Um Toque de Magia,
Desejo e... Amor
 
Por Lilah
 

Capítulo 6: Sedução e Revelações 

 
 
 

Uma bola de energia dirigia-se velozmente em sua direção, não restando tempo para nada... Iria atingi-lo em cheio... Nada poderia fazer sequer para esquivar-se.

“KURAMA!”, ouviu o grito desesperado. “NÃÃÃÃO!”.

Depois disso... apenas a escuridão...

Kurama sentou-se de um salto, olhos arregalados, coração batendo como se quisesse saltar do peito. Olhou ao redor, através da escuridão. Sentiu desânimo ao ver tudo quieto, num sombrio silêncio. Teve frio e puxou a manta até os ombros, arrepiado apesar do suor que brotava em sua testa. Mexeu-se e sentiu a coberta fria sob as pernas nuas. Viu, então, o jeans na cadeira de balanço, as botas no chão. Hiei o despira ou será que nem saíra da cama?

Fora um pesadelo?

Podia muito bem ter imaginado tudo. O bar, o homem que o atormentara, o beijo de Hiei, a escuridão.

Cerrou os punhos. Não. Tudo fora real.

Como um relâmpago, as imagens confusas do último sonho que tivera, voltaram à sua mente. A bola de luz, sua própria imagem, voltando-se surpreso ao ouvir o grito... o grito de Hiei... sim, era a sua voz... e depois, mais nada!

“Eu quero lembrar.”, afligiu-se Kurama, “Preciso lembrar!”

Tente com força. Lembre-se. Ordenava a si mesmo. Tentou levantar-se num movimento brusco, tropeçou na mesa de cabeceira, derrubando-a e quebrando o copo que estava sobre ela. Caiu de joelhos, começou a catar os cacos e segurou-os com força, sem notar que lhe cortavam os dedos e as palmas das mãos. A mente num turbilhão tentando forçar as lembranças perdidas no fundo da mente.

“Kurama...”

A voz do Demônio do Fogo soou um seus ouvidos um segundo antes de senti-lo ao seu lado. Ele pegou-lhe as mãos e o fez abri-las, soltando os pequenos cacos de vidro.

“Hiei!”, Kurama agarrou-se ao peito nu do youkai, como se afundasse no assoalho, como se uma força invisível o sugasse e ele fosse sua única salvação. “Por todos os deuses, Hiei! Eu vi uma bola de energia vindo em minha direção... ouvi sua voz gritando, chamando por mim, desesperado... depois mais nada... tudo é um grande vazio, uma escuridão... Por quê? Por quê não consigo me lembrar?”

“Foi apenas um sonho. Um sonho ruim.”, empurrou para trás uma mecha de cabelos que caíra sobre o rosto da raposa. “Tudo bem, Kurama. Você se assustou e ao levantar-se caiu e quebrou o copo. Nada demais. Passou. Vou ajudá-lo a recolher os pedaços.”

O ruivo girou nos braços dele, olhando o quarto todo.

“Foi tudo tão real! Eu quase podia sentir a floresta à minha volta. O seu grito. A dor do ferimento... até o sangue.”, murmurava olhando os cacos de vidro cortando suas mãos.

“Kurama!”, o Demônio do Fogo fitava as mãos da raposa, vermelhas; só então o ruivo notou que deixara marcas de sangue no peito dele. O olhar do youkai tornou-se selvagem ao fitar as próprias mãos. “Não...”, murmurou vendo que também estavam cortadas pelos cacos e ensangüentadas. Fechou os olhos, enquanto agarrava o pulso esquerdo, o rosto contorcido pela angústia. “Eu não quero sentir isso.”, voltou a falar baixinho, “Por favor... não posso! Chega de sangue... Chega!”, as imagens de seus sonhos atormentavam sua mente.

“Hiei...”, ele não respondeu. Apertava tanto o pulso que as juntas dos dedos estavam brancas. Kurama tocou-lhe o pulso. “Hiei...”, chamou, esquecido de si mesmo diante da angústia que consumia o youkai. “Olhe para mim...”

 O Demônio do Fogo abriu as pálpebras. Suas pupilas eram como pedras de rubis brilhando à luz do fogo. Ali não havia fogo, apenas a chama da vela, mas os olhos dele chamejavam e mantinham a raposa prisioneiro. O ar ao redor era pesado, carregado de uma vitalidade invisível. A respiração quente de Hiei tocou-lhe a face, as batidas do coração ecoavam em seus ouvidos, o cheiro pungente do próprio sangue ardia em seu nariz. O youkai respirou fundo, o peito arfando, as narinas frementes; os ombros estremeceram e Kurama compreendeu que seus sentidos estavam tão vivos quanto os dele. Hiei largou o pulso e apertou a mão da raposa com força quase insuportável.

“Não consigo controlá-lo...”, disse, um segundo antes de largá-lo. Ergueu as mãos, os dedos e as palmas manchados com o sangue de ambos. “Não posso.”

