“Qualé , mané? Onde você esteve?”, Yusuke correu ao seu encontro, assim que ele entrou na casa noturna, “Está meia hora atrasado, Kurama.”
“Dormi demais.”, respondeu Kurama, sentando-se à mesa que Yusuke indicara. “Todo mundo já chegou?”
“Te mete! Acha que o pessoal ia atrasar prá curtir uma festa dessas? Tá todo mundo por aí, se acabando na pista de dança. Vamos nessa?”
“Ah, agora não. Acho que vou ficar um pouco aqui, talvez bebendo um pouco.”
“Tá legal! Você manda! Mas se quiser, dá um pulo lá na cabine de som. O Kuwabara tá lá, dando uma de disc-jockey.”, o garoto gritou, voltando à pista de dança, mas ficando de olho no ruivo. A mestra lhe avisara que Hiei desaparecera, e quando viu Kurama chegar atrasado, imaginou que tivesse acontecido mais um daqueles escurecimentos. A mestra tinha razão. O perigo estava cada vez mais próximo, tinham que ficar de olho. Mas onde estava Hiei?
Depois de ficar um pouco na mesa que Yusuke indicara, Kurama resolveu ir até a cabine de som. O barulho da música perto da pista de dança era ensurdecedor, fazendo sua dor de cabeça piorar a cada minuto, dentro da cabine devia estar mais tranquilo, assim, poderia ficar um pouco mais na festa e conseguir sair mais tarde sem maiores problemas. Fez um sinal para o amigo que estava do lado de dentro e entrou.
“E aí, Kurama! O pessoal já estava achando que ia furar com a gente!”, Kwabara comentou, apertando a mão do amigo.
“Eu perdi a hora porque dormi demais. Mas não faltaria não.”
“Legal. Fica à vontade aí, daqui a pouco vou assumir o microfone de novo! Vai ver só como a galera se anima!”, disse o amigo, voltando sua atenção para a mesa de som, bagunçando os Cds do disc-jockey, que já estava desesperado com as loucuras do garoto.
Kurama olhou ao seu redor. A parede da cabine que dava para o salão era de vidro transparente, as laterais de vidro fosco de fora para dentro e a de trás de alvenaria. Eles enxergavam a danceteria pelas três paredes de vidro, enquanto só a da frente os mostrava ao pessoal que dançava animado ou andava de um lado para outro. A canção que transmitiam chegou ao final e foi diminuindo de altura enquanto entrava a voz de Kuwabara:
“Vocês estão participando da festa mais quente da cidade, com o som incomparável da Rock Parede, eu sou o Maluco Kazuma Kuwabara que lhe traz o melhor rock vivo e livre de censura. Escolhi as músicas mais quentes para esta noite, então, deixa rolar esta incrível festa do rock!!!”
Mexeu em alguns botões, em alavancas do painel e o som vibrou no edifício inteiro. Kurama foi para o canto mais afastado da cabine, de onde podia observar o espetáculo sem ser visto. Ficou admirando a miscelânea de corpos que se retorciam, giravam, braços e pernas em movimento constante, sob a iluminação pulsante e multicolorida. Luzes estroboscópicas hipnotizavam com o brilho intensamente branco. O coração dele acelerou-se com o ritmo rápido da música, com o som da bateria e os lamentos da guitarra elétrica.
Seu estômago revolveu-se, de repente. Fechou os olhos e apoiou a mão na parede acarpetada, esperando que a cabine parasse de balançar. Não deu certo. Abriu os olhos: estavam nublados, a cabeça começou a latejar a o assoalho ondulou.
“Você está bem, Kurama?”
Kuwabara segurou-o pelo cotovelo, o calor de seus dedos atravessando a manga comprida da blusa branca, era de lã, mas que não conseguia afastar o frio que o envolvia. Kurama piscou, forçando os olhos a entrar em foco.
“Estou bem sim. Só um pouco cansado...”
"E estou confuso, com medo, à beira de um colapso nervoso”, acrescentou mentalmente.
Kuwabara fez um sinal para Yusuke, que mesmo na pista de dança, não deixava de prestar atenção no que ocorria lá dentro. Ele entrou correndo na cabine. Sentia que alguma coisa não estava bem, as energias estavam muito confusas. A mestra tinha razão quando dizia que o perigo estava cada vez mais próximo, mas não podia deixar Kurama ainda mais preocupado.
“Caramba, Kurama! Você está quase desmontando, cara! Não dormiu o dia todo como falou?”
O ruivo fez que sim, mentindo: não queria preocupá-lo. Tomara tivesse dormido! Em vez disso, ficara perdido no tempo e no espaço. Uma outra escuridão apossara-se dele, desta vez muito mais demorada do que as anteriores. Quando abrira os olhos, vira-se dentro do carro de seu padrasto, no estacionamento de um parque. Nunca estivera naquele lugar, que ficava no subúrbio, no lado oposto da cidade.
Voltara a si pouco antes do horário combinado para a festa da Keiko, o rosto molhado pelas lágrimas, a cabeça doendo muito, o corpo gelado, como se a temperatura no interior do carro não estivesse a confortáveis vinte graus.
Tinha sido um negror diferente. Soubera disso no momento em que vira o parque. Sempre voltava a si com medo, com uma mão de ferro comprimindo-lhe o estômago. Desta vez sentira em terror muito mais profundo, como se tivesse descido ao inferno. Um arrepio sacudiu-lhe o corpo.
“Tem certeza que dá prá ficar?”, a voz de Yusuke despertou-o de seus pensamentos.
“Desculpe! O que foi que disse?”
“Perguntei se tem certeza que dá prá você ficar na festa, senão um de nós pode te acompanhar até sua casa, ou até o Templo de Genkai...”
“Não. Não precisa mesmo... São quase dez horas, dá prá ficar mais uma hora ou duas e depois ir pra casa dormir.”
“Tem certeza?”, duvidou Kuwabara. Ele sentia que havia alguma coisa errada. E Yusuke sabia o que era, porque estava muito preocupado, embora não quisesse demonstrar.
“Tenho sim... Olha lá Kuwabara, melhor voltar ao microfone e animar o pessoal, porque já estão deixando a pista.”, falou para o amigo que correu para a mesa de som e colocou os fones de ouvido. Yusuke permaneceu ao seu lado, olhando para a pista de dança.
“Nós jamais paramos e vivemos intensamente aqui no Rock Parade até a meia noite, vocês estão aquecendo a noite comigo, O Maluco Kazuma Kuwabara, e vai rolar mais uma loucura com outro clássico do rock.”, fazendo sinal para o coitado do disc-jockey colocar outra música prá tocar.
Durante a hora seguinte, Kurama divertiu-se com as loucuras de Kuwabara e as músicas tocadas, enquanto observava o pessoal na dançando. Yusuke também voltara para a pista e tudo parecia normal de novo. Observou o mar de rostos através da parede de vidro da cabine de som.
A danceteria encontrava-se repleta. Podia apostar que o dono do estabelecimento estava em seu escritório contando o incrível monte de dinheiro que aquela multidão havia pago. Para quê?, pensou. Para ver os dois disc-jockey que se eles pudessem ver, quase se matavam na cabine? Por que era uma chance de esquecer um pouco os problemas, entregando-se ao som da música e aos movimentos do corpo durante a dança? Ele fechou os olhos. Gostava da música. Afastava um pouco a solidão que lhe oprima o peito de forma intensa, a duas semanas.
De súbito, uma voz em seu interior pareceu chamá-lo. Seus olhos abriram-se, Kurama o viu e sentiu-se visto por ele, que estava de pé na beira da pista de dança, ao lado de uma das paredes de vidro que impediam a visão de fora para dentro. Parado, olhava como se pudesse vê-lo. Não poderia, mesmo que estivesse de frente, pois apenas a pequena luz piloto vermelha da mesa estava acesa na cabine, enquanto os fachos de luz prateada agitavam-se sobre a pista. No entanto, os olhos dele pareciam penetrar o vidro grosso e deviam ser de uma cor estranha, pois mostravam-se como duas esferas de fogo à luz estreboscópica.
Fogo líquido, intenso, pensou Kurama com a estranha sensação de já ter visto aqueles olhos de fogo, afugentando o seu medo. Dedos cálidos acariciando sua face... Mentalmente, deu um safanão em si mesmo. Nada havia de familiar naquele cara. Nada de nada!
Apesar de baixinho, quase do tamanho de uma criança, ele dava impressão de força desde a camiseta preta, sob a jaqueta de couro, à calça jeans também escura, que moldava os quadris enxutos e as pernas esguias. Uma força que parecia alcançar Kurama e livrá-lo de seus medos inexplicáveis.
Impossível. Era um estranho. Ou não era?
Observou-lhe melhor o rosto, a linha angulosa do queixo, a sombra criada pelos maxilares firmes, as sobrancelhas negras, o nariz reto, perfeito. Os cabelos negros, despenteados, que estranhamente se viu tentado a acariciar...
Descobriu-se interessado pelo olhar magnético. Olhos de fogo que pareciam chamá-lo...
“Você parece estranho de novo Kurama... quer que eu vá pegar uma bebida pra você?”, ouviu Kuwabara perguntar-lhe.
Kurama olhou-o, rápido:
“Não”, murmurou e seus olhos voltaram ao estranho.
Ele havia desaparecido. Procurou-o entre a multidão, sem êxito. Virando um pouquinho a cabeça ele viu o próprio reflexo no vidro: uma figura frágil, de cabelos vermelhos, longos, pele muito branca, mais branca ainda no decote formado pela blusa branca de tricô. Levou uma das mãos à garganta, triste com a partida do olhar de fogo.
Notou que sua mão tremia, sentiu calor, depois frio. Um rosto materializou-se ao lado de seu reflexo. Olhos chamejantes em feições distorcidas por partes mecânicas em sua face, um olhar raivoso, um sorriso cruel...
Kurama recuou e olhou para trás. Ninguém. Apenas Kuwabara e o outro rapaz, alguns passos ao seu lado. Fitou de novo o vidro e a aparição estava lá, o olhar mais flamejante ainda.
“Tem certeza que não quer beber alguma coisa?”, Kuwabara insistiu.
Kurama voltou o olhar confuso para o amigo.
“Acho que sim.”
“Olha, eu pego prá você...”
“Não, eu mesmo vou.”, interrompeu o amigo. “Preciso de um pouco de ar.”
“Não acho que vá encontrar muito ar ali.”, Kuwabara indicou a multidão dançando e a densa nuvem de fumaça que pairava acima de suas cabeças.
“De qualquer modo, vai ser bom esticar um pouco as pernas.”, insistiu Kurama, desesperado para escapar do rosto fantasmagórico. “Estou sentado a muito tempo.”
“Tem certeza?”, o amigo estava preocupado com a palidez de Kurama.
“Tenho.”
“É, parece que está mesmo precisando de uma bebida... Sua voz está áspera.”
Kurama assentiu, engolindo com dificuldade, a garganta parecendo uma lixa.
“Me traz uma cerveja?”, pediu Kuwabara ao ver o amigo se dirigindo para a porta .
“Claro.”
Ele saiu e viu-se no caos do Rock Parade. Depois de escapar de algumas garotas que dançavam e tentavam puxá-lo para a pista, começou a longa jornada até o bar.
O ritmo da música ressoava no seu crânio, em sintonia com as batidas do coração. Foi caminho, conversando um pouco com os que o reconheciam e o paravam. Havia corpos e rostos por todo lado para onde se voltava. Afinal, conseguiu chegar ao balcão do bar, num hall junto ao salão. Pediu uma cerveja para Kuwabara, um chá gelado para si e voltou-se observando os rostos que a rodeavam. Pareciam preocupados, perdidos na música e na energia que flutuavam que flutuavam no ambiente. Quase deu um pulo quando a voz do barman soou atrás dele.
