“Zero hora de sexta-feira e vou lhe fazer companhia até o dia clarear. Você está sintonizado na TCSS, no lar de seus rocks preferidos. Sou Kaylie e aqui está a música que não pode faltar na minha programação.”
O envolvente rock-balada chegou a ele pelos fones de ouvido. Apenas uma única lâmpada estava acesa em cima da escrivaninha, diante da qual se achava sentado.
O Luar entrava no quarto pela janela que ocupava uma boa extensão da parede. Pequenos pontos de luz colorida pulsavam com a música, dando vida própria ao equipamento de som. Ele sentia o quarto pulsar ao seu redor, vivo como o ritmo da percussão que o percorria inteiro e fazia seu coração bater mais depressa. Houvera um tempo em que saboreava essa sensação, que vibrava com ela. Já não era mais assim.
Tomou um gole do chá, quente. Acionou o botão para tornar a luz da lâmpada mais forte, a fim de dispersar a escuridão que parecia ameaçar aprisioná-lo. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Solidão. Tristeza. Sentia as duas coisas.
E medo...
Medo de ficar só. Medo do negror que parecia estar à espreita e que o assombrava de um modo estranho. Medo das ausências que ultimamente apoderavam-se dele e tomavam conta de sua mente por algum tempo.
Engoliu o resto do chá e colocou mais na xícara. Percebeu que as lágrimas subiam-lhe aos olhas e obrigou-as a recuar. Também andava chorando muito nas últimas duas semanas. Demais mesmo. Sacudiu a cabeça, balançando os longos cabelos ruivos, tentando engolir para desfazer o nó que se formara em sua garganta.
“Nada de lágrimas!”, advertiu a si mesmo. No entanto, elas vieram, esgueirando-se por entre os longos cílios, descendo e deixando um rastro quente nas faces. Colocou um CD no aparelho de som e programou a mesma música que acabara de tocar na rádio.
“... Yozora ga hiraku koro... Matataku ake no hoshi... Yami ni ikiteta ore no kokoro ni... Tematta yume no ya sa ...”
Impediu-se de tentar recordar o passado e, ao mesmo tempo, lutava por manter-se lúcido. Não podia ter uma “escuridão” enquanto fazia as tarefas escolares. Shiori ficaria muito preocupada se o surpreendesse num desses estados.
As palavras da canção pareciam estar ficando abafadas, então ele tratou de aumentar o volume dos fones de ouvido. Mas, à medida que girava o botão, em vez de aumentar, o som tornava-se mais baixo.
Seus tímpanos começaram a zumbir, a estalar, e ele gelou ao ouvir a já conhecida voz masculina:
“Não chore, Kurama.”
As palavras não eram mais do que um suave murmúrio.
“Quem é você?”, perguntou o ruivo, arrancando o plugue dos fones de ouvido do aparelho, desligando o som.
E de novo a voz, mais do que entrar-lhe pelos ouvidos, pareceu soar em sua mente.
“Alguém que não gosta de vê-lo chorar. Alguém que teme por você, que sente você, Kurama.”
“Isso é impossível.”, sussurrou, olhando para o plugue do fone, desligado.
Mas era possível. Também desligara os fones quando aquela voz soara pela primeira vez, na noite anterior. No entanto, continuara a ouvi-la como acontecia naquele momento.
“Nada é impossível, Kurama. Acredite em mim e no que vou lhe dizer.”
“Olhe aqui, amigo, não sei como você fez para entrar na freqüência da rádio, mas é melhor parar com isso. Está indo contra o regulamento principal da radiotransmissão. Vou denunciá-lo...”
“Não pode me denunciar.”, cortou a voz com tranqüilidade.
E ele tinha razão. Todo mundo ia achar que estava louco e, naquele momento, o próprio Kurama inclinava-se a pensar assim. Ninguém estava interferindo na transmissão. Interferiam apenas em seus fones de ouvido. Nos fones de ouvido que estavam desligados, pensou.
Talvez aquela fosse uma ilusão doentia criada nele pela dor e pela desesperada necessidade de se comunicar com alguém que o compreendesse. Uma pessoa de verdade não podia estar se comunicando pelos fones de ouvido.
Decidido, tratou de aplicar um safanão mental em si mesmo. A voz era real, não estava enlouquecendo.
“Sou real, Kurama”, disse a voz, como se lesse seus pensamentos, “não tenha medo.”
“Não tenho medo.”, afirmou, mas seus lábios tremiam.
“Eu percebo o seu medo, sua tristeza pela solidão, mas eles também sentem você, Kurama, e eles estão vindo.”
Eles estão vindo. O sangue de Kurama gelou nas veias.