“Hiei, você está...”, calou-se ao ver o pulso dele, uma marca quase desaparecida, no mesmo lugar onde a pouco tempo, o próprio Kurama tivera uma marca. “Onde arranjou isso?”, enquanto perguntava, ergueu a mão para tocar o pulso dele e soube que ele e Hiei tinham que ficar juntos, que o passado e o futuro deles estavam entrelaçados. “Eu tinha uma marca muito parecida, no mesmo lugar, no meu pulso.”, as pontas de seus dedos tocaram a pele do youkai.

“Não!”, o grito pareceu sair da alma dele, em agonia. “Não me toque!”, empurrou a raposa para trás. “Fique longe de mim!”

Kurama perdeu o equilíbrio e caiu junto da cama, batendo com a cabeça na quina. Fechou os olhos por causa da dor palpitante e luminosa dentro de seu cérebro. Ofegou, em busca de ar, e segurou-se na grade dos pés da cama.

“Hiei...”, com enorme esforço, abriu os olhos e viu que ele havia desaparecido. No quarto não havia sinal do youkai. Lá estava apenas os pedaços do copo, espalhados pelo chão, alguns manchados de sangue.

Nesse momento ouviu o primeiro de uma série de estrondos que vinham da sala. Madeira rachando, vidros quebrando, então a porta dos fundos escancarou-se. A casa inteira sacudia pavorosamente... Lutando para manter-se em pé, a cabeça rodando, foi pelo corredor até a porta da cozinha, passando pela sala com vários móveis destruídos; e viu Hiei, um vulto escuro contra o luar, a katana nas mãos, a lâmina cintilando como prata ao descer arrebentando tudo. Ele voltou-se e ao ver de novo o fogo vermelho em seus olhos, Kurama sentiu um choque elétrico.

Fique longe de mim, Kurama... Longe! Não consigo controlá-lo. Essas palavras ressoaram em sua mente e o fizeram arrepiar-se. Na verdade, não quero controlá-lo e que os deuses o ajudem. Nos ajudem!

Os dedos gelados do medo apertaram o peito de Kurama e o impeliram de volta à segurança do quarto. Bateu a porta e apoiou-se de costas contra ela, sem ter a menos idéia do que fugia. Hiei era seu protetor, mas não podia livrar-se da nítida sensação que naquele momento precisava proteger-se mais dele do que da coisa que espreitava fora da casa.

Um reflexo prateado brilhou por instantes na escuridão de sua memória e ele fechou os olhos, tentando captar a imagem. Pegou a manta, dobrou-a em dois e colocou-a nos ombros, antes de recolher os cacos de vidro. Jogou-os no lixo que havia ao lado da porta, depois sentou-se na cadeira de balanço, o olhar fixo na porta.

Eu vim para ajudá-lo. Você quer lembrar-se. A voz grave, fria, falava em sua mente. Não era a voz de Hiei, mas também parecia uma voz conhecida. Lembre. Sou uma parte de você. O Demônio que habita a outra parte de seu corpo humano. Sou sua parte perdida na escuridão. Lembre! A voz era baixa, fria, impiedosa...

Não conseguia pensar com aquela monstruosa dor de cabeça. Com cuidado, tocou o inchaço dolorido na parte de trás, que batera na quina da cama. Dobrou as pernas sob o corpo, determinado a permanecer acordado. O sol nasceria e o medo iria embora. Mas se ainda estivesse apavorado na manhã seguinte e se Hiei fosse a causa desse pavor, trataria de descobrir a saída daquele lugar, mesmo enfrentando as sombras ameaçadoras.

Apesar de lutar contra o sono, acabou adormecendo e nos sonhos encontrou Hiei com o olhar cheio de uma selvageria que o fazia arder e gelar ao mesmo tempo, não conseguia separar o medo do desejo, pois ambos pareciam indissoluvelmente ligados. Acordou com o corpo implorando por Hiei.

A vela apagara e a escuridão o envolvia, densa e absoluta. Procurou respirar devagar e fundo, para acalmar as batidas do coração. Não adiantou. O quarto estava gelado, no entanto ele inteiro ardia. Levou uma das mãos até o peito e seus dedos fizeram-se sentir através do tecido fino, como se fossem de um amante. Fechou os olhos e deslizou a mão até o ponto em que um mamilo enrijecido parecia querer perfurar a camiseta; seguiu-lhe o formato, com a respiração suspensa. Uma língua de fogo percorreu-o entre as coxas. Seu corpo chamava por Hiei tão desesperadamente quanto sua alma, mas ele não atendia.

Continuou a acariciar-se, imaginando que era a mão do youkai que o despertava... De súbito, imobilizou-se, gelado. Sentiu a presença antes mesmo de ouvir o assoalho ranger. Os cabelos em sua nuca arrepiaram-se, abriu os olhos e nada viu. Percebeu apenas um leve movimento do ar.

“Hiei...”, murmurou. Não houve resposta.

Ergueu-se e foi até a mesinha, tateando, encontrou a caixa de fósforos, acendeu um e divisou a cama desfeita, a mesinha, os cantos vazios do quarto até a chama se apagar. Acendeu outro e em seguida a vela. Lances da sua imaginação, não havia o menor sinal do demônio. A decepção foi profunda: queria Hiei com tanto ardor que o imaginara ali.