“Já está pago. Por causa do garoto que está na cabine de som. Ele lotou a casa com as loucuras dele, então o patrão deu a festa da sua amiga de graça!”
“Obrigado.”, sorriu Kurama em retribuição.
Quando pegou a garrafa de cerveja gelada, estremeceu. Seus dedos começaram a tremer, a sensação estendeu-se para o pulso e subiu pelo braço. Praguejou quando o tremor manifestou-se na outra mão e subiu também. O negror começou a envolvê-lo, implacável.
“Ei! Você está bem?”, gritou o barman, vendo-o andar com passos inseguros.
Lá fora. Se pudesse chegar ao carro! Não queria perder os sentidos diante de toda aquela gente. Mais alguns passos, disse a si mesmo...
Sua vista escureceu. Continuou andando cegamente. Quando chegou à porta as trevas achavam-se próximas. Tentou abri-la, mas seu braço não se mexeu. Tudo começou a girar, as luzes piscaram mais depressa. Estava quase desmaiando. Os joelhos amoleceram e começou a cair.
Braços fortes o sustentaram antes que chegasse ao chão. Suas costas apoiaram-se num peito aconchegante e ouviu uma profunda voz masculina:
“Kurama...”
Conhecia aquela voz que ressoou por segundos em sua mente antes que o negror se apoderasse dele.
Eles estão vindo.
“Sai da frente, cara! Não vê que está atrapalhando a entrada?”
Sempre segurando Kurama, Hiei saiu de lado, enquanto o rapaz entrou na danceteria acompanhado de outra garota.
Olhou ao redor, examinando todos os rostos das pessoas por perto. Ninguém parecia interessado nele, nem no rapaz que amparava. No entanto, podia sentir a presença. Kurama fora apanhado pela escuridão e ia ser apanhado por algum demônio seguidor das ordens de Mukuro. Alguém que estava por perto, esperando essa oportunidade em que a raposa ficava vulnerável.
“... vamos curtir mais um pouco de som legal com a galera favorita da sua mesa de som e isto aqui vai pegar fogo!”, exclamou a voz do imbecil do Kuwabara em todas as caixas acústicas e as pessoas aplaudiram, com gritos, palmas e assobios.
Hiei ergueu Kurama nos braços e empurrou a porta com um ombro. Lá fora, respirou fundo o ar frio da noite. A raposa agarrou-se na jaqueta de couro, lutando contra as trevas. Sempre lutando e sempre perdendo. Mas não perderia desta vez, ele cuidaria disso.
Olhou ao redor enquanto ia para o estacionamento; tinha que passar por um trecho da rua que a luz do poste não iluminava direito. Os cromados de uma moto preta cintilavam ao luar, como um farol orientando o navio perdido na tempestade. Olhou para Kurama em seus braços. A distância que teria que percorrer era muito longa, tinha que ficar atento e com a mente presa à dele, não ia conseguir correr rápido suficiente e perderia muita energia.
Olhou novamente para a moto. Kawasaki. Sabia ler um pouco do idioma dos nigens por causa de Kurama. Bom, daria um jeito. Já experimentara andar num troço daqueles a poucos dias, quando perguntou para Yusuke qual meio de transporte era rápido e ágil. O detetive aparecera com uma máquina parecida com aquela, e ensinara com usar. Pois bem, estava na hora de saber se aprendera ou não.
Andou mais depressa, então ouviu passos atrás de si. Um demônio os seguia. Alguém que estivera esperando pelo momento certo. Alguém que entregaria sua raposa em troca de uma recompensa qualquer. Mas nessa noite, tudo seria diferente. Hiei começou a andar mais rápido, sem reagir quando Kurama começou a debater-se e lhe arranhou o rosto.
Afinal, chegou à moto. Colocou a raposa sobre o selim à sua frente, quando ouviu uma voz em frente gritando:
“Ei! O que pensa que está fazendo? Essa moto é minha!”, um humano aproximou-se e Hiei reconheceu: Dark Angel! Hn. Não tinha tempo prá discussões.
Agarrou o outro pela camisa.
“É sua? Hn. Ótimo. Estou levando sua moto, quando não precisar mais, mando devolver.”
“Espere um momentinho aí, não funciona bem assim...”, interrompeu-se quando sentiu um calor brotar perto de seu rosto. Olhou para a mão que o segurava e viu um fogo negro começar a surgir, “... Tá, tá bom. Leva. Quando puder, me devolve.”, o youkai o soltou e ele voltou para a calçada que dava para a entrada da danceteria.
Sem perder mais tempo, o youkai ajeitou Kurama novamente à sua frente, sentou-se e passou os braços sob os dele, apertando-o quando a raposa se debateu e cravou as unhas em suas coxas, através da calça jeans. Imobilizou-lhe as pernas com os joelhos, impedindo-o de colocar as pernas no chão.
Os passos aproximavam-se quando ele ligou o motor, que respondeu de imediato, e a moto movimentou-se sobre o asfalto.
“Você fez o quê, seu idiota?!?!?”, Yusuke berrava apertando o pescoço de Kuwabara.
“S... só... pe... pedi... uma... cer... ce... cerveja...”, tentava falar, mas sendo enforcado, ficava meio difícil.
“Você deixou Kurama sozinho? É um imbecil mesmo, como Hiei diz.”, largou o coitado que estava ficando roxo, e correu para a porta da danceteria. Recuperando-se, respirando fundo, Kuwabara seguiu o detetive sobrenatural.
Quando alcançaram a rua, ouviram o som de uma moto, institivamente olharam na direção do ruído... Não! Não podia ser!
“HIEI!”, gritou Yusuke, “Volte aqui seu demônio maluco! Não sabe que não pode fazer isso? Devolve o Kurama, seu anão esquentado!”
“O Hiei... numa moto?”, balbuciava Kuwabara, não acreditando no que via. “É o Hiei?”
“Qualé, encosto de macumba mal feita!, volta aqui Hiei!!!!”, gritava o detetive desesperado. Será que aquele youkai enlouquecera? Não tinha dito que era para vigiarem Kurama porque ele não poderia chegar perto dele? Então que diabos estava fazendo com o ruivo, numa motocicleta, saindo em disparada??? Saindo em disparada?, “Espera ,Hiei!”, mas o demônio já ia longe.
“O Hiei numa moto? Mas como?”, Kuwabara ainda perguntava estupefato com a cena, “Onde ele aprendeu a pilotar?”
“Ah, esse é o menor dos problemas. Eu ensinei! Só não achava que ele iria sequestrar o Kurama!”, falou indignado.
“COMO É QUE É??? O HIEI E O KURAMA...????”, gritou Kuwabara, levando um soco de Yusuke.
“Ah! Cala a boca, Kuwabara! Depois eu te explico! Agora tenho que ir falar com a Genkai, falou? Avise a Keiko que precisei ir ao Templo com urgência, mas não comente nada disso, entendeu? Ou eu quebro todos os seus dentes! Fui!”
Depois de distanciar-se alguns metros, Hiei olhou rapidamente para trás. Ouviu os gritos de Yusuke. Viu as fileiras de carros estacionados, algumas pessoas entrando e saindo em direção à casa barulhenta, mas ninguém que chamasse a atenção. Não esperava mesmo ver, com as sombras protegendo esse alguém. Mas sentia que os demônios vigiavam.
Puxou Kurama mais para perto de si, a cabeça dele apoiou-se em seu ombro e o youkai prometeu-lhe ao ouvido:
“Eles não vão pegar você, raposa.”
Nesse momento, Kurama parou de tentar escapar. Descontraiu-se e deixou o corpo apoiar-se no dele, como se esperasse ouvir mais alguma coisa. Hiei juntou seus pensamentos aos da raposa e seu poder fundiu-se com o de Kurama, trazendo-lhe a mente de volta da escuridão total.
“Preciso de sua ajuda, Kurama. Você tem que recuperar o equilíbrio e as forças. Temos um longo caminho pela frente.”
Ele fez que sim com a cabeça e a respiração tornou-se calma.
“Toque em mim”, ordenou o Demônio do Fogo, “Ajude-me, raposa.”
Kurama abriu as mãos, colocou-as sobre as coxas dele, endireitou-se, apoiou os pés nos suportes e passou a acompanhar os movimentos da moto.
Movimentavam-se e respiravam como se fossem um só ser.
Suave, o desejo começou a despertar em Hiei. Sentia o calor do corpo macio, os cabelos roçando-lhe a face, balançados pelo vento da noite...
Amaldiçoou-se. Poderia ser a perdição de Kurama se ao vê-lo ele se lembrasse de seu passado. Saberia o que Hiei significava para ele. Protegendo-o, Hiei arriscaria a alma e a vida de Kurama e pela primeira vez, pensou se não seria melhor deixar que os demônios levassem a raposa agora para tentar resgatá-lo depois.
“NÃO!”, gritou sua consciência. Havia uma chance de que a raposa não lembrasse de nada ao vê-lo. Se mantivesse uma distância segura, se controlasse o desejo que tinha dentro si e nada dissesse do passado, Kurama estaria a salvo.
Teria que protegê-lo nas duas semanas seguintes, até depois da próxima Lua Cheia e da Promessa de Mukuro. Então Kurama estaria livre para continuar sua vida. E Hiei também estaria livre do estigma de ser o causador de todo esse mal à sua raposa.
A corrida através da cidade foi rápida. Pouco depois percorriam uma rodovia deserta, distanciando-se cada vez mais de lá e, esperava Hiei, do perigo.
O facho de luz do farol rompia a escuridão e a neblina densa, iluminando o chão poucos metros diante deles. Para além do farol da moto a estrada desaparecia nas trevas, parecendo diluir-se. O vento era muito frio. Puxou Kurama para junto de si e abriu a jaqueta, abrigando-o o melhor que pode para poder passar seu calor. Em resposta ao comando metal de Hiei, a raposa apoiou-se nas coxas firmes e chegou mais para trás, colando o corpo ao dele. Encontrava-se no limiar da consciência, a mente do Demônio do Fogo ligado à dele, dirigindo-o.
O bio-ritmo de Kurama estava cada vez alterando-se mais, como se estivesse com pressa de preparar o corpo humano para a volta completa de sua memória de Youko e com ela toda sua energia espirtual, por isso as escuridões eram cada vez mais fortes, e esses eram os momentos cruciais de caça para aqueles demônios que espreitavam. Porém, agora, o poder de Hiei opusera-se ao bio-ritmo da raposa. Podia trazer a mente de Kurama de volta, até o ponto de mantê-lo em segurança, mas não bastante para acordá-lo. Não tinha essa força toda. A raposa voltaria a si por conta própria, no momento que pudesse. Ele só podia esperar e torcer para não estar fazendo a maior besteira de sua vida.
No momento em que inclinou um pouco para a frente e aspirou o perfume dos cabelos ruivos, ficou em paz, esqueceu os demônios e o passado por momentos e quase chegou a acreditar que não cometera um grave erro.
Quase... Porque sentia o desejo contido em seu íntimo. Um desejo que solto, poderia consumi-lo. Estava faminto por Kurama, mas preferia morrer a satisfazer aquela fome.
Kurama abriu os olhos lentamente. Um tranqüilo silêncio acariciava-lhe os ouvidos e jamais sentira-se tão aquecido. Uma leve e trêmula claridade no pequeno quarto fazia sobressair o xadrez vermelho e dourado da manta que lhe cobria as pernas. Virou a cabeça e viu uma vela sobre a mesinha-de-cabeceira, a chama dourada, a gota derretida descendo até a base do pequeno castiçal de prata. Um relógio de latão, ao lado da vela, marcava mais de quatro horas.