“Quem está vindo?”, o ruivo mal conseguia falar, imaginando por que dava seguimento àquela loucura. Talvez porque a voz não parecia ser a de um louco ou melhor, não soava como a de um louco e sempre acreditava na sua intuição. Não precisava da memória prá saber disso.
A voz calou-se e o som de sua respiração era a única indicação de que encontrava-se presente. Então falou, com certa aflição:
“Tome cuidado, Kurama. Eles irão seguí-lo cada vez mais de perto e você só vai perceber quando for tarde. É assim que agem. Mas você é forte e poderá resistir a eles, se quiser.
“Diga-me seu nome.”, pediu o ruivo. O tormento que transparecia na voz despertava sua simpatia. Parecia tão perdido, tão só. E ele sabia bem o que era a solidão. Continuou, “ Vou pedir a alguém que o aj...”
“Escute!”, interrompeu ele, “Você tem que me ouvir. Fique atento, Kurama. Seja forte. Vá embora daqui... para longe, muito longe.”, as palavras dele tinham uma convicção enervante, “A distância lhe dará mais força.”
“Quem e você e por que me diz essas coisas?”, talvez pudesse ajudá-lo se conseguisse saber como ele pensava, se conhecesse seus sentimentos. Jamais voltaria as costas a alguém em dificuldade. A voz tornou a lhe falar:
“Sou sua maior esperança.”, Kurama estremeceu ao ouvir aquilo e desistiu das boas intenções. “E sua parte mais escura, Kurama. Estou preso em seus pensamentos, perdido em suas lembranças... Sou uma parte verdadeira de você. Sinto seu medo tornar-se mais profundo a cada dia que passa. E posso sentir também que eles estão chegando perto.”
“Quem?”
Ficaram em silêncio, e ele imaginou se a voz iria responder. Estranhamente, desejava que respondesse. Por mais que tentasse se convencer que se tratava de um psicótico, algo naquela voz, naquelas palavras, no jeito que se demonstrava consciente dele, fazia-o acreditar que era sincero.
“Por favor”, insistiu, “diga-me quem está chegando.”
“Eu quero dizer... Queria poder dizer.”, fez-se uma longa pausa, “Mas não posso. Acredite em mim, Kurama. Acredite!”
Silêncio. Havia ido embora.
“Mas que droga!”, praguejou, arrancando os fones da cabeça.
Jogou-os sobre a escrivaninha e juntou as mãos, tentando fazê-las parar de tremer. A música jorrava das caixas de som, fazendo o quarto vibrar.
“Talvez eu esteja mesmo ficando maluco...”
Cobriu o rosto com as mãos. Só os malucos ficavam ouvindo vozes dessa maneira. Não, vozes não. Uma voz. A mesma voz que ouvira na noite anterior, ao colocar os fones para ouvir aquela música.
A intuição dizia-lhe que a resposta a todos esses tormentos encontrava-se no seu passado, que permanecia esquecido, perdido em algum lugar de sua mente. Novamente, as lágrimas voltavam a deslizar pela face... Respirou fundo e voltou-se para o aparelho de som, programando a música para tocar mais uma vez... a melodia agradável inundou o quarto mais uma vez... Adorava aquela balada... Parecia contar sua própria história, embora ele mesmo não recordasse.
“Wasurenai... Tazasareta kono mune o ... Aketa kimi o ...”
Mais lágrimas rolaram pelo rosto e caíram sobre a mesa. Talvez fosse melhor seguir o conselho que dera à voz e consultar um psiquiatra. E se a voz não fosse mesmo real?
Não, assegurou-se, a voz era real. Um indivíduo doente que pedia ajuda. A ajuda dele. De uma maneira peculiar, sim, mas não podia fingir que não era real. E na noite seguinte, quando o procurasse de novo, iria ajudá-lo. Iria descobrir o nome dele, não importava o que tivesse que dizer para isso e o convenceria a procurar ajuda médica.
Mas Kurama também precisava de ajuda. As ausências tornavam-se cada vez mais freqüentes. Ainda não sofrera nenhuma enquanto encontrava-se em casa, mas era só uma questão de tempo.
Andava perdendo a consciência mais vezes a cada vez por períodos mais longos, começava sentindo um forte tremor nas mãos, nos braços, então, a visão nublava, escurecia e em seguida ele mergulhava num negror absoluto. Não tinha a menor idéia do que ocorrera nesse tempo. Voltava a si minutos ou horas depois, sem saber o que fizera, onde estivera. “Despertava” nos mais diversos lugares, uma vez ao volante do carro de seu padrasto numa estrada que não conhecia, outra numa joalheria na qual nunca tinha estado. Até mesmo vira-se em um Templo abandonado.