Uma suave melodia preencheu o silêncio e só então notou que a porta do quarto estava toda aberta. Ele mesmo fechara, mas não tinha tempo para pensar nisso, ocupado com as lembranças. A música doce envolveu-o e ele fechou os olhos, reconhecendo-a Sayonara wa mirai no hajimari.

Num cristalino momento, soube que aquela música era a sua favorita, principalmente quando pensava em Hiei... Não poderia explicar como soubera, apenas sabia, como sabia que a voz que ouvira em seu sonho era dele, como sabia com dolorosa certeza que ele e Hiei ficariam juntos. A música continuava... Trazendo a imagem de seu demônio em sua mente...

“Kyou no sayonara wa mirai no hajimai... Iku michi ga ima wa betsu to shite mo... Tsuku basho wa hitotsu...”

Abriu os olhos e o coração saltou-lhe na garganta. Como que evocado por seus pensamentos, Hiei encontrava-se atrás dele, perto o bastante para que sentisse seu calor. Ficou imóvel, atento ao reflexo de ambos no espelho. A suave luz da vela era suficiente apenas para revelar o rosto bonito do youkai emoldurado pelos cabelos negros. Os olhos roubavam luz da vela e cintilavam.

Havia nele algo mais perturbador do que o costume. A rigidez dos traços, a luz estranha no olhar, os maxilares apertados combinavam para pôr um arrepio de medo na espinha de Kurama. Ele lhe recomendara que se mantivesse longe, no entanto ali estava. Por que essa mudança?

“Hiei”, mal conseguia falar, “o que...”

Não terminou. Ele agarrou-o pela cintura e puxou-o para si. Kurama gemeu quando as mãos possessivas e exigentes ergueram a camiseta e deslizaram na pele acetinada... A deliciosa agonia aumentou quando introduziram-se na calça de pijama que usava e os dedos tocaram a secreta intimidade, os olhos do demônio espelhando um desejo violento. Os lábios de Kurama entreabriram-se, ofegando, enquanto seus olhos se fechavam.

“Abra os olhos...”, o desejo tornara a voz de Hiei ainda mais grave contradizendo com o leve carinho, ao roçar os dedos pelas mexas laterais do cabelo vermelho da raposa. Kurama obedeceu e, no espelho, o vermelho fogo misturou-se com o denso verde esmeralda. “Seus olhos são como janelas, Kurama. Quero ver o que você sente... tudo o que você sente.” Enfiou um dedo na abertura latejante da raposa. Depois outro...

As pernas de Kurama amoleceram e teria caído se ele não o amparasse, uma das mãos em sua cintura, a outra tocando, esfregando, os dedos enviando para dentro dele uma sensação deliciosa.

De súbito, a mão dele imobilizou-se e o encanto se desfez, embora ainda sentisse os dedos dentro de seu corpo.

“Hiei?” , mal respirava.

O demônio não respondeu. Pior, não se moveu e a tensão foi crescendo, sufocando... Da sala, a música suave enchia o quarto num sussurro provocante...

“Kitto sayonara wa piriodo ja nai sa.... Eien no saka o nobette Yukeba... Kimi to mata aeru....”

“Hiei, por favor!”

O Demônio do Fogo não moveu um músculo; depois, a voz rouca numa carícia, disse ao ouvido dele:

“Dance para mim, kitsune. Mexa-se para mim.”

“Eu... eu não posso...”

A voz de Kurama não passava de um fraco e trêmulo murmúrio. Até mesmo respirar era difícil. Cada respiração vibrava no ventre profundamente excitado, enquanto apertava-se mais ao redor dos dedos dele, seu próprio sexo dolorido pela forte excitação.

“Mexa os quadris.”, pediu Hiei. “Ouça a música, mexa os quadris no ritmo e fite meus olhos, raposa.”, tocou-lhe a fronte com os lábios ardentes. “Mexa...”

“Kyou no sayonara wa mirai no hajimari... Kokoro nara ore wa saba ni iru sa...”

Kurama ouviu a melodia conhecida por entre as batidas de seus coração. O olhar do youkai o incendiava, mas Hiei se mantinha imóvel, mal respirando. O corpo da raposa começou a movimentar-se, lentamente, os dedos dele aprofundando-se mais, e o prazer se anunciando, denso.

Continuou a mexer os quadris para os lados e em movimentos rotatórios, criando uma fricção deliciosa, seu íntimo derretendo-se ao contato direto com o demônio, que agora acariciava seu sexo, numa suave carícia, não mais que um leve roçar, como que impedindo que atingisse o prazer maior. A respiração da raposa tornou-se mais alta e mais rápida a medida que sentia o êxtase que se aproximava, fazendo os movimentos acelerar-se, assim como o ritmo da melodia que soava em sua mente.

O sexo de Hiei, enorme e rijo, pressionava as nádegas de Kurama. O tecido rústico da calça que usava irritando a pele delicada, já que de alguma forma, ele tirara a calça do pijama, sem que se desse conta. A rude esfregação foi aumentando a excitação até que cada fibra do corpo da raposa clamou por ele. Arqueou o corpo e os dedos dele o tocaram lá no fundo.