Nesse instante uma rajada de vento açoitou a janela do quarto, perto da cama. Tudo pareceu balançar e as paredes rangeram, quebrando o silêncio. Uma onda de pânico percorreu Kurama, acordando-o de todo. Sentou-se na cama de casal e examinou o quarto desde a antiga bacia com jarro sobre a penteadeira, até a cadeira de balanço, depois voltou-se para a cama de ferro batido onde estava.
Respirou fundo e percebeu um leve cheiro de fumaça de cigarro. Ergueu o braço, cheirou a manga da blusa, segurou um pouco de cabelo, cheirou-o . Cigarro. Rápidas, as imagens dos acontecimentos em Rock Parade passaram-lhe pela cabeça. O tremor de suas mãos enquanto tentava chegar à saída. A voz do barman... Ei! Você está bem?
Então, as trevas.
Esforçou-se para lembrar de mais alguma coisa. Nada. Apenas escuridão.
Olhou de novo em volta. Mas, onde estava?
Levantou-se, os pés nus sobre o assoalho de madeira. Inclinou-se procurando as botas e viu-as junto da cabeceira da cama. Acabara de calçar-se quando ouviu um barulho. Alguém abrira uma porta em algum lugar da casa. Seus olhos fixaram-se na porta do quarto. Passos aproximavam-se e ele se pôs de pé, endireitando o corpo. Apertou as mãos uma na outra, com tanta força que os dedos ficaram brancos, enquanto o pânico o invadia. Estava na casa de alguém! Das outras vezes voltara a si em lugares estranhos, mas não havia ninguém por perto. O que faria? Yusuke dissera que ele poderia defender-se, mas como sem a energia necessária? Dando uma rosa vermelha prá pessoa que estava ali com ele? Que situação!
A porta do quarto abriu-se e Kurama recuou ao fitar os olhos vermelhos. Lembrou-se de quem olhara para a cabine de som , no Rock Parade.
“Calma...”, ele estendeu-lhe as mãos, “Não vou machucá-lo.”
A lembrança foi como um relâmpago. Viu-o de pé junto à pista de dança, olhando para dentro dela através do vidro opaco da cabine de som. Acontecia o mesmo agora, só que não havia música, nem luzes estroboscópicas. Só existia a chama suave da vela e lá fora o vento assobiava. Talvez estivesse sonhando.
“Onde estou?”, conseguiu articular.
“Num lugar seguro.”, respondeu ele.
Assustou-se ainda mais com aquela voz tão familiar quanto os olhos vermelhos flamejantes.
Eles estão vindo. A frase ecoou na cabeça de Kurama e um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha.
“Você!”, com a garganta apertada, recuou até encostar na mesinha-de-cabeceira., “Não pode ser! Você é que andou interferindo nos meus fones e...”
“Hn. Tentei avisá-lo.”, interrompeu ele.
A voz era profunda, e teve o poder de dissipar o pânico. No entanto, Kurama não ficou sossegado.
“Não chegue perto de mim!”
Ele continuou a fitá-lo com o olhar penetrante, que fazia Kurama ficar arrepiado.
“Tentei, Kurama, mas você não acreditou. Por isso está aqui e é onde irá ficar durante as próximas duas semanas.”
Fique calmo, sussurrou uma voz na mente dele, porém seu coração batia descompassado.
“Você é louco! Não pode me prender aqui!”
Apesar de ser mais alto, Kurama tinha receio de enfrentá-lo, sentia uma força muito poderosa, o estranho bloqueava a porta, então, olhou para a única janela do quarto.
“Nem tente, Kurama. Está emperrada e será preciso mais do que um objeto para abri-la.”, o que não podia contar, era que ele mesmo com um pouco das chamas negras, derretera as dobradiças pelo lado de fora.
“Por que está fazendo isso comigo?”
“Procure compreender que faço isso pelo seu bem. Gostaria de lhe dizer o motivo, mas não posso. Tem que confiar em mim.”
A sinceridade dele atravessou a parede de medo que o separava de Kurama. Parecia tão sincero agora como ao falar-lhe através dos fones de ouvido. Tanto que daquela vez não sentira medo, apenas se emocionara com o desespero que percebera na voz, e ficara nervoso porque pensara que podia estar inventando a voz. Mas agora tinha prova: era real.
“Como... Por que... O que quer de mim?”, perguntou tentando manter a voz firme, apesar da confusão interna.
O estranho ficou pensativo, os olhos vermelhos refletindo a luz da vela.
“Nada.”, respondeu afinal, “Não quero nada, a não ser protegê-lo. Não vou machucá-lo.”, repetiu, “Prometo.”
O modo como ele disse a última palavra, como se estivesse jurando pela própria alma e Kurama devesse acreditar quase o fez rir. Talvez tivesse rido se algo dentro dele não se agitasse a ponto de quase sufocá-lo de emoção. Conseguiu apenas permanecer imóvel, os olhos fixos nele, os dedos crispados nos pulsos à espera de qualquer movimento em sua direção.
Ele continuou a olhar para Kurama por um angustiante momento. Por fim, rompeu o silêncio gelado:
“É tarde. Você precisa dormir. Descanse Kurama. Se precisar de mim, estou na sala ao lado.
Voltou-se para sair, mas o ruivo zangou-se:
“Acha assim tão fácil?”, ele voltou-se, sério., “Você me seqüestra, diz que é para meu bem, sem uma palavra de explicação e me manda dormir?”
“Tem que confiar em mim, Kurama.”
“Confiar em você?, os olhos do ruivo fuzilaram, a insegurança dando lugar á raiva. “Bem, desculpe, mas não tenho a menor idéia de quem diabo você é e não costumo confiar em ninguém estranho, muito menos nos que me seqüestram!”
“Hiei.”
“O quê?”
“Meu nome é Hiei.”
Esse nome fez eco na memória de Kurama. Conhecia aquele estranho de algum dia, de algum lugar! Se sua mente não estivesse tão confusa... Ficou olhando para Hiei, mas os traços firmes, os olhos vermelhos sob sobrancelhas negras, lábios sensuais, nada lhe dissera. No entanto, havia algo de familiar nele. Sem pensar, comentou.
“Você não é humano...”
“Não, não sou. Sou um demônio classe S do Makai.”
Isso ajudou o ruivo a pensar. Então tinham mais alguma coisa em comum. Afinal, pelo que sentia e Yusuke confirmara, o próprio Kurama era um demônio também, só que reencarnado num corpo humano. E era essa energia espiritual que estava adormecida, e que estava ligada à sua memória perdida. Ficou em silêncio pensando. E daí? Ele podia ser um demônio, terem algo em comum, mas tinha seqüestrado-o !”
“Hn. Agora você me conhece.”, ele sorriu e o coração de Kurama sobressaltou-se. Ficou tenso, a insegurança retornando diante da reação que tivera ao sorriso de um estranho, de um demônio.
“Olhe, vamos fazer assim, você me deixa ir embora, e não conto ao detetive sobrenatural que você está no mundo errado, certo?”
Calado, Hiei fez que não com a cabeça.
“Seja razoável, tenho compromissos me esperando... família, escola, amigos... Minha mãe deve estar desesperada, e meus amigos vão começar a me procurar e...”
“Não pode sair daqui.”, interferiu Hiei. “Confie em mim , Kurama. Você e eu não vamos sair daqui por duas semanas.”
A determinação dele era tranqüila. Kurama sentiu um ardor nos olhos e odiou-se por chorar, mas sua resistência havia sido quebrada pelo medo das escuridões e por estar perdido nessa situação toda, como nunca estivera antes. As lágrimas explodiram. Lagrimas de medo, frustração e tristeza desceram-lhe pelo rosto. Sua visão nublou-se e segundos depois sentiu o calor da mão dele em seu braço.
“Não chore...”
“Por favor, não me machuque..”, implorou e a última palavra perdeu-se na garganta apertada.
“Eu jamais o machucaria.”, passou os dedos nas faces da raposa, enxugando as lágrimas. “Só terá que ficar alguns dias aqui. Não entende por que, mas você está em perigo. Há pessoas que querem machucá-lo e aqui estará seguro.”
Seguro? Estava com um demônio do Makai, que falava com ele através de fones de ouvido desligados, que o seguira até o Rock Parade, que o seqüestrara, que o prendera numa casa em algum lugar e estava seguro?
Sim!, exclamou a voz dentro dele, apesar do raciocínio lógico.
“Sei que está assustado... Droga, eu queria poder explicar!”, Hiei ainda lhe acariciava o rosto, “Eles estão muito perto de você, Kurama, e eu tinha que fazer alguma coisa.”
“Quem? Quem quer me machucar?”
“Seres muito perigosos. Seguiram você até aquela casa noturna, e em outros lugares também. Mas ontem, chegaram muito perto.”
“Você me seguiu até lá também.”, resistia à voz interior que o aconselhava a confiar nele, mas e se Hiei estivesse dizendo a verdade? E se estivesse mesmo em perigo? E se...?
“Ainda bem que o segui, Kurama.”, replicou ele, “Se não você teria sido apanhado por eles na porta da danceteria e envolvido por outra escuridão.”
“O que você sabe sobre minhas escuridões?”, indagou tenso.
“Hn. Sei que o assustam e que você tem tido várias ultimamente.”
“Como sabe? Seguiu-me a outros lugares antes?”
Hiei assentiu.
“Tenho vigiado você, Kurama, e não sou um doente desses tipos que pensou. Repito, não vou machucá-lo.”
De novo a estranha convicção na voz dele. Kurama fechou os olhos, sentindo a respiração de Hiei em seu rosto, enquanto os dedos dele secavam-lhe as lágrimas. Era forte a sensação de já ter vivido aquela cena, ter ouvido aquelas palavras, ter sentido, aquele toque leve que diluía seu medo, sua aflição. Mas não podia ser, lembrou-lhe a razão.
“Confie em mim.”, Hiei sussurrou de novo.
Ao abrir os olhos Kurama descobriu que acreditava nele sem saber por quê. Talvez por causa dos olhos vermelhos, tão intensos que pareciam aquecê-lo. Ou talvez porque ele o socorrera na danceteria. Se quisesse fazer-lhe mal, teria feito enquanto ele não podia se defender. E os dedos que lhe acariciavam o rosto podiam ser tudo, menos ameaçadores.
Possessivos, talvez.
Calmantes, sim.
Definitivamente protetores. E precisava tanto daquela proteção! Sua vida virara de cabeça para baixo e perdia um pouco da sanidade mental a cada temido negror. Aquilo era realidade ou estava vivendo um pesadelo?
No entanto, tinha cada vez mais a certeza que conhecia Hiei. Sentia que ele era familiar e sempre confiara em suas intuições. Podia sentir coisas à vezes de maneira muito forte, como agora. Céus! Como percebia a intensidade dos sentimentos de Hiei! Seu jeito calmo não traía o turbilhão que se agitava em seu íntimo, sua luta para controlar os sentimentos. Hiei parecia estar absolutamente calmo, mas Kurama sabia que não era assim.
“Você precisa dormir”, o demônio acompanhou com a ponta de um dedo as olheiras escuras de Kurama. “Está pálido, cansado.”
A raposa fez um gesto de resignação.
“Minha pele sempre foi clara. Tenho a impressão que não tomo muito sol.”
“Uma criatura da noite.”, comentou Hiei, “Como eu.”