Ao lembrar-se disso, arrepiou-se inteiro: as portas do Templo estavam trancadas com cadeados do lado de fora, jamais conseguira descobrir de que modo fora parar lá dentro. Sorte que o vigia, muito velho, não fez perguntas quando ouviu-o gritando por socorro para que o tirassem dali.
Um médico poderia ajudá-lo a lidar com essas “ausências”. Uma vez que não poderia fazer nada com as próprias sementes. Pelo que Yusuke dissera, ele entendia tudo sobre plantas e como manipulá-las até mesmo transformando-as em armas, lembrava-se de um chicote de rosa, mas sua energia espiritual estava baixa demais para conseguir manifestá-la. E mesmo que estivesse em perfeitas condições, não conseguia lembrar-se de como utilizar a energia para transformar a rosa e as sementes.
Realmente, não podia mais ignorar esses acontecimentos estranhos. Aqueles escurecimentos eram uma válvula de escape, tinha certeza. Deviam desaparecer por si só. Nada conseguira ao lutar contra o formigamento que se apossava de seu corpo quando “aquilo” começava. Em seguida vinha a escuridão. Com o passar dos dias o medo de ficar sozinho aumentava. Estava muito confuso. Os próprios pensamentos estavam contraditórios demais.
A voz soou em sua mente, como um eco, repetindo a advertência.
“Eles estão chegando perto.”
E em algum lugar, bem no fundo de sua mente, brilhou por instantes a visão de olhos vermelhos iluminados pelo fogo de uma lamparina. Em seguida um negror gelado toldou-lhe a visão, e Kurama estremeceu.
Hiei inclinou-se e aumentou o volume daquele aparelho que tocava aquele objeto pequeno e brilhante, CD. Aquele idiota do Yusuke estava ensinando vários hábitos dos nigen para ele, de modo que conseguisse suportar sua estada nesse mundo. Não ligava muito prá quase nada que explicava, mas aprendera como mexer nessa máquina só para ouvir essa música. A música que Kurama tanto gostava, e que ele aprendera a gostar também.
Kurama... sua raposa... Lembrou-se da conversa que tivera, mentalmente com ele, a poucos minutos.
Não pôde deixar de perceber a tensão na voz dele. Kurama estava perturbado. Chegou a sentir o medo, o desejo de ajuda, de conforto. As sensações nessa noite eram muito mais fortes do que sempre tinham sido. A culpa apertou o coração do youkai. Parte do medo que sua raposa sentia era culpa dele, mas que diabo!, não tivera escolha. Um encontro talvez teria sido menos assustador, mas não podia permitir que Kurama o reconhecesse. Fora por isso que preferira comunicar-se com ele através da mente, do espírito, para avisá-lo que fugisse antes que fosse tarde demais
No entanto, não seria de admirar se a raposa não acreditasse nele. Não podia dizer-lhe por que tinha que fugir e muito menos podia procurá-lo, sentar-se diante dele, segurar-lhe as mãos e explicar. Não podia revelar-lhe o passado, vê-lo, tocá-lo seria um risco alto demais. A Promessa não podia ser cumprida.
A Promessa... um frio correu-lhe a espinha.
Se pelo menos Kurama desse atenção ao seu aviso! Os demônios já estavam tão perto dele, apenas esperando o momento que a ordem fosse dada, e tudo que podia fazer era ficar no meio. Inferno! Se não fosse tão perigoso para o kitsune...
Recostou-se na almofada, no aposento que ocupava dentro do Templo de Genkai, e fixou os olhos no teto. As luzinhas pulsantes do aparelho de som de Yusuke relampejavam, colocando reflexos vermelhos e verdes na escuridão que o envolvia.
Distraidamente, passou os dedos sob a marca que, a poucos dias, desaparecera de seu pulso esquerdo, uma outra marca também deveria ter desaparecido, mais rapidamente, do pulso de Kurama. As marcas que simbolizavam a ligação eterna entre eles.
Livrou-se do pensamento. Hoje esse símbolo não mais representava um vínculo. Ao contrário, a lembrança dessa marca servia para protegê-los do que a união significava. A comunhão absoluta entre ambos. Hiei apertou as mãos, num ato de revolta, essa comunhão era algo que jamais se materializaria para ele, pois sua alma continuava presa à ameaça e à escuridão.
Suspirou gravemente.
Kurama era dele.
Ele era de Kurama.
O Demônio do Fogo pertencia à raposa, partilhava seus pensamentos a ponto de senti-lo tão intensamente quanto sentia o próprio coração batendo no peito. Eles tinham feito os votos na caverna de Yansang.
Mas não podia ser. Uma mulher interferira na vida deles, impusera Hiei como seu algoz para ter a chance de acabar com sua raposa. Uma mulher poderosa e rancorosa e agora Kurama estava próximo de ficar à mercê dela.