“Hiei...”, soluçou a raposa, agarrando-se ao braço forte em sua cintura. Imobilizou-se, assustado com os instintos primitivos despertados de forma arrebatadora por Hiei.

“Relaxe, kitsune... Você está tão quente, vibrante, prestes a morrer de prazer. Deixe seu corpo assumir o controle, Kurama.”, afastou os cabelos perfumados, que balançavam no ritmo da música, roçando suavemente seu rosto enquanto embriagava-se do perfume maravilhoso de sua raposa. Quase com veneração, lábios sensuais tocaram-lhe a nuca e a raposa sentiu-se derreter.

A canção apoderou-se de seu cérebro e Hiei de seu corpo, os dedos agora mexiam no mesmo ritmo que os quadris dele, a outra mão do youkai a provocar-lhe o sexo dolorido, ansiando o prazer total que ele negava-se a proporcionar, provocando-o até a loucura... A escuridão do quarto parecia explodir em fogos de artifício, tão vivos e reais quanto os olhos vermelhos aprisionavam os dele. Sua cabeça inclinou-se para trás, os lábios entreabriram-se e um gemido rouco surgiu das profundezas da garganta. Um gemido que quase se tornou um grito quando Hiei retirou os dedos de sua abertura e virou-o de frente, as mãos deslizando por sua nuca, agarrando seus cabelos, forçando sua cabeça para trás. Suas bocas se encontraram, a dele exigente e dominadora. O youkai enfiou a língua na boca de Kurama e movimentou-a como movimentara os dedos em seu corpo incandescente.

De súbito, a raposa viu-se deitado na cama cujas molas gemeram, sob o peso de ambos. O youkai, deitado sobre ele, com os joelhos imobilizando-lhe as pernas ergueu a cabeça para fitá-lo. Kurama o via apenas como um vulto escuro, um ser feito de sombras e de segredos, com uma força que o atraía de uma forma única, absoluta. Hiei era o desconhecido, o amante-demônio que viera reclamá-lo, seu rosto uma máscara de escuridão, nos olhos o brilho do fogo.

Por um segundo, Kurama achou que imaginava aquilo tudo, que era apenas uma fantasia erótica. No entanto, as mãos fortes eram mais do que um produto de sua imaginação. Eram reais, quentes e determinadas ao erguer a camiseta e arrancá-la de seu corpo, deixando-o totalmente exposto aos olhos famintos e possessivos.

“Sonhei tanto com você assim...”, a voz de Hiei era rouca e incerta, enquanto brincava com uma mexa do cabelo ruivo, sem encarar a raposa, mas a sinceridade impregnada em cada palavra, cada gesto... “Embaixo de mim, gemendo de tanto me querer... Esta visão assombrou minhas noites solitárias, kitsune. Tentei esquecer, tentei me convencer que não éramos feitos um para o outro. Agora sei que só há uma saída para nós... E também, não quero que nenhum outro tenha você... Nunca!”

Kurama tentou falar, pedir respostas para as perguntas que turbilhonavam em sua mente, mas o youkai abaixou a cabeça, envolveu um mamilo com a boca ardente; a raposa esqueceu-se de tudo e enfiou as unhas no colchão, como se fosse cair num abismo caso não se segurasse.

Hiei continuava a provocá-lo, os dentes mordiscando de leve o mamilo endurecido. A pressão intensificou-se a ponto de tornar-se quase dolorosa... O corpo todo da raposa contorceu-se, querendo mais. O demônio movimentou devagar a boca na direção do outro mamilo, a língua deixando uma trilha de fogo em seu caminho. A corrente com a pedra, que ele usava, tocou a pele febril de Kurama. O incêndio alastrou-se pelo seu corpo; abriu as pernas e fez Hiei encaixar-se entre elas. Queria que ele o penetrasse, bem fundo, queria tudo do seu demônio... Largou o colchão e passou os braços pelas costas rijas. Foi quando ele recuou.

“Hiei?...”

Os olhos do youkai brilhavam no escuro, como duas pequenas luas vermelhas num céu de veludo negro. Um arrepio percorreu a espinha de Kurama quando ele disse, intenso:

“Não me toque, kitsune. Estou tentando ir devagar, mas não sei se vou conseguir. Não se você me tocar...”, ele segurou as duas mãos da raposa com uma só e levou-as acima do travesseiro.

“Mas eu quero tocar você!”, implorou Kurama.

“Não.”, a negativa mais parecia um gemido doloroso vindo da alma dele, como se Hiei lutasse com um inimigo invisível. “Apenas, sinta o que lhe ofereço.”, a voz dele tornara-se uma carícia erótica. “Veja a sensibilidade de seu ventre...”, passou as mãos por ele, “... e o calor entre suas pernas, no seu sexo...”, desceu mais a mão e os dedos tocaram deliciosamente o membro palpitante. A raposa mordeu os lábios para abafar os gemidos. “Deixe-me amá-lo, kitsune... Deixe-me amar cada centímetro de você.”

