe, mas naquela velocidade, Kurama pensou, correndo e saltando,
seguindo-o, não demorariam a chegar lá. Só esperava
não perder-se no caminho.
******
Segurou-se para não perder o equilíbrio quando parou de correr. Estava mais escuro e para onde estavam indo, a floresta era mais profunda e cheia de segredos que não atrevia-se a querer desvendar. Agora descobria o que era o medo. Medo verdadeiro. Não, Kurama não temia por si só. Pela primeira vez também não temia por sua mãe . Não era ela quem corria perigo.
Temia, em verdade, pela fera pálida e de olhos vermelhos que erguera a espada pra matar aquela mulher detestável. O que lhe impedia de ver a execução de Genkai por um motivo justo?? Ele sabia qual era a facilidade de matar. Sabia que a vida era frágil e não negava o prazer que sentia em matar. Sabia também que coragem era o que não lhe faltava para fazer o mesmo com ela. No entanto, a defendeu.
Seu cabelo colava-se ao rosto e ombros, encharcado. A chuva cerrada era fria e queimava sua pele, machucava. Não podia expandir seu youki para escutar a voz da mata, uma vez que talvez Hiei pudesse senti-lo também,.
E nem sabia qual direção que havia tomado em sua fuga de si mesmo.
Si mesmo.
Kurama sabia por que não havia deixado Hiei matar Genkai. Se ele permitisse, era como se admitisse poder fazer o mesmo contra sua mãe. Ele igualmente não pedira para nascer de um bulbo de planta, dependente de luz do sol e água para viver. Ele não pedira por nenhuma daquelas estranhas lembranças de morte e dor, fogo, prazer, o youkai de chifres brancos... amor.
Sua pele estava estrangulando e cinzenta, queimando-se do frio da tempestade, mas a dor não o impediu de continuar, mesmo escorando-se nas árvores, de esquecer aquele medo.
"Hiei!..."
Só o rugido da tempestade respondeu o seu fraco chamado.
"Esse é o seu nome, não é?"
Capitão da guarda. As palavras de Genkai ainda estavam nos seus ouvidos. Por isso ele manejava a espada como se fosse uma parte viva de si, seu orgulho de soldado estava ferido e jorrava ódio. Se não pudesse matar quem o condenava a viver, então tomaria seu destino nas mãos e a vida no fio do aço de sua katana. De alguma forma misteriosa, Kurama fazia uma boa idéia de que era um dor maior do que pudesse ficar silenciada dentro de Hiei e que a única coisa que poderia fazer para por fim a sua sina de viver era se matar.
"Eu sei que é o seu nome!..." - Disse só consigo.
Nada.
"Volte comigo para casa!"
Nada.
Teve a impressão de escutar galhos estalando, mas era o vento. Só que houve um murmúrio que não era o dos assustados pássaros da noite. Tropeçou numa raiz e continuou. Não podia desistir. Qualquer esperança era uma esperança. Seu medo não diminuía e pensava se havia um Deus que o ouvisse, quando pedia ao nada que Hiei não houvesse feito uma loucura. Queria-o perto de si e jurava a si mesmo que nunca mais o deixaria fugir de seu abraço, se o achasse.
"Hiei!"
Estacou, sentindo que fraquejava afinal, desabando de joelhos, de surpresa, de medo pelo pior, no meio do mato alto. Havia encontrado-o.
Ele estava completamente fora de si.
O mundo a seu redor não existia e tudo o que havia nele era a negação do fato.
Kurama viu-o bem de costas, sentado no meio do capim, mais a frente. Curvado no meio da grama alta e amarelada, que, na difusa luz dos muitos relâmpagos, revelava-se manchada de sangue ao redor dele. E Hiei apenas negando, balançando-se para a frente e para trás.
Não era hora de ter medo. Ele estava vivo ainda. Kurama levantou-se e caminhou para o centro daquela clareira, agora que já estava com sua pele cheia de vergões e machucados, de súbito a dor parecia muito pequena perto da preocupação. Hiei com os braços apertados, cruzados sobre o peito, bem forte, abraçando algo.
Pelos deuses, se houverem, ele abraçava a katana, Kurama viu, em meio ao balançar de seu corpo, e o sangue que se espalhou nas folhas do capim era seu, de seus braços e mãos e peito cortados.