Estava chegando o período que Mukuro predestinara, e com ele o dia em que a mulher ordenaria aos demônios que a seguiam, a Caçada. E todos viriam atrás de Kurama, para entregá-lo à ela. E se até aquele momento Hiei cedesse ao seu desejo, selaria a sorte de sua raposa... Diabos... Morte ou prisão... Não podia permitir nenhum deles. Tinha que proteger o kitsune de qualquer maneira.
“Hn. Que inferno!”
Não deveria sentir-se tão atraído por ele. O que devia fazer era desligar essa máquina, deitar-se e tentar dormir um pouco. Treinava praticamente o dia inteiro, desde antes do sol nascer até o início da madrugada, se não descansasse um pouco de nada adiantariam seus esforços em tentar proteger a raposa.
Se bem que interrompia os treinos alguns momentos por dia, prá vigiar um pouco mais de perto Kurama. Ficava sempre a uma distância segura, observando-o, acompanhando seus movimentos, suas conversas com Yusuke, seu treinamento... ainda continuava ágil e rápido, embora não pudesse contar com o you-ki conseguia movimentar-se muito bem para um corpo apenas humano. Porém aproximar-se assim, não fora boa idéia.
Não conseguia deixar de pensar nele, mesmo sabendo que não poderia tê-lo. Hiei não queria que nenhuma outra parte da Promessa fosse cumprida. No entanto, não podia ficar sem ouvir a voz dele, sua imagem não lhe saía da cabeça, aquecendo-lhe a alma dominada por um frio intenso.
Conseguia ver a raposa com a maior clareza, bastava fechar os olhos. Longos e sedosos cabelos que eram como chamas vivas, pele clara e macia que lembrava a textura da pérola, olhos cor de esmeralda, brilhantes. Podia até sentir seu cheiro: um leve, suave e ardente perfume de rosas.
Se, pelo menos, a escuridão em sua alma não fosse tão espessa e forte, no entanto incapaz de apagar as lembranças dos raros momentos que tivera com aquela raposa! Uma figura tão bela e magnífica que ele queria de tal maneira que seu corpo inteiro doía só em pensar. Não se tratava de luxúria, ele não sabia o que era isso. O único ser que quis de modo completo foi Kurama, e por saber que era correspondido, lembrar que ambos haviam feito os votos, a escuridão de sua alma demoníaca o impelia a se apoderar do que era seu. Cada dia era uma luta feroz para conter aquele desejo que o consumia aos poucos.
Kurama fora poupado desse tormento pela falta da memória. Tinha noção apenas do medo pelo desconhecido que o assaltava nos assustadores momentos, antes e depois de ser envolvido pelas ausências, isso porque nesses momentos o Youko tentava recuperar sua energia para prepara-se para a Caçada, mas o ki fraco, adormecido, não colaborava. E o medo, quando despertava dessas escuridões era opressor demais. Hiei conhecia esse medo da raposa.
Sua raposa clamava por ajuda... uma ajuda que ele podia dar, mas o preço seria muito alto. Tentaria continuar ajudando-o à distância.
Com fúria, lembrou-se da última vez que vigiara a raposa de perto, naquela tarde. Os demônios estavam espreitando, próximos demais, E enviavam avisos que não parariam enquanto não o capturassem para Mukuro.
Quanto mais perto eles chegavam, mais forte se tornava a conexão entre Hiei e Kurama. Ele sentia o medo que o angustiava e que desafiava o youkai a agir. Depois dos escurecimentos da raposa, as sensações haviam se tornado mais fortes e era nesses momentos que Kurama mais se assustava, apesar de não lembrar nada depois, de não saber porque tinha medo. Mas Hiei vivia essas escuridões com ele e lembrava.
Já não lhe bastava simplesmente observar Kurama à distância. Precisava mais. Precisava vê-lo, tocá-lo. A raposa era dele...
“NÃO!”, a negativa explodiu em sua mente.
Não devia tê-lo, por mais desesperadamente que o quisesse, por mais que os sentimentos sussurrassem o contrário. Kurama não podia ser dele. Era simplesmente o protetor dele. Era uma voz a avisá-lo que precisava escapar do que se aproximava, tinha que obrigá-lo a ouvir o que dizia e a ir embora. Senão, Kurama iria conhecer o negror que os espreitava plenamente, e tornar-se parte dele, como Mukuro determinara, e Hiei não permitiria! Não seria o responsável pela morte de sua raposa, nem de sua prisão.
As sombras se adensaram e os sussurros surgiram, como sempre. Mas nessa noite vieram sonhos revivendo o tormento de Hiei, alimentando a dolorosa fome por Kurama que lhe devorava a alma.