Hiei fitou-o como se quisesse saber os pensamentos de Kurama, conhecer seus medos mais profundos e, de repente, a raposa sentiu que seu coração já não estava vazio e frio.
Como se houvessem tocado um botão de contato, fez-se a comunicação entre eles, os sentimentos fluíram de um para outro e Kurama sentiu o que atormentava Hiei: traição, rejeição e desejo derramaram-se dentro de Kurama. E o desejo era muito forte, profundo e consumia o demônio.
Um desejo que pedia por Kurama. Uma voz que chamava por ele.
Confie em mim, Kurama. A voz de Hiei flutuava em sua mente. Estarei aqui sempre que precisar de mim. Perto, velando por você.
Kurama abriu os lábios, mas as palavras não se formaram.
Kurama abriu os lábios, mas as palavras não se formaram.
“Se precisar de mim”, disse ele, “estou na sala. É só me chamar.” Depois de um instante de relutância, soltou-lhe o rosto. Sem uma palavra, voltou-lhe as costas e saiu do quarto.
Aturdido, Kurama sentou-se na cama, trêmulo. Estou aqui, Kurama. Perto de você, a voz dele soava em sua mente.
Num átimo, compreendeu: Ele não o seqüestrara. Hiei acreditava que fazia aquilo tudo pelo bem dele. Nunca o magoaria. E além do toque dele parecer-lhe familiar, Kurama o sentia e isso era o que mais o perturbava. Ligava-se com ele.
Com essa constatação veio o temor: algo parecia não muito certo em Hiei. Sentira sua tremenda luta íntima e percebera nele algo desesperado, atormentado, que atingira a alma de Kurama.
Levantou-se, pegou a manta, enrolou-a no corpo, segurou-a com firmeza e foi sentar-se na cadeira de balanço. Se tornasse a entrar, não queria estar deitado. Sentiu arrepios por causa do frio, por causa do estranho demônio que o assustava e fascinava ao mesmo tempo. Ainda podia sentir o desejo dele.
Não devia sentir tudo isso. Hiei era um estranho para ele.
No entanto, ele sabia das trevas.
“Ele conhece você, Kurama”, disse a si mesmo. “Agora você está salvo. Está seguro.”
Talvez estivesse mesmo salvo naquele momento e não queria pensar no depois. Como confiar em alguém que não conhecia? Teria que tomar cuidado. Tinha que tentar ficar acordado, alerta, apesar do cansaço. Tocou no pulso esquerdo, sentindo-se acalmar.
Estou perto, Kurama, tomando conta de você. Estou aqui se precisar de mim. A voz de Hiei parecia soar junto do seu ouvido. Os tremores pararam e, pela primeira vez depois de duas semanas, Kurama não teve medo quando seus olhos se fecharam.
“Hora de comer!”
Os olhos de Kurama abriram-se. Desorientado, relanceou os olhos ao redor, a luz do sol recortava a silhueta dos ombros e quadris estreitos. Hiei parecia uma misteriosa sombra vinda da escuridão da noite anterior
Então, Hiei entrou, a luz do dia derramou-se no quarto e ele deixou de ser uma sombra. Os cabelos negros, úmidos. A camiseta preta moldava o tórax definido, revelando cada ressalto e cada reentrância; a calça jeans, preta, desbotada, devia ter encolhido pois colava-se à coxas revelando os músculos trabalhados por exercícios rígidos, que deslizavam sob a pele quando ele caminhava. A noite passada havia sido real e seu misterioso salvador encontrava-se perturbadoramente perto.
Kurama inclinou a cadeira de balanço para trás e cobriu-se melhor, subindo a manta que escorregara para o colo. Apesar de estar completamente vestido, sentia-se nu: o olhar de Hiei parecia despi-lo, enxergar-lhe o intimo.
“Hn. Você parece bem melhor.”, comentou Hiei, enquanto colocava sobre a mesinha um prato com comida, parecia ser algo enlatado.
O estômago de Kurama roncou. Esfregou os olhos ainda cheios de sono e perguntou:
“Que horas são?”
“Quase quatro da tarde, pelo que mostra o relógio.”
“Está brincando!”, alarmado, apoiou-se sobre os braços da cadeira para erguer-se, mas Hiei impediu-o, pondo as mãos sobre as dele.
“Calma... Você precisava dormir.”
O calor das mãos dele transmitiu-se por todo corpo de Kurama, que o fitou e se perdeu nas profundezas daquele olhar acariciante. Nos poucos segundos, percebeu a contida tensão e o esforço que ele fazia para se dominar. Pôde perceber indícios de violência, desejo e de algo mais poderoso que corroía, Hiei.
“Você precisava dormir”, repetiu, evitando olhá-lo.
“Há muito tempo que eu não dormia tanto...”, admitiu Kurama.
Hiei assentiu, como se conhecesse os tormentos que haviam roubado o sono dele. E com certeza conhecia, lembrou a si mesmo. Se podia senti-lo, era evidente que Hiei também o sentia.
“Você parece não ter dormido muito.”, comentou, reparando nas olheiras escuras dele. Parecia cansado e, Kurama foi obrigado a admitir, aquele olhar de fogo amortecido pelo cansaço exercia uma atração perigosa.
“Hn. É... Também não tenho dormido bem.”
Hiei movimentou-se pelo quarto, para evitar os olhos da raposa. Ele o trouxera até ali para salvá-lo, no entanto evitava olhá-lo e encostar nele, como Kurama percebeu quando o cotovelo de Hiei esbarrou em seu braço e ele recuou. As batidas fortes de seu coração ecoavam em seus ouvidos enquanto esperava que ele dissesse alguma coisa. O demônio parou de andar pelo aposento e voltou-se para sair do quarto, os passos fazendo o assoalho ranger.
“O poço atrás da casa garante o suprimento de água. Há um banheiro no fim do corredor, mas não tem o tal chuveiro. Só uma pia, uma tina e o vaso. Terá que se arranjar com isso. Se quiser tomar banho, pode ficar à vontade. Estarei na sala da frente.”
A realidade gelou a espinha de Kurama.
“Não pretende, mesmo, me manter preso!”, ergueu-se da cadeira de balança.
O demônio parou, os músculos das costas retesados.
“Pretendo, sim e já lhe disse isto ontem.”, voltou-se e seu olhar tinha a cor e o perigo do fogo, mas a voz não era agressiva, “Não há outro jeito, Kurama. Você está correndo sério risco, acredite ou não. Há gente que deseja vê-lo sofrer. Em duas semanas esse perigo passará e então poderá ir embora.”
“Duas semanas! A minha vida, minha família, a escola, meus amigos...”
“Terão que esperar.”, cortou ele, com voz baixa e firme. “Vou precisar sair prá buscar mantimentos para as duas semanas. Vou à cidade buscar o que for necessário e darei um jeito de ninguém se preocupar com sua ausência. Talvez algum curso fora da cidade.”
“E acha que alguém vai engolir isso? Eu desapareci ontem à noite, no meio do maior embalo numa danceteria!”
“Eles vão engolir tudo que eu queira que engulam.”, afirmou ele, frio. “Você não tem sido confiável, nessas últimas semanas, não andava bem, chegou todos os dias atrasado na escola, agiu de modo estranho com todos, não é mentira... Foi fazer um curso e descansar um pouco fora da cidade. Depois de mais uma crise ontem, eu o socorri e a seu pedido, levei até a cidade onde fará o curso e descansará por uns dias. Só que me pediu para avisar a todos e não comentar onde está, porque precisa de um tempo sozinho para recupera-se.”
“Meu herói!”, ironizou Kurama.
O sorriso de Hiei foi triste.
“Eu jamais fui herói, Kurama. Não se esqueça disso... pelo seu próprio bem.”
“Minha mãe não vai acreditar, a menos que eu fale com ela.”
“Ela vai acreditar, sim. Você sabe que vai.”
Pior é que ele tinha razão: ninguém, inclusive sua mãe, duvidaria se alguém dissesse que ele estava doente, precisando descansar e ao mesmo tempo fazendo algum curso. Pelo que Yusuke contara, era a desculpa que sempre dizia quando era necessário ir ao Makai... Sentiu ímpetos de gritar. Não podia ficar ali parado, enquanto aquele estranho controlava sua vida. Não o machucara, mas não podia ter certeza que não o faria, apesar de sua voz interior dizer o contrário. Lembrou-se da estranha e profunda confiança que tivera nele na noite passada e há alguns minutos, quando o tocara. Afastou os pensamentos como irracionais.
Não podia, não queria confiar nele.
“Será mais convincente se eu falar com ela”, tentou ainda, “leve-me com você e eu telefono.”, quando estivessem num local público, daria um jeito de livrar-se dele.
“Não é boa idéia.”, os maxilares cerrados, o brilho frio nos olhos de fogo disseram-lhe que Hiei não ia ceder. “É mais seguro você ficar aqui.”
“Vai me deixar sozinho aqui?”
“Vou. Precisamos de comida. Principalmente você.”
“Então não planejou nada disso? Tive o azar de cair nas mãos de um seqüestrador que não planeja os golpes!”
“Hn. Não estou no meu mundo, estou no seu! E ainda não me acostumei a ele. Antes de tudo, tinha que resgatá-lo ontem à noite, todo o resto era secundário. Trouxe o necessário para essa noite. Agora, vou buscar o resto... Honestamente, Kurama, pensei que não seria necessário nada disso, e não queria que acontecesse. Mas na noite passada, quando o vi...”, ele hesitou, “não pude deixar que o levassem.”
Kurama entrecerrou os olhos.
“Quem são eles, Hiei?”
“Hn. Os seres que querem te pegar.”
“Isso não me diz nada!”, explodiu, zangado.
“Hn. Pare de duvidar, Kurama. Acredite no que lhe disse. Pelo seu bem, acredite.”
“Por que não foi providenciar a comida enquanto eu dormia?”
“Hn. Não queria que acordasse e se visse sozinho.”
“Por quê? Acha que ficaria assustado? Confuso? Isso eu já estou! Até parece que quer me explicar as coisas.”
“O máximo que eu puder.”
“O que não é muito, pelo jeito!”
“Não...”, respirou fundo e olhou para a porta. “Tenho que ir. Escurece cedo nessa época e quero voltar antes do pôr-do-sol. Estamos a uns quarenta e cinco quilômetros da cidade.
“Que cidade?”
“Hn. Não interessa. Volto o mais depressa que puder.”, chegou até à porta em poucas passadas, saiu e não trancou, para espanto de Kurama. Segundos depois reapareceu no umbral e ele teve certeza que ia trancá-lo, mas só avisou, “ Não saia de casa e estará a salvo. Só para esclarecer, não sou seqüestrador e você não é um prisioneiro.”
“Não? Tenho impressão que não vim por vontade própria.”
“Mas vai ficar por vontade própria.”, as feições bonitas de Hiei tornaram-se sérias: “Precisa ficar, Kurama. Sei que peço muito... Quero dizer, não sabe se sou maluco, que tipo de demônio sou, mas precisa confiar em mim. Este é o único lugar seguro para você. Fique dentro de casa.”
Nem morto!, pensou ele. Por mais sincero que Hiei parecesse, não iria ficar ali esperando para ver se seu instinto estava certo. Como se lesse seus pensamentos, Hiei avisou:
“Esta casa fica no meio de lugar nenhum. Se sair, vai se perder na mata e talvez eu não o encontre antes deles. Então...”, ele calou-se e um arrepio gelado percorreu a espinha de Kurama, que se acalmou, achando que ele queria assustá-lo.
“Nesse caso”, retrucou, “ficarei livre de você!”