Envolto em profunda sensualidade, a raposa acenou que sim, desesperado por ele, apesar de uma campainha soar em sua mente. Hiei ainda guardava muitos segredos, mas pouco se importava, desde que seu corpo cobrisse o dele. O medo parecia alimentar seu desejo, como o óleo alimenta o fogo, e Kurama incendiou-se.

“Segure aqui.”, ordenou ele, “Assim...”, levou as mãos da raposa para a cabeceira da cama e o fez segurar duas barras, permitindo que o corpo tentador ficasse totalmente exposto e vulnerável às suas mãos e lábios. Hiei sorriu, os caninos sobressaindo levemente, para em seguida desaparecer. “Você é meu.”, sua voz tornara-se baixa e sussurrante. “Sempre será meu...”

Como que para confirmar essas palavras, deslizou as mãos dos pulsos para os cabelos, acariciando-os com os olhos brilhando de admiração... adorava a cabeleira cor de fogo da raposa; depois continuou a carícia torturante, passando pelos ombros, pescoço e descendo para o peito, demorando-se nos mamilos sensíveis. A respiração da raposa tornou-se entrecortada.

“Você tem um corpo lindo. Todo você é lindo, kitsune...”, a boca de Hiei colou-se à dele, sorvendo o gemido de prazer.

Kurama contorceu-se sob ele, segurando-se nas barras da cabeceira, chorando e implorando... Aquele demônio estava enlouquecendo-o.

Hiei deslizou para baixo, contaminado pela febre que queimava a raposa, deslizando a língua na pele macia. Com pressão delicada, separou-lhe as coxas e, quase com reverência, beijou a carne ardente na parte interna de ambas.

Um tremor violento dominou o corpo de Kurama e acentuou-se quando a boca escorregou para o centro palpitante e rosado que os dedos dele já haviam explorado. O youkai segurou-lhe as nádegas, uma com cada mão, os ombros mantendo-lhe as coxas separadas, de modo que a raposa permanecia totalmente aberto para ele. Então devorou-o com carícias de lábios e de língua, num simulacro da posse que tornaria a raposa irremediavelmente dele.

Logo Kurama queimava com a fúria de um vulcão. Ondas de incrível calor percorriam-no como lava e achou que ia morrer. Porém Hiei estava ali para mantê-lo vivo. Só quando um longo suspiro demonstrou que o gozo aproximava-se é que o demônio separou-se dele, impedindo-o mais uma vez de atingir o clímax... A raposa tremia e chorava, em desespero pelo prazer negado, ansiando por mais, por tudo que só Hiei poderia lhe dar... Momentos depois, o youkai deitou-se ao seu lado e tomou-o nos braços fortes. Kurama percebeu que ele se despira, pois o sexo rígido queimava contra sua pele nua.

“Há muito tempo eu sonhava com isto...”, repetiu o youkai num murmúrio. “Nem em minhas fantasias mais delirantes imaginava-o assim, cálido e doce, selvagem e meigo... Você é delicioso, raposa.”, beijou-o demoradamente, a língua tocando todos os recantos de sua boca.

O gosto dele era exótico, como um fruto maduro agridoce. O desejo gritava imperioso dentro do corpo da raposa, fazendo-o corresponder ardentemente ao beijo. Num impulso, abraçou-o.

“Não...”

Kurama o fez calar-se, colocando a mão em seus lábios e murmurou:

“Sim... Quero dar a você pelo menos um pouquinho do imenso prazer que me deu até aqui... Deixe-me amá-lo Hiei... Não tenho mais medo... Não tenho mais.”

Hiei segurou-lhe a mão e beijou-lhe a palma, num carinho extremamente familiar a Kurama, ainda que não conseguisse lembrar.

“Você me deu mais prazer do que imagina, raposa... Tornou realidade o meu mais lindo sonho... Você!”

A raposa sorriu de modo sensual, e Hiei quase pôde vislumbrar o brilho dourado em seus olhos... estava ali, ainda que não totalmente, mas podia sentir, sorriu ao ouvir o comentário:

“Acho que ainda não terminamos de sonhar, não é?”

“Tem razão, não terminamos... Ainda não, kitsune.”, concordou, mergulhando o rosto entre os cabelos vermelhos, perdendo-se em seu próprio desejo.

E recomeçou a acariciar sua raposa, fazendo-o sentir novamente os prazeres indescritíveis e únicos que só ele poderia lhe proporcionar. Kurama correspondeu, abraçou-se a Hiei, esfregando-se contra ele, excitando-se com o sexo duro e rijo de encontro ao seu próprio sexo ansioso... Era duro no entanto deliciosamente suave, como o próprio Hiei, e viu-se desejando-o dentro de si.

“Por favor...”, arquejou, não agüentando mais essa tortura, “... por favor, Hiei! Eu quero você... agora...”, o demônio soltou um gemido rouco, que mais parecia o som de alguém completamente perdido em dolorosa agonia... Mas Kurama não se assustou.