Ele e a raposa formavam um só ser, apesar de haverem sido separados pelos acontecimentos, o sangue correra livre, os votos tinham sido feitos, ambos haviam reconhecido o elo que os unia.
Um pranto dolorido surgiu em sua mente, um pranto de saudade, de anseio. Em sua mente materializou-se aquele que sua mente, corpo, alma e coração, desejava...Kurama.
O kitsune levantou os olhos, arregalando-os ao ver sua figura. “Itoshii...”, sussurrou, correndo e jogando-se em seus braços, “A tanto tempo estou esperando... Eu amo você, Hiei... não me deixe, por favor, não me deixe novamente! Eu preciso de você!”
O Demônio do Fogo abraça a raposa fortemente, não acreditando que finalmente encontrava-o em seus braços. Sentindo seu calor, seu perfume, sua maciez... Tomando-lhe o rosto entre as mãos, beijou-o provando, conhecendo o gosto que tanto desejava... Era um beijo faminto, desesperado, alucinado, apaixonado... Como se tudo o que sentissem estivesse sendo provado a ambos naquele momento... Perdiam-se nas sensações de estarem nos braços um do outro.
“Agora! Ataquem!”, uma voz gritou entre as sombras.
Correntes surgiram da escuridão, separando-os um do outro. Hiei sentiu um corrente passar pelo seu pescoço, outra nas pernas e outra amarrando seus braços nas costas, tentou se libertar, mas a pressão em seu pescoço aumentou, quase sufocando-o.”
“HIEI...”, era a voz de sua raposa gritando desesperadamente.
Conseguindo firmar a visão, o youkai viu, aterrorizado, o corpo de Kurama ser amarrado em uma mesa de pedra, as correntes, marcando e sangrando a pela clara e macia, quanto mais tentava se libertar, mais as correntes eram puxadas, prende-o ainda mais àquele altar de sacrifício.
Hiei viu uma mulher caminhar em direção a Kurama, uma espada em suas mãos, a lâmina refletia as chamas das tochas e o luar acima deles. Parou ao lado da raposa, olhando-a com ódio.
“PARE!”, o Demônio do Fogo gritou. “Não pode matá-lo, não o possuí!”
“Mas você o ama!”, a voz fria da mulher devolveu, “E por causa dele me humilhou como nenhum outro ser teve a coragem de fazer. Ele morre e você viverá confinado, lamentando a cena que o condenou!”
Sem hesitar, a mulher segurou os cabelos ruivos com a mão esquerda, erguendo um pouco a cabeça da raposa, enquanto a espada descia rapidamente em direção ao pescoço decepando-o num só golpe, fazendo o sangue jorrar sobre o altar.
“NÃÃÃÃOOOO!”, foi o grito alucinado de Hiei na noite silenciosa.
Hiei ergueu-se de um salto, segurando o cabo da katana com os dedos crispados. Seu olhar percorreu o aposento. Vazio. Um suor frio molhava-lhe o corpo. Embainhou a espada e passou a mão pelos olhos, sentando-se no chão. Aos poucos tornou a ouvir a música do rádio, voltando de vez à realidade.
No entanto, aquele sonho também poderia ser sua realidade mais adiante. Duas almas haviam sido unidas, não adiantava negar. Tinha que se controlar ou não conseguiria salvar Kurama, pois os demônios estavam muito próximos. Faltavam duas semanas para a Lua Cheia do Equinócio de Gelo.
Os demônios tentariam pegar Kurama nos seus momentos de escurecimento, nas suas ausências. Ela não se lembrava de nada e ficava muito mais vulnerável nesse estado, totalmente inconsciente.
Mas Kurama era dele também. Pensar nisso o fez incendiar-se por dentro e destruiu a muralha que erguera para se proteger.
Kurama era dele. Ninguém tocaria em sua raposa.
“E aí, Kurama! Tudo beleza?”
Kurama ergueu os olhos do livro que estava lendo, para encarar Yusuke.
“Desculpe... O que você disse?”
“Eu disse: E aí, Kurama! Tudo beleza?... O que é que você tem, hein? Tá com uma cara! Não tá a fim de treinar hoje?”
“Agradeço sua preocupação, Yusuke. Estou bem , sim. Só com um pouco de dor de cabeça.”, passou as mãos pelos fartos cabelos ruivos em desordem e desejou ter por perto duas aspirinas extra-fortes.
“Ah, dor de cabeça! Geralmente é desculpa para outra coisa, não para deixar um treino!”, o detetive deu uma piscada marota.
Cansado, Kurama inclinou-se para trás na cadeira de sua escrivaninha, alisando o pulso esquerdo, distraidamente, um hábito recém adquirido pelo que podia lembrar-se, mas que o acalmava terrivelmente. Podia ser imaginação, mas sempre que repetia esse gesto nas últimas semanas, parecia aliviar a pressão dolorosa que sentia no peito.