O olhar de Hiei tornou-se duro e a voz, cortante:
“Poderá livrar-se de mim, mas ficará em pior situação. É melhor não tentar. Já esqueceu das escuridões? Caso se afaste muito da casa, elas o apanharão e não sei como irá terminar... nem você, uma vez que não tem controle sobre elas e não sabe o que lhe acontece!”
Determinado a não chorar, Kurama mordeu o lábio inferior para impedi-lo de tremer.
“Hn. Inferno!”, Hiei praguejou com ar cansado, “Sei que é duro de aceitar, mas é verdade! Está em perigo, Kurama, eu gostaria de dizer mais e..”
“Então diga! Ajude-me a ver algum sentido nesta loucura!”, viu um brilho diferente nos olhos vermelhos, que logo desapareceu. O rosto dele fechou-se.
“Eu gostaria de poder fazer isso...”, voltou-se e foi embora. Kurama ouviu os passos se distanciando, depois uma porta bater.
No momento em que escutou o motor da motocicleta quase voou do quarto para a sala. Fuja!, gritava a razão e ele queria obedecer. Por loucos instantes, na noite anterior e nesse dia, acreditara em Hiei. Mas não pensava com clareza e...
Parou... Na sala pairava um cheiro de rosas. As cortinas estavam abertas. O sol da tarde iluminava o grande sofá, com pequenas almofadas. A lareira de tijolos escurecidos por muitos fogos, a estante de livros e alguns CDs, de títulos de seu agrado. Tudo era inexplicavelmente familiar, como se estivesse revendo um filme. Olhou ao redor registrando tudo. Estava limpo, arrumado, uma decoração de seu gosto... Não conseguia entender. Mas parecia que já estivera várias vezes naquele lugar. Impossível! Não conhecia aquele lugar!
“Estou mesmo ficando louco!”, murmurou para si mesmo. “Tenho que ir embora daqui!”, falou em tom mais alto, como se assim pudesse calar a voz em seu íntimo que o aconselhava a confiar em Hiei.
No instante em que abriu a porta da frente e parou no umbral, Kurama compreendeu porque Hiei o deixara sozinho ali, sem trancar portas.
A menos de seis metros erguia-se uma sólida parede de árvores. Desceu a escada de madeira e deu volta na casa, os olhos atentos. A casa ficava no centro do que parecia uma clareira circular dentro da mata tão cerrada que nada se via alem dos galhos emaranhados. Atrás havia um pequeno telheiro para lenha e poucos metros adiante um barracão de madeira que deveria ser uma espécie de celeiro. Tudo era muito bem cuidado, como se o lugar sempre recebesse visitas.
Procurou entre as árvores algum sinal da trilha pela qual Hiei devia ter saído, mas não encontrou. Não dava prá imaginar o que havia além da densa muralha de troncos. Jamais vira uma floresta tão impenetrável em qualquer lugar que conhecia, pelo menos não lembrava de nada parecido. Deviam ter viajado muito durante a madrugada. Era quase meia-noite quando se dirigira ao bar do Rock Parade e acordara no quarto daquela casa à quatro horas da manhã. Teriam andado de moto aquele tempo todo ou apenas uma parte? Em que direção?
Várias perguntas se atropelavam em sua mente e, de súbito, sentiu-se tonto. Com passos inseguros voltou para a porta da casa e segurou-se no corrimão da escada para não cair. O que poderia fazer?
A floresta parecia murmurar, Seja forte, Kurama. Aqui estará sempre seguro. Em segurança.
Essas palavras devolveram-lhe a coragem. A tontura passou, subiu os poucos degraus que davam no pórtico, entrou na casa e voltou para o quarto. O cheiro da comida enlatada pairava no ar e não era mais nada tentador: a fome sumira. Sentou-se na beira da cama e passou a mão na testa; estava gelado. Controlou-se, tentando avaliar a situação. Sempre se orgulhara de sua sensibilidade e raciocínio rápido e lógico. E todos confirmavam suas habilidades. A lógica dizia-lhe que devia confiar no seu instinto a respeito de Hiei, mas o raciocínio frio da situação era contra.
Olhou o relógio. Ele dissera que ia arrumar comida e isso queria dizer que além da muralha de árvores havia vida, gente, lojas e telefones. Se pudesse chegar até um telefone e chamar Yusuke. Como detetive espiritual, poderia lidar com aquele demônio.
Pegou a manta que deixara sobre a cadeira de balanço e saiu de novo da casa. O ar frio o fez enrolar-se na manta. Hesitou sobre que direção tomar, depois correu para a mata, passou entre dois enormes troncos de árvores, deixando o sol para trás; uma penumbra que parecia gelar até os ossos a engoliu. A floresta era mais densa e escura do que imaginara, Andou o mais depressa que podia, abrindo caminho entre arbustos. Tinha que haver gente do outro lado.
A mata foi se fechando, anulando seu senso de direção; nenhum raio de luz penetrava o entrelaçamento dos galhos. De súbito ouviu o rumor de folhas amassadas, de um galho partindo-se. Estacou atento. O barulho persistia dizendo-lhe que não estava sozinho. Abriu a boca para gritar por socorro, mas a voz falhou e o pânico rasgou-lhe as entranhas. Perigo!, gritavam seus sentidos.
Recuou até encostar-se num grosso tronco rugoso. Procurou verificar de que direção o barulho vinha, mas parecia dançar ao seu redor, cada vez mais forte. Suas mãos começaram a tremer, a manta escorregou-lhe dos ombros e amontoou-se no solo, ao redor dos pés. A respiração começou a ficar cada vez mais ofegante. O formigamento começou nas pontas dos dedos, depois alastrou-se pelas palmas das mãos, pelos braços. A visão nublou-se.
“Por favor, não!”, implorou, fechando os olhos, agarrando o pulso esquerdo, segurando-o com força, como se assim impedisse a escuridão de entrar. Não podia perder a consciência agora!
Os joelhos de Kurama dobraram-se enquanto o negror se adensava ameaçando invadi-lo. Deslizou para o chão, ao longo do tronco da árvore, a casa áspera arranhando-lhe as costas. Os passos retumbavam em seus ouvidos. Reuniu as forças, abraçou a árvore e ergueu-se penosamente. Saiu andando pela floresta, não sabia em que direção. Só tinha noção daquele doloroso impulso de correr. Os passos se aproximavam e ele andou mais depressa, lutando contra o negror, os arbustos arranhando-lhe os braços.
Deu mais alguns passos, tropeçando, o pé direito enroscou-se num cipó, fazendo-o cair no chão, enquanto o ar saía todo de seus pulmões. Ergueu a cabeça e inclinou-se para trás, em busca do precioso oxigênio. Então, viu um ponto de luz através da escuridão que estava por envolvê-lo... A clareira!
Arrastou-se no solo, para a luz. Os passos estavam mais próximos, o negror apoderava-se dele aos poucos, dificultando-lhe os movimentos, até que se imobilizou. Enquanto a escuridão forçava por insinuar-se para dentro dele, roubando-lhe aos poucos a consciência, Kurama rezava para que aquilo sobre seres querendo pegá-lo não fosse verdade.
Eles estão chegando.
Confie em mim.
Os passos pararam junto dele e Kurama compreendeu que Hiei dissera a verdade. Queria abrir os olhos, encarar o perigo que o ameaçava, mas não pôde. Afundava num poço mais negro. Um silêncio denso desceu sobre ele, impedindo-o de gritar.
Sentiu os dedos gelados se aproximarem de sua espinha, então virou a cabeça, seus olhos abriram-se por um segundo e viram uma sombra negra. Tentou chamar por socorro, e disse o nome do único que poderia ajudá-lo.
“Hiei...”, soluçou.
Num último esforço, enterrou os dedos no solo e impulsionou-se para a luz. O nada o envolveu.
Quando Hiei chegou ao Templo de Genkai, Yusuke estava tentando convencer a mestra a fazer qualquer coisa para descobrirem para onde ele levara Kurama. Assim que entrou, o detetive veio para cima dele:
“Seu cretino! Youkai com titica na cabeça! Que idéia foi essa de tirar Kurama da festa daquela maneira? E onde ele está? Diga! Vamos Diga!”
“Hn! Não tenho que dar satisfação de meus atos a um humano com aspirações a demônio! Detetive de quinta!”, retrucou o Demônio do Fogo, passando por ele e parando em frente a Genkai, “Melhor controlar o gênio aí de seu discípulo ou ele vai virar sashimi em poucos segundos. Não estou com paciência prá agüentar nada dele, hoje!”
“Ah! Mas é muito abusado! Vejam só, o demônio pensa que tá podendo!”
“Cala boca, Yusuke!”, ordenou a mestra encarando Hiei seriamente. “O que quer aqui, Hiei?”
O youkai olhou de esguelha para o detetive, mas este não disse nada. Estava curioso demais prá saber o que acontecera prá ousar desafiar a mestra e ser mandado prá fora da sala. Uma vez que tinha cometido a loucura, era hora de continuar, e não conseguiria sozinho.
“Hn. Preciso de ajuda!”, falou olhando para a mestra.
“Por quê? Pensei que resolvera seguir suas próprias idéias, uma vez que afastou Kurama de todos aqui.”
“Não restou outra alternativa. As escuridões de Kurama estão cada vez mais freqüentes, e os demônios muito próximos, esperando pela oportunidade de pegá-lo desprevenido. Ontem dois deles estavam naquela casa noturna. Mas nem este incompetente do Urameshi, nem o imbecil do Kuwabara perceberam nada! Só eu consigo senti-los, por causa do jagan e minha ligação com Kurama. Assim, o plano de vocês cuidarem dele foi por água a baixo, só que tive que tomar a decisão muito rapidamente, uma hesitação e a essa hora já estariam com Kurama.”
“Entendi. Nesse caso, você agiu certo. Mas como está fazendo para... você sabe, está muito próximo dele. E a segunda parte da Promessa?”, quis saber a mestra.
“Hn. Estou me controlando. Não vou permitir que Mukuro vença. Não está sendo fácil, mas vou protegê-lo a qualquer preço! Não vou deixá-lo sozinho, enfrentando as escuridões sem saber o que lhe acontece.”
“Certo. E como ele está?”
“O bio-ritmo está se alterando velozmente. Ontem a forma de Youko materializou-se ao lado do corpo humano de Kurama. Tentou dominá-lo, mas a memória ainda está muito distante e a energia muito fraca. Mas só o fato de ter aparecido, já é um bom indício que a memória está voltando à tona. Finalmente!”
“Sim. Isso significa que logo começará a reconhecer certas coisas, terá flashes de algumas situações do passado.”, refletiu a mestra com cuidado. “Isso tem seu lado bom, e seu lado ruim. Bom porque em breve recuperando a memória a energia espiritual voltará a se manifestar e poderá se defender melhor dos caçadores de Mukuro. Ruim, porque se recordar de você antes de lembrar da Caçada que está acontecendo, vocês estarão com sérios problemas.”
“Hn. Pensei nessa possibilidade, mas terei que correr o risco, não há outro modo de protegê-lo. Ele está num lugar seguro, onde os demônios não podem entrar.”
“Onde? Que lugar é esse? E por que não soubemos desse lugar antes, poderíamos tê-lo levado antes prá lá se é tão seguro assim!”, era Yusuke, indignado com a atitude de Hiei.
“Kurama está numa cabana, que ele mesmo cuida a muito tempo. É prá lá que vai sempre que quer ficar sozinho. A anos vem trabalhando na floresta e vegetação que cerca a área. É uma barreira natural, que isola toda e qualquer energia , protegendo o que está dentro da clareira. Não se pode detectar o ki de qualquer criatura que esteja protegido pela clareira, e ninguém consegue encontrar a trilha, a menos que consiga superar a barreira das folhagens que têm vida própria, reagindo à energia que penetra nos domínios que Kurama designou, acabam criando um labirinto onde a pessoa fica dias andando em círculos sem conseguir sequer se aproximar de qualquer indício da clareira.”, explicou a contragosto encarando a velha mestra.