Quando sentiu a ponta do sexo de Hiei na úmida entrada de sua gruta aveludada, todos seus medos e incertezas turbilhonaram em indizível emoção. Queria fugir, ao mesmo tempo queria ficar... Antes que uma das duas coisas prevalecesse, envolveu a cintura dele com as pernas, segurou-se nas nádegas enxutas e arqueou o corpo num impulso...

“Kitsune!”, gritou Hiei.

Uma dor resplandecente feriu-lhe as entranhas quando se fez penetrar, um gemido de dor rasgando-lhe a garganta ao mesmo tempo que implorava:

“Venha, Hiei.... Por favor, venha para mim...”, sentiu a mudança no youkai: a rigidez de todos os músculos, a selvageria com que o imobilizou, impedindo de se movimentar. Agarrou-o pelos quadris e Kurama compreendeu que fosse qual fosse a batalha que Hiei travara consigo mesmo, seu lado primitivo e desesperado por ele, tinha vencido.

Agarrando os lençóis, a raposa gritou novamente quando Hiei penetrou por completo em seu corpo, abrindo-o totalmente para a dor e o prazer... Porém o grito for mais de prazer do que de dor... Prazer que foi se intensificando enquanto seu demônio mexia-se dentro dele. Seus dedos largaram os lençóis e enterraram-se nas costas dele, incentivando-o enquanto se dirigiam juntos para um precipício em fim...

Sentiu a mão de Hiei agarrar seu membro, estimulando-o na mesma velocidade dele, para que juntos alcançassem o tão esperado auge de delírio... Entre as batidas trovejantes de seu coração, Kurama ouviu a música, a mesma que ouvira um pouco antes... Não parara de tocar em nenhum momento, fazendo parte daquele encontro apaixonado, desejado e , finalmente, sendo concretizado... Mas não conseguia pensar em nada, agora que Hiei movimentava-se com mais força e mais rápido, fazendo-o acompanhar seu ritmo
ávido e sedutor, estimulando-o com a mão ardente, enquanto dentro dele, cada investida era mais poderosa do que a anterior.

Olhava encantado e apaixonado para seu demônio... Ele era a personificação das trevas perfeitas, era como um furacão aspirando-o, fazendo seus sentidos vibrarem num espiral, cada vez mais alto, mais alto... Fogo e Gelo, vibrando dentro dele e encontrando todas as respostas num encontro perfeito com a raposa... A música enchia o quarto, ressoando em seus ouvidos, corpo, mente, acompanhando cada movimento deles... E Hiei chegou ao gozo, uma luz ofuscante expulsando a escuridão ao redor deles, enquanto derramava toda sua paixão de forma esplendorosa, dentro de sua raposa.

Kurama viu-o de olhos fechados, lábios entreabertos, o corpo trêmulo, o rosto molhado por lágrimas. Foi uma visão de instantes. O mesmo clarão fez a raposa ocultar o rosto no peito de Hiei quando ele mesmo atingiu o clímax tão ansiosamente aguardado, jorrando forte na mão do demônio, escorrendo pelo peito, que era suavemente acariciado pela outra mão do youkai...

Depois de algum tempo, o quarto tornou-se escuro novamente, e a raposa perguntou-se se não imaginara que o vira chorando... Ambos agora encontravam-se abraçados, acariciando-se doce e suavemente, o rosto de Hiei apoiou-se em seu peito. Então sentiu algo morno escorrer por seu peito, em seguida tornar-se frio e gelado, antes que pudesse fazer qualquer movimento, o demônio recolheu, fosse o que fosse. Em seguida ajeitou-se novamente sobre o peito da raposa, que passou um dedo na face dele e levou-o aos lábios: era uma umidade quente, salgada. Lágrimas... Lágrimas tão reais quanto Hiei!

Hiei abraçou-o e rolou, deitando-se de costas, segurando-o sobre si, os cabelos da raposa deslizando pelos ombros envolvendo seu corpo, cobrindo-o de forma quente e aconchegante, como nunca sentira nada parecido; seus corpos ainda unidos. Kurama segurou uma das mãos de seu youkai, trançou os dedos com os dele, apoiou a cabeça no peito forte e ficou ouvindo o coração que batia no mesmo ritmo que o dele. Agora, eram um só ser. Estavam unidos de corpo, mente e alma.

“Perdoe-me...”

A raposa mal ouviu o sussurro desesperado, já mergulhando no sono.

Perdoe-me.

Embalando-os depois do amor ardente, apenas a música suave...

“Kitto sayonara wa piriodo ja nai sa... Iku michi ga ima wa betsu to shite mo... Tsuku basho wa hitotsu...”

* * *
 
 

A escuridão murmurava e Hiei viu-se perdido nas lembranças do passado não muito distante... Rostos familiares se materializavam... O Torneio.... Sua luta com Mukuro... Tudo terminando... A mulher querendo que ele fosse mais do que seu general... Não aceitou... Jamais poderia aceitar... Seu desejo e pensamento pertenciam a outro.