Agarrou-se a espada tal fosse ela a única coisa de real e acolhedora no meio do pesadelo que encontrava-se desde seu despertar naquela caverna imunda, nos braços daquele monstro de lindos e selvagens olhos verdes. Abraçava o aço como a um filho ou um amante. Sempre fora tudo o que ele tivera, tudo o que fazia-lhe diferença e com o que se importava; abraçava-a no sono, abraçava-a na batalha e fora traído por ela; e agora a traía. Para Hiei, a vida era aquilo, não aquela coisa de que quis fugir e Genkai não permitiu.
Aquela nova prisão começava a ser atraente... seu carcereiro... era aquele monstro vermelho, a flor em chamas, mas... O que estava pensando afinal de contas? Devia estar louco. Tantos pensamentos. Tantas sensações, tão novas, muitas vezes; sentia tudo com o dobro, o triplo de intensidade. Dor, medo, raiva, muita raiva, rancor, desespero, e até desejo por aquela aberração.
Estava percebendo-se perfeitamente fora de si, e uma vez mergulhado na escuridão da noite, agarrava com mais decisão a única companhia fiel que lhe restara: sua espada. E de repente a dor começava a dimunuir sobre sua pele e tudo parecia tão distante e calmo quanto... sim... talvez agora de fato fosse a morte, a súbita calma que a tempestade lhe inspirava.
"Hiei."
O vento dizia seu nome. Estava se sentindo tão bem e esquecido do mundo que preferiu não responder. Mas de repente sua paz, falsa paz, ele sabia mas fingia ignorar, era quebrada. Tentavam tirar-lhe a única companhia que tinha. Quem se atrevia a desafiar o Capitão da Guarda do Exército de Mukuro?!
"Hiei!!"
O vento gritava como uma... flor em chamas. Um relâmpago estourou no céu e a chuva voltava a ficar forte.
Ele avançou como uma fera na direção de quem puxava-lhe a katana, finalmente olhando-o nos olhos.
Kurama ficou estático, suas mãos estavam fechadas em torno da lâmina, na vã tentativa de tirá-la de Hiei; seus olhos verdes conseguiram ficar ainda maiores, presos nos dele; via tudo o que se passava nele, toda a dor, toda a derrota, todo o... ódio.
Havia algo de muito errado em Hiei, ou fosse qual fosse o nome daquele garoto de olhos antigos que ele arrancara de dentro da caverna. Para Kurama, era apenas isso: uma criança assustada; só que agora era uma criança cheia de tanto ódio quanto um rio prestes a transbordar. E isso o assustava como nada antes disso. Nem o monstro de que fugira com sua mãe quando tirou Genkai da prisão o assustara tanto quanto o ódio nos olhos de Hiei.
Abriu os dedos lentamente, sem desviar a atenção de Hiei; todavia, o aço fremia, agitado e quente, com o youki que se liberava. Fogo Negro.
"Hiei... Você não entende..." - Kurama articulou, procurando palavras onde tudo o que havia era a terrível vontade de chorar que voltava a se apossar dele - "... Você não é mais o que costumava ser..."
A única resposta era o rugido baixo do fundo da garganta do youkai que cerrava as mãos com mais força no punho da arma.
Kurama engoliu em seco, afastando-se com hesitação, com medo de se mover. Sabia que agora estava cara a cara com a morte personificada em um delicado menino furioso e triste, de lábios que ele adorara beijar...
"Por favor, deixe que eu ajude você... Você mudou, não está vendo? Não está sentindo?"
Ao mesmo tempo em que Kurama ficava de pé, Hiei também se erguia do solo, a claridade dos trovões mostrando o quanto se ferira: faixas de sangue se misturando com a água da chuva desciam por seu corpo nu.
"Você é como eu agora."
Aquela linda rosa desfeita sentia que chorava. Estava com medo, estava com muito medo; porém não imaginava-se agitando se youki ainda contraído, nem fazendo surgir da palma da mão seu mortífero chicote, nem movendo os vegetais da terra para deter Hiei, quando ele erguia aquela espada longa e brilhante, não na frente, mas do lado do corpo, esticando todo o braço, para cima. Posição de degolar, uma lembrança inoportuna lhe disse, como se já houvesse visto isso antes.
Suas lágrimas se fundiam com a chuva, e não sabia mais a diferença entre uma e outra. Não queria machucar aquele menino.
"Eu não sou como você." - Sua voz era rouca e profunda como o fim de um trovão. - "Eu não sei que vocês fizerram... o que Genkai fêz comigo, mas ela me fêz um monstro, mais do que eu sempre fui. Ela me deu essa ilusão. Eu não morri, e não vai ser você, sua aberração, que vai me impedir de conseguir desta vez!"