Yusuke entrou de vez no quarto do amigo, parando ao lado da escrivaninha, observando-o para ver se havia algo mais que não contara ainda. A pedido de Hiei, todos estavam muito atentos a Kurama, cada dia que aproximava-se a Lua Cheia. Continuou a conversa, para que ele não desconfiasse de nada.
“Deve ser uma dor de cabeça teimosa como do diabo, mané! Você se queixou dela a semana inteira...”, o detetive puxou o saco de papelão que carregava e estendeu-lhe, “Sua mãe mandou trazer para você comer. Disse que não come nada desde ontem à tarde. Pode ser fome. Coma. Experimentei um lá na cozinha, é bom prá caramba!”
“Obrigado.”, Kurama abriu o pacote e pegou o bolo.
Seu estômago roncou quando deu uma pequena mordida, mas não prestou atenção no que comia. Queria apenas dormir sossegado como dormia antes, com sonhos lindo, que não mais conseguia recordar, acordando repousado e descontraído. Os escurecimentos deixavam-no exausto e assustado. Sentia medo demais para dormir.
Apesar do baixo astral, não pôde deixar de rir ao ver Yusuke tirar metade de um dos doces com uma só dentada. Olhando-o, ninguém dizia que comia tanto. O amigo percebeu e acabou rindo também.
“Tá bom, confesso: sua mãe cozinha bem prá dedéu... Tá legal, já vi que hoje você não está a fim de exercício. Trate de dormir porque tua cara tá um horror! Vai assustar sua legião de fãs... E não esquece que temos a festa da Keiko, hoje. Te vejo à noite, lá pelas nove, no Rock Parade.
“Ai, não!”, Kurama passou a mão pelos olhos cansados, “É hoje? Pensei que fosse na sexta-feira que vem.”
“Precisa ficar mais ligado, Kurama... Melhor dar um tempo nas noitadas que vem te deixando com essas olheiras aí... Alguma garota?”, sabia que não era, mas precisava manter o segredo, e não deixá-lo perceber que sabiam que havia algo diferente com ele.
Kurama ignorou a pergunta.
“Como será esta noite?”
“Maneiríssima!!! A Keiko contou que serão dois disc-jockeys fazendo vários shows com músicas variadas... Ela exigiu a presença de todo mundo!”
“Tá bom, Yusuke. Vou chegar na hora, mas não prometo ficar muito tempo.”
“Você manda! Só não pode furar com a gente, ok? Tô indo, falou? Até lá!”
“Até mais tarde.”, viu o amigo fechar a porta ao sair. Suspirou, jogando a cabeça para trás.
Os amigos eram tudo que lhe restava, a única coisa que o impedia de enlouquecer. Tinha que continuar a fazer as coisas de sempre enquanto tentava descobrir o que estava acontecendo com ele.
Yusuke chegou um pouco atrasado para o encontro, no Templo de Genkai. Assim que entrou recebeu um olhar bravo da mestra e um irritado de Hiei.
“Está atrasado! Por que a demora?”, perguntou a mestra.
“Ah, larga do meu pé! Perdi o trem porque tive que passar na casa da Keiko antes de vir prá cá. Mas cheguei, não cheguei? Vamos logo porque tenho que voltar rápido prá cidade.”
“Insolente! Por causa disso vai ficar duas horas a mais praticando equilíbrio no cume da montanha, amanhã cedo!”
“Tá maluca, velha? Eu, hein? Estressada!”
“Hn. Parem com isso.”, cortou o Demônio do Fogo rispidamente. “Você foi até a casa de Kurama.”, era uma afirmação, não uma pergunta.
“Mas como é que você...”, o detetive parou no meio da frase, pergunta idiota que ia fazer. Hiei estava cada vez mais ligado a Kurama, sabia tudo o que se passava com ele. “Ah, deixa prá lá... Fui até lá prá ver como ele estava. Hakushim foi até minha casa esta madrugada.”
A notícia caiu como uma bomba na sala onde os três encontravam-se. Hiei sentiu um frio gelado no estômago. Chegara o momento. Ouviu a voz de Genkai dirigir-se ao detetive sobrenatural.
“Isso quer dizer que..”
“É isso aí, galera!”, interrompeu o garoto, “Essa madrugada, Mukuro, decretou a Caçada a Kurama Youko! A partir de hoje, todo cuidado será pouco prá tentar protegê-lo.”
Um silêncio pesado pairou no Templo. A ameaça, finalmente, era real. A luta contra os demônios iria começar, e Hiei não tinha a menor idéia de como iria enfrentá-los. Foi a velha mestra quem quebrou o silêncio.