Kurama estava deixando o Makai... o encontro de ambos, a promessa de uma união completa para dali a algumas horas... Saber que a raposa retribuía seus sentimentos, que ansiava tanto por ele quanto era ansiado... Ser amado por Kurama era seu sonho mais precioso, o mais acalentado e almejado depois que encontrara sua irmã... A raposa voltava para o Nigenkai, mas em breve encontrariam-se, a janela estaria aberta... esperando.

Mukuro... mais uma vez tenta seduzi-lo com promessas de poder... Mas isso não interessava-o, tinha tudo o que queria.... Tinha Kurama... Não queria mais nada... Ela não aceitou a rejeição... A Promessa, a Caçada... a morte de Kurama se o possuísse... Não acreditara e para provocá-lo e dar início à sua vingança, atira covardemente contra sua raposa, indefeso no portal entre os dois mundos.

KURAMA!!!!... Sua dor e revolta ao ver a raposa ser atingida... O desdém da mulher ao dizer que poupasse a katana e a energia... Seu desespero ao atravessar o portal e encontrar Kurama caído, ferido... A louca corrida até o Templo de Genkai... a tentativa de sua irmã de curá-lo.... a busca por Yansang... Os votos... sua união confirmada a sangue, confiança e amor...

A primeira parte da Promessa de Mukuro cumprida... a perda da memória do Youko, sua energia adormecida e seu esquecimento de Hiei... Sua decisão em se manter afastado da raposa para protegê-lo de seus próprios desejos... Tudo perdido desde que a Caçada fora decretada... os demônios vindo em busca de sua raposa... O refúgio era a única solução, mas o preço seria alto... ficar sozinho com sua raposa, desejando-o, querendo-o mais do que jamais quisera nada na vida... Seria capaz de arcar com as conseqüências de seus atos?...

Kurama em seus braços, em doce abandono, em total entrega... a união sendo confirmada... mas a que preço?... Possuíra Kurama e assinara sua sentença de morte... Como? Como pudera fazer isso com aquele que mais amava acima até de sua própria vida?... Como permitira àquela mulher vencê-lo dessa forma?... Como viveria com a culpa de haver condenado sua raposa a padecer nas mãos de Mukuro?.... Não... não podia aceitar... Não...

  “Seu maior desejo será o seu castigo. Para ambos.”

NÃO!!!!

“Por que não me contou, Hiei?”, a dor e a mágoa transpareciam em sua voz, “Por que?”

Os olhos de Hiei abriram-se e o pesadelo acabou... Mas era tarde... seus olhos encontraram-se com os da raposa: Ele sabia, lembrara de tudo!
 

* * *

Kurama apoiava-se na mesa da cozinha, a cabeça baixa, os cabelos cobrindo-lhe o rosto... Tudo estava muito claro em sua mente agora... quem era, o que era... Kurama Youko, seu passado completo passava em sua mente como num filme. Sua fuga para o Nigenkai depois de ferido pelo caçador, toda sua vida como Shuuichi Minamino... Os amigos todos... Suas lutas todas, e principalmente... Hiei... Lembrava-se de tudo, finalmente... desde o primeiro encontro, quando ainda tinha dez anos. Passados alguns anos, o acordo para roubarem os objetos do Reikai... o perdão de Koenma e as missões de ambos ao lado de Yusuke e Kuwabara... Os torneios... Sua paixão, seu amor por Hiei.. Os votos confirmando a união completa de ambos, na caverna do Yapsa, ele quase morrera... Tudo, finalmente claro, vivo e completo... Mas a que preço? Tanto sofrimento de seu demônio do fogo... Sofrimento que ainda não cessara... A ameça de Mukuro ainda pairando sobre ambos...

A Caçada ainda não terminara. Restavam ainda dois dias. E agora, a cabeça de Kurama era valiosa demais para aquela mulher: ele e Hiei haviam se amado. Era a chance de Mukuro ter sua vingança: sua morte e o sofrimento de Hiei. Mas isso, ela não iria conseguir facilmente. Não com Kurama totalmente recuperado, ou quase, uma vez que sua energia ainda estava um tanto quanto desequilibrada.

Olhou em volta... Seu refúgio. O local que tratara de isolar de qualquer tipo de energia. Um lugar onde sempre estivera seguro de qualquer coisa. Agora ameaçado por um bando de demônios caçando-o. O que faria para escapar dessa?

“Pense, Kurama. Pense!”, ordenava-se, tentando encontrar alguma coisa. A mente fria e analítica tomando conta da situação, como sempre, isolando todos os obstáculos até achar a falha no plano adversário e contra-atacar. Precisava descobrir o ponto fraco do plano de Mukuro. Precisava!

“Kurama...”

A raposa empertigou-se. Ele se encontrava atrás dele. Voltou-se para encará-lo.

“Você sabe... Afinal, você lembrou.”

“Você me fez assistir tudo na primeira fila, Hiei. Seu sonho, nossa ligação... Assim não precisou me dizer a verdade... Mostrou-me tudo.”, sua voz quebrou-se e virou-lhe as costas, fixando os olhos nublados por lágrimas na floresta além da janela. Mas não derramaria nenhuma lágrima agora. Sua lógica e frieza voltaram. Chorar não ia adiantar nada nesse momento.