Mal parou de falar e já saltava sobre Kurama, baixando com força a espada na direção de seu pescoço, apenas não acertando porque Kurama desviava-se dos golpes sucessivos, e começava a descobrir o que era um medo ainda maior, escutando o ar sendo cortado em silvos agudos.
"Não! Você está errado! Você não é mais o mesmo! São apenas lembranças! Aquela vida não lhe pertence mais!!"
"Mentira!!" - Ofegou, num súbito, saltando, sendo apenas um vulto negro.
Kurama perdeu o equilíbrio quando tentou saltar para trás, mas sem seu youki e ferido pelo frio da chuva... sentia-se pesado, impotente. Não adiantava fugir. Hiei era mais veloz, e não conseguiu pensar em se levantar. Hiei Montou sobre seu peito, sufocando, completamente selvagem e alterado.
Foi quando Kurama rendeu-se, como pensava, era inútil tentar fugir, e também não queria lutar. Cerrou os olhos ardidos e pensou em sua mãe com gratidão e em si mesmo com pesar, pois reconhecia-se como uma rosa em botão que não chegaria nunca a desabrochar.
Hiei, ele percebia, erguia a espada acima de sua cabeça, agora devagar. Ele era uma fera toda negra na escuridão da tempestade, só seus olhos reluziam, vermelhos, famintos de morte. Segurava, agora, o punho da espada com duas mãos, certeza de não errar o pescoço de seu alvo agora. Tinha ódio, medo, desejo, tudo junto. Queria sua antiga vida de volta, se não podia ter a morte.
Desceu o golpe com toda a força que podia, soltando um grito de ira que se misturou aos trovões.
******
Hiei ofegava, perplexo consigo mesmo.
Sua garganta latejava do grito e ele se escorava na espada, que, com tanta a força que fizera, cravara um palmo de aço no solo da clareira; o cheiro do sangue espalhava-se no ar.
Não soube quanto tempo ficou alí, parado, respirando, com força; o suficiente para a chuva ir acabando-se e tudo ficar muito calmo e silencioso. Não abriu os olhos. Se olhasse, estaria admitindo o que se recusava a acreditar.
"Mentira. É tudo mentira, entendeu? Eu não acredito em nada do que você disse, sua aberração maldita..." - Repetia, baixo como um suspiro, para o corpo imóvel, inerte, debaixo dele, que se recusara a lutar.
Quando escutou a voz de Hiei, Kurama descerrou os olhos. Não estava morto, a espada mal raspara o lado de seu pescoço, e o cheiro do sangue era o de Hiei mesmo, de seus golpes pelo corpo, quando abraçou a espada, momentos atrás.
"Eu não sou como você. Eu não sou essa aberração que brotou como uma erva daninha do jeito que querem que eu acredite... Eu sou um soldado, entendeu? Entendeu?! Eu não quero ser condenado a continuar vivendo, eu não sei o que ela fêz comigo, mas não era o que eu queria."
Kurama ficou observando o seu falar, seus lábios se movendo devagar, seu cenho apertando-se. Ele queria chorar? Não sabia. Talvez fosse raiva, talvez não fosse nada. Hiei despejara sobre ele absolutamente tudo o que tinha em si, o que restava então, agora?
Agora, a voz que falava, era tudo o que restava de todo aquele ódio.
No meio do silêncio que se seguiu ao que Hiei dissera, Kurama observou como seu olhar embaçava-se ainda mais, perdia todo o brilho e expressão, sua pele acizentou-se da rósea palidez de antes, e ele percebia como era frio o toque de sua pele agora.
"É tudo mentira." - Hiei gemeu, desfalecendo sobre o peito de Kurama, cuja única reação foi envolvê-lo em seus braços, antes que ele se machucasse mais ainda naquela maldita espada...
Estava em um lugar estranho e escuro, embora que pelas frestas do velho telhado, longas faixas de sol entrassem, e vez por outra, delas gotejassem restos da chuva da noite.Assustador ver que era tudo tão real quanto as folhas secas pelo chão, que apertava entre os dedos trêmulos. Pensou em Genkai e olhou para as próprias mãos brancas, mais brancas ainda na pouca luz e em contrate com as mangas do obi negro, de seda... Obi. Alguém o vestira. A faixa estava frouxa, mas estava vestido, o que parecia, de alguma forma secreta, sufocá-lo. Mas onde estava a espada?