“Então é melhor não deixar Kurama sozinho. Um deslize poderá significar a captura dele.”
“Hoje tá garantido! Kurama vai até a festa da Keiko no Rock Parade. Estará entre a gente e não poderão pegá-lo. Aliás acho que até vai ser bom prá ele, tá com uma cara de quem não dorme a dias. Talvez precise mesmo se distrair um pouco... Bom, tô indo nessa pessoal. A gente se fala amanhã!”, levantou-se e foi em direção à saída do Templo.
Ficaram na sala apenas a mestra e o youkai. Depois de um tempo, Genkai perguntou a Hiei.
“Em último caso, se for necessário, tem alguma idéia de onde poderemos esconder Kurama?”
O Demônio do Fogo contemplou o céu limpo e claro de início de inverno. Depois de um tempo respondeu.
“Sim, eu sei de um lugar. O único lugar onde não poderão entrar. Mas espero não ser necessário utilizá-lo. Hn. É um lugar seguro, porém, pode vir a ser o túmulo de Kurama. E não quero pensar nisso.”, finalizou levantando-se e indo em direção ao aposento que Genkai lhe oferecera.
A velha mestra observou o youkai sair, em silêncio. Depois olhou para o fogo da lareira.
“Não se pode mudar o que está escrito. Ninguém foge ao seu destino. Em breve, você e Kurama saberão disso, Hiei.”, murmurou para si mesma.
Não iria conseguir ficar ali mais nenhum minuto. Estava sentido-se sufocar. Respirando fundo, Kurama saiu para o corredor, tomando cuidado para não fazer barulho e chamar atenção da mãe, queria sair sem precisar dar explicações.
A solidão, apesar de triste, lhe permitia pôr as idéias em ordem. Procurava informações que preenchessem os vazios da mente. Precisava recordar. Havia lembranças importantes escondidas em algum lugar. Perguntas não respondidas atropelavam sua mente e os escurecimentos o enlouqueciam. Decididamente, precisava fazer alguma coisa.
Uma rajada de ar gelado envolveu-o quando abriu a porta de casa puxou as mangas do suéter de lã sobre as mãos. Fechou a porta e caminhou depressa até a garagem. Listras douradas já ziguezaguevam no horizonte: o crepúsculo vinha chegando, mas não depressa o bastante para desfazer o mal-estar de Kurama.
Passou pela pesada porta que protegia a garagem escura. As sombras o envolveram, o barulho de seus passos ressoando contra o concreto. O barulho misturava-se com sua respiração e as batidas do coração.
O sopro leve de vento veio de uma direção não especificada, como se alguém invisível volteasse ao redor dele. As mãos começaram a tremer...
“Não...”, gemeu, tentando resistir, e os braços tremeram logo em seguida.
Conseguiu dar mais alguns passos até parar ao lado do carro do padrasto, o tremor já se alastrara por todo o corpo e os nervos pareciam estar à flor da pele. Fechou as mãos com tanta força que sentiu as unhas penetrarem na pele. Procurou concentrar-se na dor, mas o tremor prosseguiu.
“Não.”, ordenou a sim mesmo.
Sua voz era quase inaudível, no entanto a pequena palavra tinha força. Determinação, desespero e medo travavam violenta batalha no íntimo de Kurama.
Ele piscou, tentando fazer os olhos entrarem em foco, mas sua visão tornava-se cada vez mais nublada. Procurou lutar contra as trevas que se aproximavam. Pense!, gritava-lhe a mente. Não deixe de pensar e esse negror irá embora. Tem que ir. Tem que ir!
Ouviu outra rajada de vento esgueirou-se ao seu redor... Apoiou-se no carro. O metal sólido do automóvel, a frieza dele penetrando através da calça jeans, gelando as pernas que apoiara na porta. A escuridão continuou a avolumar-se até que parou de sentir frio.
Então, o teto agitou-se, as paredes começaram a ondular e tudo ficou negro.
Hiei dobrou-se sobre a muro de pedra, que circundava a fonte dos jardins do Templo, quando uma dor gelada, como um golpe de faca atravessou-lha o peito. A katana caiu de sua mão, enquanto os olhos piscaram, desfocados.
Com a respiração ofegante, difícil, ele segurou o pulso esquerdo e olhou-se no reflexo da água. Um fogo queimava-lhe por dentro e a dor velava-lhe os olhos, obrigando-o a esforçar-se para enxergar. Entre mais dois relâmpagos cegantes, ele visualizou os longos cabelos ruivos e os olhos cor de esmeralda, enormes de medo. Tremeu incontrolavelmente enquanto as trevas desciam sobre ele e Kurama deslizava, inconsciente, para o chão da garagem.