“Um refúgio. Sim. É típico das raposas e dos ladrões criarem um lugar onde pudessem se esconder sem correrem o risco de serem apanhados desprevenidos... Ou também serve para se protegerem enquanto curam as feridas. Com certeza foi a alma do Youko que intuiu Kurama a criar um refúgio assim.”, deduziu Genkai.
“Pera aí! Uma coisa não esta encaixando nesse rolo todo aí! Coisa mais enrolada! Tá dando no em pingo d’água.... Se só Kurama sabia disso, como você descobriu e levou ele prá lá? Explica isso aí que tá mal explicado, mané!”, o detetive pressionou.
O Demônio do Fogo encarou o garoto com raiva. Mas ao olhar para Genkai, viu que a mestra tinha a mesma dúvida. Droga! Precisava da ajuda dela, então, teria que explicar isso.
“Hn. Ele me descreveu esse refúgio certa vez que conversamos, quando estávamos prá entrar no torneio das trevas. O que aconteceu na Ilha da Morte. Foi para lá que Kurama me levou, para treinarmos, e não sermos seguidos por ninguém que quisesse lutar antes do torneio. Mesmo sem se lembrar, ele está de volta ao lugar que ele mesmo criou para se proteger.”
“Faz sentido. Ele não lembra do lugar porque usou o you-ki para isolar tudo ao redor. Está bem, Hiei. Fez a coisa certa, se não conseguíamos perceber a presença dos demônios tão perto de Kurama, de nada adiantaria deixá-lo exposto a esse perigo. Agora está nas suas mão protegê-lo de Mukuro e da Promessa. Então, prá quê precisa de ajuda?”, indagou a velha mestra.
“Hn. Eu... preciso providenciar comida para duas semanas. Kurama está fraco, precisa comer e dormir bem. E não posso ficar saindo da clareira sempre. Podem rastrear meu ki. Só que não tenho idéia de como conseguir tudo o que for necessário.”, disse o youkai com voz baixa e contida. Detestava pedir ajuda, muito menos quando não tinha idéia do que fazer , nem do que estava precisando. “Mas precisa ser bem rápido. Ah! E alguém precisa avisar a mãe dele. Inventem alguma coisa, um curso, como o próprio Kurama faz quando precisa ir até o Makai para alguma missão.”
“Não se preocupe. Yusuke, Keiko está na cozinha com Yukina, preparando o chá. Vá até lá e peça para que ela separe tudo o que for necessário para duas semanas. Depois você vai até a casa de Kurama, avisar Shiori. E aproveite para fazer compras para repor tudo, se por acaso Hiei precisar voltar aqui prá pegar algo! Anda rápido, seu molenga!”, ordenou a mestra.
“Pronto! Eu sabia que ia sobrar prá mim no final das contas. Aí não é mole, não!”, reclamou indo em direção à cozinha.
Ficando a sós com Hiei, a mestra observou-o, não parecia nada bem. Tanto ele quanto Kurama iriam enfrentar uma provação e tanto, uma vez que mesmo sem memória, o espírito de Kurama iria reagir ao de Hiei, lembrando de sua ligação, seus votos. O youkai teria que ser muito forte para resistir.
Percebeu que o demônio tinha o semblante preocupado.
“O que foi, Hiei? Algo mais o preocupa?”, indagou a mestra.
“Hn. Acho que vai ser mais difícil do que pensava.”, disse, e a mestra logo imaginou como ele deveria estar sofrendo. Porém, quase caiu no chão quando ouviu a continuação. “ Que me adianta a comida, se não sei cozinhar essas coisas daqui?”
Não era possível! A mestra olhava para ele incrédula. Uma ameaça estava estendida sobre ele e Kurama, como uma espada sobre suas cabeças e ele preocupado por não saber cozinhar? Hiei era surpreendente às vezes. Mas conseguiu responder sem perder a calma.
“Não se preocupe. Kurama cozinha muito bem, e isso o manterá ocupado também.”
Hiei assentiu satisfeito. Era um problema a menos.
Meia hora depois, saía do Templo com duas sacolas completas com tudo o que seria necessário para passarem as duas semanas, sem precisar ficar expondo-se demais. Yusuke lhe dissera que sob o selim da moto, havia um compartimento onde poderia ajeitar as sacolas sem maiores problemas. Aliás, antes de sair tivera que suportar mais uma gracinha do infeliz.
“A propósito, Hiei... prá uma aula só, você tá me saindo melhor que a encomenda, não? E não se contentou com pouca porcaria... Se bem que com o seu jeito de bad boy só poderia ficar a fim da Kawasaki do Dark Angel, né maluco? Abalou Bangu!!!”
Ainda bem que ficaria um tempo sem encontrar com aquele esboço frustrado de demônio. Descendo os últimos degraus do Templo, chegou até a moto. Observou-a detalhadamente e sorriu de lado. De fato, nada mau. Combinava com ele. Principalmente quando tinha Kurama sentado à sua frente e seus cabelos roçando-lhe o rosto... Balançou a cabeça para afastar tais pensamentos.
Hiei abriu o compartimento do selim, ajeitou as coisas lá dentro, fechou e...
Hiei!
Ao ouvir a voz familiar ele gelou. Compreendeu no mesmo instante que Kurama deixara a segurança da casa. Fora um erro grave obrigá-lo a concordar com ele quando estava semiconsciente, impondo seu poder ao da raposa.
Hiei!, gritou a raposa de novo, aprofundando-se rapidamente nas trevas.
A visão dele foi enfraquecendo. A luz difusa do crepúsculo parecia tremer. Apoiou a mão esquerda no selim de couro preto, concentrou-se em combater o frio da escuridão e em voltar à realidade; com a mão direita, envolveu o pulso esquerdo e ordenou a Kurama que lembrasse. Como a raposa não se lembrava dos votos, Hiei não podia acompanhá-lo nas trevas. Precisava alcançá-lo fisicamente, levá-lo de volta à cabana.
Enquanto tentava manter o elo mental com Kurama, tentando tirá-lo das trevas, Hiei não percebeu uma aproximação furtiva por trás dele, deu-se conta do movimento, um instante antes de uma espada passar muito próximo de seu corpo quando, com sua rapidez incrível, saltou para o lado. Porem, como estava um tanto perturbado pela escuridão que dividia com Kurama, perdeu o equilíbrio, cainho no chão e batendo a cabeça contra uma pedra. Por sorte, a pancada não foi forte o suficiente para deixá-lo inconsciente.
Olhou para a sombra a sua frente. Um demônio do Makai. Um seguidor de Mukuro. Ganjin. Levantou-se, empunhando a katana.
“Parece um lutador...”, caçoou o demônio, “Desista de lutar contra nós, Hiei. É batalha perdida. Estamos em muitos e Mukuro está recompensando muito bem prá quem levar o Youko até ela, vivo. Saia do caminho de deixe-nos pegá-lo, pelo seu bem. Mukuro não está com boa disposição ao seu respeito.”
“Hn. Pouco me importa a disposição de Mukuro para comigo! Deixei de fazer parte de seu comando quando deixei o Makai.”, retrucou e, num golpe rápido, atacou Ganjin, pegando-o de surpresa, ferindo-o gravemente, mas tomando cuidado de não matá-lo. “Volte e diga à sua chefe que não vou desistir! Não vou abandonar Kurama à mercê dessa caçada maluca. Prefiro morrer a entregá-lo a qualquer um de vocês. Ninguém tocará nele, está ouvindo? Ninguém! Diga isso a Mukuro!”, o demônio sumiu diante de seus olhos. Esperou mais um pouco, sentindo o ambiente ao seu redor, antes de embainhar a katana.
Tocou a parte de trás da cabeça e sentiu a umidade viscosa do sangue. Saltou na moto e ligou o motor, lutando contra o mal estar. Momentos depois voava pela estrada.
O crepúsculo cedia lentamente lugar para a noite, o ar esfriava e por mais que tentasse, Hiei não conseguia se livrar do desejo de ter Kurama em seus braços, de sentir o gosto dele, de saborear cada centímetro da raposa a ele destinado. Decidira-se negar tudo o que sentia para protegê-lo e agora via-se querendo ceder.
Seu maior desejo será o seu castigo. Para ambos.
“MALDITA! NÃO!”, gritou se sua voz foi levada pelo vento.
Por mais que desejasse Kurama lutaria contra a incrível força que determinara a uni-los. A união deles significaria a condenação de sua raposa. Sua sentença de morte. Um protetor, era tudo que devia ser para ele. Não queria ser o culpado pela sua desgraça, nunca! Morreria antes que isso acontecesse.
À medida que se aproximava da cabana, a visão de Hiei tornava-se mais aguda, seu coração batia mais calmo. Algo havia acontecido. Ou melhor, algo não havia acontecido, porque a sensação de medo desaparecera. Kurama não estava lutando contra o negror.
Fechou os olhos, experimentando uma sensação profunda de mágoa e solidão. Kurama era tudo o que queria em sua vida e, mesmo estando, de uma forma, unidos para sempre, era a única coisa que não poderia ter.
Kurama ergueu a cabeça e pôs para trás os cabelos que lhe cobriam os olhos. O sol desaparecera atrás das árvores e a luminosidade velada do crepúsculo ainda permanecia na clareira. Olhou as pernas escondidas no mato dos joelhos para baixo e arrastou-se para trás até descobri-las.
Com dificuldade, pôs-se de joelhos e sentiu o mundo girar. Por fim conseguiu se levantar, as pernas moles, a cabeça vazia, o cheiro úmido de terra e mato parecia grudado em suas narinas. Olhou a parede de árvores que à luz difusa do anoitecer fazia pensar num exército de esqueletos, os braços ossudos erguidos para o céu arroxeado. Lembrou-se dos passos, da presença ameaçadora, como dedos gelados que pareciam tocar sua espinha. Olhou das árvores para a casa de madeira, depois de novo para a mata, à procura de alguém... ou de “alguma coisa”.
Recuou, o coração saltando, a respiração entrecortada e o pavor foi crescendo. Hiei estava certo e fora um idiota por não lhe dar ouvidos. Ofegante, começou a andar, os olhos fixos na casa; o medo aumentava a cada passo. Não sossegou nem mesmo na sala, a porta trancada. Encostou-se nela e respirou fundo várias vezes, tentando acalmar o ritmo frenético do coração. Não conseguiu. Tornou a respirar fundo e, em vez de se derramar em lágrimas, endireitou os ombros. Chorar não resolveria nada. Tinha que usar a cabeça e cuidar-se.
A determinação trouxe a calma. Afinal, sua intuição a respeito dele estava correta. Ficara tão perdido que não confiava em si mesmo, imagine em outra pessoa! Agora tinha certeza que não estava enlouquecendo, não completamente. Se pelo menos a sala não estivesse tão fria e solitária... O fogo que Hiei deixara aceso na lareira transformara-se num amontoado de brasas, que não venciam o frio. Soltou os laços que mantinham abertas as cortinas das janelas e elas fecharam-se, protegendo-o de possíveis olhares.