Varreu as folhas com as mãos pelo chão liso e poeirento, procurando o reluzir do metal com a luz do sol.
Onde está a espada?
"Está comigo."
A voz vinha de debaixo de um portal de madeira sólida que dava para uma saída fechada e apodrecida.
"Você não precisa dela"
Tornou, e agora juntava-se a ela dois passos rangidos sobre o chão, e um falfalhar de tecido nas folhas secas, e um estranho cheiro de flor.
Hiei, que estava sentado sobre os tornozelos, tombou para o lado, apoiando-se para recuar, uma das mãos fechada em punho a frente do corpo, começando a flamejar. Não havia ira nem indignação no seu olhar vermelho, havia um pavor e uma descrença do que seus sentidos lhe diziam. Aquela coisa vermelha e flamejante não era um fantasma. Ela existia e estava bem a sua frente, sob o sol. Era uma rosa.
"Sim, eu sou uma rosa."
Mas que diabo está acontecendo aqui? , Hiei pensou, as palavras lhe faltando. Aquela coisa inumana, nem demônio e nem planta sabia o que ele pensava? Respondia-lhe como se fossem perguntas em alto, e olhava-o como se se conhecessem havia anos.
" Mas também sou um demônio. Eu sou como você." - Kurama lhe disse um tanto indiferentemente, abaixando-se para ajoelhar-se na frente de Hiei.
"Não adianta. Você é assim agora. O que você acha que ainda é... é somente uma lembrança de uma vida que não lhe pertence mais."
O punho em riste de Hiei cedeu, estava maravilhado com o que via e ouvia. Agora, era como se Kurama movesse os lábios sem som e no entanto suas palavras surgissem em seu pensamento; seus olhos estavam muito claros, verdíssimos, fatais no meio das faixas que os circundavam, indo tremer no ar junto ao cabelo vermelho escarlate, tão vermelho quanto os olhos que o contemplavam...
Você entende? Não? Eu também não entendo o que houve comigo. Eu sei que estou longe de casa, e você? Não, eu não vou devolver a sua espada. Ela estava machucando-o. Você sofre quando está com ela... Você não tem sede? Não, por favor, não fuja de mim. Eu não te faria mal. Você é como eu. Tão perdido quanto eu.
Eu acordei no
chão de um jardim de vidro. Minha mente estava como a sua na noite
passada. O que havia nela era assim... Não posso explicar. Eu tinha,
tenho lembranças de uma vida que não me pertence. É
uma vida que não existe mais, não mais, ela se acabaou em
um lugar de muita dor e arrependimento e... desculpe. Eu me... a minha
mãe, a mulher nigen que me criou, me chama de Kurama. Eu não
sei a quem pertence este nome, mas é importante para mim, diz, eu
penso, o que eu sou. Eu sou o que você está vendo, não
o que eu era antes do fogo. Eu sou uma rosa. A vida me deu uma chance e
eu a peguei. Agora eu sou uma rosa. E tudo o que eu era está aqui.
Enquanto falava, com sua voz real e ainda como se soubesse todas as perguntas de Hiei, ele alternava seu olhar pelo rosto e pelas mãos do ser assustado a sua frente, destacados pelo escuro do kimono, embevecido como nunca, sua frieza quebrada por um vago sorriso que se fêz em seus lábios, olhando-o, querendo abraçá-lo. Querendo beijá-lo mais uma vez.
"Onde? ... Onde está o que você foi?"
Kurama baixou os olhos. A cor das folhas pelo chão eera triste, mas não ofuscava a alegria de finalmente mostrar aquilo a alguém como ele... Levantou os olhos para Hiei, para seus lábios em botão, entreabertos, hesitantes depois de falar. Que desejo? Que desejo era quele de vê-lo sem o kimono, como quando o conhecera, tocar por toda sua pele nua?... Temia de todas as formas machucá-lo, mas tomou sua mão, a mesma que invocava as chamas negras, desenrolando seus dedinhos roliços, sem distrair-se dos lindos olhos vermelhos e curiosos dele. Fêz com que a mão pequena fosse por dentro de sua roupa larga, tocando com força o meio de seus peito arquejante e pálido, morno, espalmada sobre ele.
"Está aqui."
Kurama sorriu de uma forma estranha e aliviada, o alívio de dividir um pesado segredo.
"Bem aqui."
Continua.