“Kurama!”, chamou a mente dele, tentando inutilmente, trazê-lo de volta à realidade. O Demônio do Fogo recuou até encostar-se no tronco de uma árvore, a mão apertando o pulso esquerdo, cobrindo a marca da raposa, os olhos fechados, indo em pensamento para a garagem em penumbra.
Achou-se ajoelhado ao lado de Kurama e tocou-o, mas nada sentiu. Não podia senti-lo. Estava ali mentalmente, vendo, experimentando a angústia dele, mas não o tocava.
Uma figura materializou-se das sombras. A figura de um youko. Olhava para o corpo humano desmaiado, tentando fazê-lo obedecer seus pensamentos, sem nada conseguir. A mente de Kurama resistia aos comandos do Youko, empurrando, debatendo-se, ainda semiconsciente. Achava-se perdido em algum ponto entre a escuridão e a luz. Também apertava o pulso esquerdo em busca de força. Da força deles.
A forma materializada do Youko olhou ao seu redor, sentindo uma presença. Hiei também sentiu. Era um demônio. Um enviado de Mukuro. O corpo de Kurama debatia-se, gemendo, sentindo o perigo que aproximava-se enviando energias para enfraquecê-lo ainda mais.
“Seja forte!”, exortava o youkai na mente da raposa. “Resista Kurama. Resista!”. Mas a raposa não podia. De repente, sua mente acabou adormecendo na mais profunda escuridão, ficando vulnerável e à mercê daquela presença demoníaca a mando de Mukuro.
Em desespero para salvar sua raposa, o Demônio do Fogo apelou para a única coisa que podia fazer no momento. Unindo sua mente com a do Youko materializado ao seu lado, ambos tomaram o controle da mente de Kurama. Afinal, ao unir-se à raposa, unira-se à suas duas formas: à humana e à do Youko.
Sobre o controle mental de ambos, Kurama, mesmo inconsciente, levantou-se, abriu a porta do carro do padrasto, ligou o motor. Os pneus cantaram no asfalto e o carro saiu da garagem. Pouco depois, corria veloz pelas ruas da cidade. Para longe. Bem longe.
Hiei oscilava com o movimento do carro, o peito apertado, respirando no mesmo ritmo descoordenado da respiração de Kurama. Sentia o frio que o envolvia, conhecia aquele medo arrasador que paralisava a mente e o corpo dele.
Logo a rua sumiu, a cidade também. As trevas engoliram-nos enquanto iam cada vez mais longe... Para um negror maior e frio, muito mais frio. Hiei apertou ainda mais o pulso esquerdo, como se assim pudesse transmitir algum calor para Kurama. Mas não podia tocá-lo fisicamente. Só podia comunicar-se com ele através de pensamentos e inconsciente a raposa não o recebia.
Sem aviso, Hiei mergulhou na escuridão. O rosto aterrorizado de Kurama foi se tornando menor bem como a forma do Youko ao seu lado, até ser apenas um pontinho claro... e mais nada. O youkai gastara muito de sua energia para unir a mente à do Youko e juntos poderem controlar o corpo de Kurama à distância. Agora essa ligação cessara.
O Demônio do Fogo abriu os olhos e percebeu vagamente o jardim à sua volta. As luzes pararam de piscar. Sua visão clareou e ficou olhando para o próprio reflexo na água. Soltou o pulso que estivera segurando até então. Não podia mais ver sua raposa, porém ainda o sentia. E como sentia, e nada podia fazer!
No íntimo, soubera que aquilo iria acontecer. Lutara desesperadamente contra, tentara avisá-lo por meio do pensamento. Mas não havia sido suficiente. O perigo era real e por mais forte que fosse a ligação entre eles não era poderosa o bastante para Hiei impedir o que acontecia com Kurama. Só havia um modo de conseguí-lo...
Pegou a katana, embainhando-a novamente. Entrou no quarto que ocupava no Templo, vestiu uma camiseta e a jaqueta de couro preta que Yusuke arrumara, para poder andar por aí sem despertar muita atenção dos outros. Pegou uma das sacolas de coisas que o discípulo de Genkai lhe dera, colocou algumas mudas de roupas, as coisas mais essenciais que achava que iria precisar. Não esqueceu a tal carteira de dinheiro, que o detetive dissera ser por vezes necessário no nigenkai. Hn. Não sabia por quê. Jogando a sacola no ombro, saiu novamente para o jardim.
Parou, olhando para o céu, onde as primeiras estrelas começavam a aparecer na noite.
“Maldição, não tenho escolha!”, murmurou para si mesmo, antes de desaparecer entre as árvores, com sua rapidez incrível.
Que o destino o ajudasse, agora que sabia o que deveria fazer.
E que, principalmente, ajudassem Kurama!