Caminhou em direção à cozinha. Observou o gabinete de madeira da grande pia, um sabão perto da torneira e o fogão a gás, outro forno elétrico. Uma enorme caixa com tampa, estava aberta contendo uma grande pilha de lenha, para a lareira com certeza, ou para o fogão, se faltasse energia ou gás. Hiei trabalhara enquanto ele dormia. Havia outros sinais de vida na antiga cozinha: uma garrafa com água e dois copos achavam-se sobre a mesa de carvalho cheia de cicatrizes pelos anos de uso. Kurama passou os dedos por elas. Teve uma sensação esquisita, como se já houvesse tocado aquela mesa.
Afastou o pensamento e voltou-se, saindo da cozinha em direção ao banheiro. Estava limpo e era completo, à exceção do chuveiro, que não tinha. Mas quem precisa de chuveiro com uma banheira daquelas? A tina a que Hiei se referira, era uma banheira enorme, com certeza duas pessoas tomavam banho ali confortavelmente. Sem resistir, começou a enchê-la para um bom banho... assim tiraria aquele cheiro de cigarro de seu cabelo.
Enquanto a banheira enchia, foi até o quarto, procurar uma toalha de banho. Ao abrir o armário teve a certeza que a casa não era abandonada. Roupas de cama, banho e de uso pessoal estavam organizadas com todo capricho. Observando melhor, eram roupas de seu gosto. Talvez Hiei tivesse providenciado tudo para ele. Mas ele não dissera que ir até lá fora algo decidido de imediato, para protegê-lo? Então... de quem eram as roupas? Enquanto não soubesse se poderia ou não usar alguma delas, pegou o roupão de banho, pendurado em um cabide e voltou para o banheiro.
Mergulhou na água relaxante, o corpo fatigado pelos últimos acontecimentos. Ensaboou os cabelos com um shampoo que encontrar ao lado da banheira. Era um dos seus favoritos. Lavou a cabeça com prazer, eliminando os últimos resquícios daquela noite conturbada. Ensaboou o corpo e depois ficou a relaxar, sentindo os músculos descontraírem sob a água.
De súbito, o ronco de um motor o fez levantar-se, atento. Rápido, saiu da banheira vestindo o roupão, tentando tirar o excesso de água dos cabelos, com a toalha. Saiu em direção à sala, parando no meio do corredor escuro. Esperando.
Ouviu a chave girar na fechadura, a porta da frente abriu-se, o assoalho rangeu sob os passos rápidos, enquanto a voz profunda e ansiosa de Hiei ecoava na casa:
“Kurama!”
Antes que se movesse, ele surgiu na entrada do corredor e parou, olhando-o com aflição.
“Kurama! Eu não conseguia sentir você e... O que aconteceu?”
Kurama tremeu, não sabia se pela àgua fria que descia por sob o roupão ou se pelo medo. Lágrimas arderam em seus olhos e abriu a boca, mas não saiu um som sequer. Num segundo, Hiei atravessou a distância que os separava, pegou a toalha de suas mãos, enxugou-lhe os cabelos e o rosto, e jogou-a dentro do banheiro.
“Me conte.”, pediu, com estranha ternura na voz enrouquecida. Entrelaçou as dedos nos dele, transmitindo-lhe seu calor. As várias emoções que sentiu nele quase sufocaram Kurama: ansiedade, alívio alegria. “Pensei que tivesse chegado tarde demais...”
“E chegou.”, afirmou o ruivo, soltando-se.
Foi para a sala, preferindo ficar longe: ele apoderava-se de seus sentidos, ameaçava controlar-lhe a mente e isto o assustava tanto quanto as escuridões que o envolviam. Mais ainda, porque sentia-se inclinado a ceder ao encanto dele, porque queria acreditar nele.
“Kurama...”, chamou Hiei.
O ruivo abriu a porta, saiu e parou ao luar. Estremeceu ao sentir as mãos de Hiei em sua cintura.
“Sei que está assustado, Kurama. Conte-me o que aconteceu...”
“Você me conta, Hiei.”, impacientou-se o ruivo. “Você tem as respostas. Diga-me o que está acontecendo!”. A voz dele subira um pouco nas últimas palavras. Mas não se importava. Queria... Não. Precisava entender o que estava acontecendo, senão enlouqueceria.
“Eu bem que queria...”
“É evidente que não quer o bastante.”, cortou, a raiva expulsando o medo. “Você diz que há alguém querendo me pegar, mas não diz quem é. Você me seqüestra, reconheço que num momento que eu precisava de ajuda, depois não quer me dizer porquê. Eu acordo numa casa perfeita, mas no meio do nada, sem saber como nem porquê. Por quê, Hiei?”
“Porque aqui você está seguro.”
“Ah, sim, eu tinha esquecido! Isso de segurança até que posso entender. Não há trilha na floresta e você atravessou-a de moto. Isso não posso entender; procurei um caminho, Hiei.”
“Eu disse que ficasse dentro de casa!”
O tom de voz dele era acusador, o que acendeu mais a raiva de Kurama que gritou:
“Sim, mas mão me explicou o por quê. Quem diabos e você e por que aparece do nada, cavaleiro sem armadura, para me salvar? Salvar de quê? Quem é você realmente?
Foi claro o desconforto dele, como se procurasse por palavras certas. Hesitante, respondeu:
“Conheço Yusuke e Genkai...”
O chão pareceu ondular e Kurama cambaleou. Hiei apertou as mãos firmemente na cintura dele, impedindo-o de cair.
“Você os conhece?”, indagou, num sopro de voz.
“Há algum tempo, Kurama. Conheço-os e sei que gostariam que eu o ajudasse já que eles não podem fazer isso.”
“E eu? Você já me conhecia?”, os olhos cor de esmeralda ergueram-se para ele, “Me conhecia antes desses dias, Hiei?”, esperou com a respiração suspensa, mas Hiei nada disse. “Você me conhece! Me conheceu antes! Deve me conhecer tão bem quanto os outros!”
“Hn. O destino quis que nosso caminhos se cruzassem, há muito tempo. Vim ajudá-lo agora, Kurama, porque eles não podem, e porque você me ajudou quando precisei. Acredite no que digo, Kurama.”
“Não.”, sacudiu a cabeça, enquanto confiança e desconfiança travavam uma feroz batalha. “Não pode exigir que eu acredite em você sem a mínima prova de que me diz a verdade.”, mas havia provas, dizia a consciência dele: a floresta, a sombra, a sensação de que conhecia Hiei há anos.
“Não basta saber que me preocupo com você? Me meti nisso porque não suporto vê-lo sofrer, não apenas pelo que acontece hoje, mas por tudo que já aconteceu. Há gente má atrás de você, vingativas, e não posso permitir que o peguem.”
Os olhos de Hiei parecias duas chamas intensas ao luar, brilhando com a intensidade de conhecimentos profundos. Ele conhecia seu passado e as respostas que trariam de volta sua parte perdida.
“Eu preciso saber mais, Hiei.”
“Por quê?”, reagiu ele, “Porque o que acontece parece irreal a você?”, a raposa assentiu e ele continuou, “É real. Você sabe que estou dizendo a verdade. Soube isso ontem à noite.”
“Tem razão.”, um arrepio percorreu o corpo de Kurama e Hiei segurou-lhe as mãos.
“Fui um idiota em deixá-lo sozinho.”, um leve tremor na voz traía a emoção dele. “Devia saber que você tentaria fugir. É como uma raposa...”
Kurama sentiu culpa, como se tivesse traído a confiança dele. Mas na verdade Hiei era um estranho e... Não!, exclamou a voz íntima e lágrimas quentes desceram-lhe pelas faces enquanto perguntava:
“O que mais eu podia fazer? Como ter certeza que você dizia a verdade?”, Kurama mordeu o lábio inferior, para impedi-lo de tremer. “Eu não tinha certeza...”
“E agora?”
Fez-se um longo silêncio e afinal o ruivo respondeu:
“Acredito em você.”
O alívio de Hiei foi evidente e ele ergueu a mão para afastar algumas mechas de cabelos molhados do rosto de Kurama.
“Você tinha que acreditar em mim, kitsune.”
Kitsune. Esta palavra imprimiu-se em letras de fogo na mente de Kurama, que tentou lembrar-se quando as ouvira antes e o esforço fez sua cabeça doer. Passou as mãos nos olhos para enxugar as lágrimas, num gesto tão velho quanto a Terra. Uma força indescritível emanava do corpo de Hiei para o dele, dando-lhe coragem e uma estranha sensação de paz, como se devessem permanecer para sempre sob a luz da lua. Uma “ligação”.
“A escuridão veio.”, disse o ruivo.
“Eu senti, como todas as vezes que ela desceu sobre você.”
Kurama olhou-o, atento, e só então percebeu manchas vermelhas no pescoço dele.
“Você está ferido!”, preocupou-se.
“ Hn. Não é nada.”, ele limpou o sangue seco, num gesto impaciente. “Conte-me o que aconteceu.”, o ruivo hesitou, ainda olhando as marcas e ferimentos na base do pescoço dele, “Conte-me.”, pediu de novo.
“Não foi uma escuridão como as outras”, admitiu, “Desta vez, foi como um sonho. Saí da casa e comecei a procurar um caminho na floresta, me perdi, ouvi passos...”
“E rezei para que fosse você.”, acrescentou silenciosamente. O sorriso que se desenhou nos lábios de Hiei fez o coração de Kurama disparar e ficou sem jeito ao lembrar que ele “sentia” seus pensamentos. Continuou:
“Saí correndo, aí começou o amortecimento e a escuridão, sufocante... Mas quando voltei a mim não estava com medo, apenas confuso como se tivesse adormecido ou algo semelhante, quando percebi o que acontecera, aí sim me apavorei, era como se tivesse adormecido ou algo semelhante. Até agora as escuridões nunca tinham parecido um sonho.”
“Hn. É a casa.”, esclareceu ele, “A clareira. Elas protegem você.”
“É tudo tão esquisito...”, murmurou inseguro, “Nada disso tem sentido.”
“Não precisa ter sentido, Kurama.”
“Precisa, sim!”, nervoso, segurou o blusão de couro dele com as duas mãos. “Mais do que tudo, você precisa fazer sentido! Diga-me o que está acontecendo, ajude-me a entender!”
“Não posso.”, ele fez Kurama soltar o blusão e distanciou-se. “Droga! Por que não lhe basta saber que está numa baita encrenca e que eu quero ajudá-lo? Deixe-me ajudar, acredite em mim, Kurama!”
Quando ele começou a voltar-lhe as costas, o ruivo segurou-o pelo braço:
“Diga-me por que me trouxe para cá”, implorou, “quem está atrás de mim, o que sabe sobre meu passado, e...”
Ele soltou-se, num gesto quase violento:
“Não ponha a mão em mim e não me pergunte o que está acontecendo. Você não iria gostar da resposta.”
Kurama chocou-se: os olhos que há pouco demonstravam profunda ternura agora espelhavam uma raiva fria.
“Diga-me tudo, Hiei.”, insistiu, “Preciso saber.”
“Hn. Fique dentro de casa, Kurama, e estará a salvo. Caso saia, não se afaste dessa clareira. Se o fizer de novo, eu tranco você lá dentro.”, o tom dele não deixava dúvidas, “Não quero fazer isso, mas se for preciso faço, pelo seu bem.”
“É mesmo?”, Kurama tentou engolir o nó que se formara em sua garganta. “Faça o que acha que precisa fazer, mas não espere minha gratidão, nem que eu coopere!”, saiu andando depressa para a casa e ouviu os passos de Hiei atrás. Entrou, foi para o quarto e jogou-se na cama. Sentia-se cansado, desesperado e sem forças... e sozinho.
Não!, lembrou-a a voz interior. Sozinho não.
Os passos de Hiei se aproximavam. Perto, mais perto... Kurama parou de respirar e esperou que ele entrasse. Queria que o abraçasse e confortasse, apesar da razão dizer que perdera o juízo ao imaginar isso. O pavor dominando-o ao perceber que realmente sentia-se atraído pelo encanto de Hiei.
Ele entrou no quarto.
“Duas semanas, Kurama. Dê-me duas semanas. Confie em mim enquanto estivermos aqui, faça o que eu disser e contarei tudo o que quiser saber.”
“Sobre meu passado?”, a voz trêmula foi abafada pelo travesseiro.
“Tudo que sei sobre você e sobre seu passado.”
Sem erguer a cabeça, o ruivo fez que sim, ainda soluçando. O que não teria dado naquele instante para abraçá-lo, para sentir a determinação, a força dele. Se Hiei sentasse na cama, junto dele... Percebeu que ele voltava para a sala. A frustração foi enorme e pela primeira vez Kurama deu boas vindas às lágrimas. Chorou por tudo, pelo passado que não lembrava, pelo medo que sentia, pela solidão que o cercava, e pelo demônio de olhos vermelhos que tanto o atraía, mesmo tendo visto pela primeira vez, na noite anterior... uma vez que não se lembrava dele em seu passado.
Afinal, o pranto deu lugar à exaustão, trocou o roupão por uma que estavam no armário, uma mais quente, já que esfriara muito, deitou-se, puxando as cobertas até o queixo. As palavras e a imagem de Hiei acompanharam-no em sonhos, dando-lhe apoio.
“Nunca mais ficará sozinho, Kurama”, murmurava ele, “Estou aqui para ajudá-lo e protegê-lo.” Estranhamente, acreditou e os pesadelos não o atormentaram nessa noite.
A voz profunda de Hiei interrompeu os pensamentos de Kurama:
“Você precisa comer.”
Ergueu os olhos da velha revista para a qual estava olhando sem ver e respondeu:
“Não tenho fome.”
“Hn. Estamos aqui há três dias e você comeu muito pouco, quase nada, aliás.”, com a testa franzida, estendeu-lhe o prato da sopa que o próprio Kurama prepara, mais para se distrair do que prá comer. “Trouxe-o para cá a fim de protegê-lo e não para vê-lo morrer de fome. Coma ou...”
“Ou você me forçará a comer?”, desafiou o ruivo, tendo que inclinar a cabeça um pouco para trás a fim de encarar Hiei, de pé junto do sofá.
“Isso mesmo.”
“Eu só como se você me disser alguma coisa do meu passado.”, negociou ele.
“Vai comer de qualquer jeito.”
“Talvez...”, tinha consciência da força de Hiei, não por tamanho, claro, mas por energia. Ele era um demônio com toda sua energia espiritual, Kurama era meio demônio, num corpo humano, desmemoriado, com sua energia espiritual em baixa. Tudo bem. Mas negociar era outra coisa. Não entendia como, mas era bom nisso. Por mais que confiasse em Hiei, não ia obedecer quando ele estalasse os dedos! “não seria melhor não ter que me obrigar a comer, Hiei?”, sorriu cativante, apesar da cara feia dele. “Diga qualquer coisa do meu passado... Fui obediente por todos esses dias e não custa você fazer sua parte no trato.”
“Nosso trato é eu lhe contar tudo depois de duas semanas e estamos aqui apenas a três dias.”
“Trapaceie nosso acordo só um pouquinho.”, o rosto lindo implorava, “Por favor, Hiei.”
“Você era um demônio.”
“Sei o que eu fui. Diga algo que não sei.”
“Era muito teimoso.”, os olhos vermelhos tornaram-se duas frestas, “Hn. Como hoje. Agora coma e lembre-se que sua parte no acordo é cooperação.”
Kurama teve ímpetos de pressionar, porém sabia que Hiei não cederia. Mais uma semana e quatro dias, então saberia de tudo.
“Você é convencido”, amuado, o ruivo ergueu o queixo, “orgulhoso e frustrante! Minha vontade é derramar a sopa na sua cabeça em vez de tomá-la!”
“Experimente e vai engolir tudo de uma vez!”, os olhos dele riam e a raiva do ruivo sumiu.
Talvez Kurama tivesse feito o que ameaçara se não estivesse faminto. Depois de algumas colheradas da sopa, voltou a falar sem esconder a aflição:
“Estou ficando doente de tanto olhar para estas paredes, Hiei. Por que não conversa comigo? Nada sei sobre você...”
Quero que diga tudo o que sabe sobre mim, pensou ele, a antes desse cativeiro terminar vou conhecer os segredos que você guarda!
Hiei olhou-o pensativo, então disse:
“Coma.”, e saiu da sala.
“Como anfitrião você e um desastre...”, suspirou desanimado.
Ia fazê-lo falar algum dia, prometeu a si mesmo. Se pelo menos ele não fosse tão distante! Falava pouco, olhava-o menos ainda e passava a maior parte do tempo fora de casa, mexendo no celeiro, treinando com a katana, cortando lenha, fazendo qualquer coisa que o mantivesse longe de Kurama que, por sua vez, passava o tempo lendo as revistas e livros da estante, cozinhando e tentando não enlouquecer. Olhou em direção à porta que Hiei saíra. Ouviu o assoalho ranger: ele andava no quarto dele, que ficava ao lado do de Kurama. Considerava-o quarto dele, se bem que Hiei passasse pouco tempo lá. Na maioria das vezes, dormia no sofá em que ele estava agora.
Quando dormia, observou. Jamais o vira de olhos fechados, a não ser na noite anterior, quando fora à cozinha beber água. Vestido de botas e tudo, ele estava deitado no sofá, um dos braços sob a cabeça, o outro em cima de peito. O fogo na lareira acentuava as olheiras escuras sob os olhos fechados. Parecia exausto, como se não dormisse a dias. Tivera vontade de aproximar-se, de tirar o cansaço daquele rosto com carícias, de abraçá-lo e fazer parar aquele tremor convulsivo que de vez em quando agitava as mãos dele. Queria acompanhar com as pontas dos dedos o desenho firme dos lábios e vê-los relaxar. Mas graças aos céus, dominara-se, passara direto para a cozinha e, depois, de volta ao quarto.
Se pelo menos as noites ali não fossem tão quietas! Era quando pensava mais em Hiei, alimentando-se da força e determinação dele. Kurama obrigou-se a parar com aquilo: não queria pensar em Hiei, nem nas noites meio insones. Precisava comer. Então, percebeu que tomava a última colher de sopa e sorriu. Estava muito melhor. Colocou o prato sobre a mesa de centro e ergueu-se para ir até a estante de livros. Quando voltou ao sofá, ergueu a vista e viu Hiei no umbral. Encostado a um dos batentes, tinha algo branco nas mãos.
Kurama soube que o estivera observando sem que percebesse: temia que tentasse fugir de novo. Essa idéia lhe passara pela cabeça, mas bastara olhar a muralha de árvores para desistir e, na verdade, não tinha vontade nenhuma de separar-se de Hiei. Deixara de sentir medo dele na noite em que haviam conversado ao luar, mas também não se sentia à vontade com ele, pois sua presença fazia seu coração bater enlouquecido, como agora.
“O que foi? Virei um bicho de duas cabeças?, reagiu ao olhar insistente. Esperava que ele lhe virasse as costas, como sempre fazia quando seus olhares se encontravam, mas continuou a fitá-lo e o coração de Kurama pareceu um pássaro assustado, debatendo-se na gaiola. Irritou-se por sentir-se assim, jogou o livro em cima do sofá, pegou uma almofada, a irritação cedendo lugar ao nervosismo e abraçou a almofada, como se quisesse esconder-se do olhar penetrante.
“De duas cabeças, não.”, respondeu ele, “Felizmente. Você anda bem distraído com uma só.”
Antes que Kurama abrisse a boca, Hiei percorreu a distância que os separava, colocou a coisa branca em cima do sofá, tirou a almofada da mão dele, segurou-lhe um pulso, o pulso esquerdo, e o fez levantar-se, pegou uma das mãos a abriu-a, o toque dos dedos um tanto ásperos, causando pequenos choques elétricos na sua palma.
“Acho que isso é seu...”
Ele mostrou a peça de roupa branca, uma de suas peças íntimas, que lavara e esquecera de tirar do sol, fez a peça escorregar para a mão de Kurama, que enrubescendo, fechou a mão, sentindo a suave textura da seda, mas que não lhe acalmou os nervos, porque Kurama sentia o desejo intenso com que devorava Hiei.
“Você está a cada dia mais belo, kitsune...”, a voz dele estava rouca e os dedos tremiam ao tocar-lhe o rosto. Gostava daqueles dedos deslizando por seu rosto, subindo do queixo até a fronte, enfiando-se em seus cabelos... “Nunca vi cabelos tão lindos, macios, perfumados...”a voz dele apagou-se e os olhos vermelhos aqueceram-se com o fogo de um desejo que não lhe permitia pensar.
Se você pudesse lembrar, murmurou a voz dele na mente de Kurama, como uma pluma levada pela brisa. Se tudo fosse diferente entre nós...
Kurama passou a língua pelos lábios, querendo o beijo dele mais do que tudo na vida.
“Eu sempre soube que seus cabelos eram como fios de seda, sua pele macia.”, tocou o pescoço delicado, hesitante. “Kitsune... Há tanto tempo eu queria tocar você. Eu...”, calou-se. Os lábios apertados, como se tivesse congelado. Abaixou as mãos e desviou os olhos, mas Kurama conseguiu vislumbrar neles uma expressão de tristeza, de uma dor tão intensa que foi como se uma faca se revolvesse no peito dele...
“Hiei...”.Colocou a mão no ombro dele, mas Hiei retirou-a e recuou.
“Desculpe.”, falou brusco, “eu não devia dizer essas coisas.”
“Mas disse e...”
“Hn. Um monte de besteiras.”, cortou ele ríspido.
“Não eram besteiras. Você me conhece há muito tempo, não é? Sim, conhece, disse que sempre quis me tocar, que meus cabelos eram como fios de seda...”, deu um passo a frente, porém ele voltou-lhe as costas, foi até a janela e ficou olhando para fora. A camiseta esticava-se nas costas fortes. Mesmo a alguns passos de distância, Kurama podia sentir a tremenda tensão que o dominava.
“Eu não sabia o que estava dizendo.”, Hiei replicou. Dirigiu-se com passos largos para a porta, e saiu da casa.
Lágrimas ardentes deslizaram pelas suas faces e Kurama zangou-se por chorar com tanta facilidade. Achava que era mais forte, todos diziam isso dele, mas não lembrava-se, mas devia ser forte, não era meio demônio? Sentou-se na beira do sofá e sentiu algo roçar seu braço, um pedaço de tecido quase perdido entre as dobras das almofadas. Pegou a peça reconhecendo como sendo uma das camisetas de Hiei. Em vez de jogá-la longe, de raiva, descobriu-se passando o suave tecido no rosto. O cheiro de Hiei, um misto de vento, folhas e um odor só dele, dominou-lhe os sentidos, tocando-o até a alma.
Então, teve uma repentina impressão
de perda dolorosa, como nunca sentira. Os sentimentos cristalizaram-se:
com uma ponta de medo, percebeu que chorava pela ausência de uma
parte de si mesmo, uma parte que tivera a ver com Hiei. Esperava um dia
que ele contasse tudo, abrindo-lhe a porta para o que perdera. Era evidente
que Hiei fizera parte de sua vida. Por isso eram tão sintonizados
um com o outro. Sentia essa sintonia com mais força do que as batidas
do coração no próprio peito. E por mais que Hiei negasse,
sabia que ele tinha todas as respostas.