Porém, não podia deixar de pensar no quanto toda a situação fora difícil para seu pequeno youkai... Hiei sofrera muito mais do que ele... Cada dia teve que superar a força do amor que impelia um para o outro, lutando contra sua própria vontade, seus desejos... O sofrimento de seu Demônio do Fogo fora muito pior... E foi esse sofrimento que venceu sua frieza, permitindo que as lágrimas descessem pelas faces pálidas.

“Maldita!”, o grito da raposa era como de um animal ferido, e sentiu o sangue gelado pela dor, sua e dele. “Ela quer me matar para conseguir você!”, falava consigo mesmo, tentando encontrar na raiva uma força amais para continuar lutando... Inclinou a cabeça, molhando a camiseta que vestira ao sair do quarto. Lembrou-se das últimas palavras de Hiei, antes de adormecer e acordar para a realidade: Perdoe-me. Agora entendia o desespero na voz dele. Voltou-se determinado. “Você me pediu perdão, Hiei. Mas nada há para perdoar... Sei que estamos num momento difícil, que ainda não sabemos como resolver, mas não se arrependa por termos nos amado... Foi maravilhoso, itoshii...”, sussurrou, querendo amenizar a dor de seu amado, não podia deixá-lo pensar que a noite que tiveram acabara por dar a vitória à Mukuro.

Mas Hiei estava mergulhado num poço de desespero, as palavras de Kurama não encontraram espaço em sua mente atormentada pela dor, pela culpa...

“Esta noite foi uma aviso, Kurama. Uma demonstração de força do poder que estão usando contra nós. Eles podem tirá-lo de mim num piscar de olhos, entregá-lo àquela mulher para que o mate, e não tenho como impedir!”, era incrível a dor que sentia na voz de seu youkai.

“Não!”, Kurama não queria acreditar naquilo, nem poderia permitir-se acreditar se quisessem escapar, “Você me protegeu disso tudo nas últimas duas semanas, tendo que lutar até mesmo contra mim, quando não lembrava sequer de você... É muito mais forte do que eles!”

“Hn. Não vou deixar que o tirem de mim. Nem que seja necessário voltarmos para o Makai para enfrentá-la de igual para igual!”, resmungou Hiei. O luar entrava pela janela impondo um contorno prateado no corpo forte, “Você me pertence, kitsune, como eu te pertenço. Não suporto pensar que alguém possa vir tirá-lo de mim, tocá-lo de alguma forma. Você é meu!”

O corpo da raposa arrepiou-se ante o desabafo, correspondendo aos sentimentos de Hiei... Ele próprio se sentia dessa forma, não podendo imaginar qualquer um, principalmente aquela mulher, desejando seu pequeno youkai, possuindo-o... Isso nunca! Hiei era dele!

Olhou para o Demônio do Fogo. Um brilho sombrio, perigoso, excitado pairando nos olhos, mas que conservam um pouco de suavidade. Ele o entregara como a si mesmo, e a decisão não havia sido fácil. Naquele olhar, a raposa percebia o desejo dele; doloroso, arrasador e irresistível; que encontrava eco no seu próprio desejar. Hiei lutara corajosamente. Alguém mais fraco o teria entregue aos demônios muito antes. Lembrou-se do amor que tinham feito, o prazer dele, das lágrimas quentes no seu rosto e seu amor pelo youkai intensificou-se ainda mais... Por ele, por esse amor, tinham que encontrar uma saída!

“Desculpe...”, a voz de Hiei tremia, assim como a mão que passou pelos próprios cabelos... “Não acredito que fui derrotado depois desse tempo todo.”, fitaram-se e a raposa viu o quanto o pequeno youkai o amava e como queria tê-lo protegido mais. O rosto dele espelhava a luta brutal entre a raiva e a culpa. O desespero flamejou nos olhos vermelhos, quando gritou: “O que eu fiz?”

Desaparecera o demônio determinado e em seu lugar estava o animal ferido que vira a morte de perto. Por longos momentos, Kurama acariciou o rosto contraído pela dor, sentindo a violência das emoções de Hiei. Via nele a criança que o pequeno koorime havia sido, assombrada, atormentada, e perdida, encontrando lugar no youkai poderoso que era no presente.

“Para onde você foi quando voltamos do exílio de Yansang?”, perguntou a raposa. De repente, queria saber tudo a respeito do período que ficaram distantes um do outro, queria saber de seu sofrimento, de sua luta durante aquelas semanas. Precisava partilhar com ele o peso que carregara sozinho durante aquele tempo.

Hiei colocou a mão sobre a da raposa e fechou os olhos amargurado.

“Andei por aqui mesmo, no Nigenkai. Enquanto se recuperava no Templo de Genkai, vaguei por aí, entre as sombras, as árvores... Tudo muito difícil porque tinha que acostumar em sentir tudo o que você sentia... Inconscientemente, você chamava por mim, mas eu não podia responder.”, calou-se e engoliu em seco, como se as palavras estivessem presas em sua garganta. Continuou: “Quando voltou para sua casa, eu fiquei no Templo. Genkai convenceu-me de que era o melhor lugar para esconder-me. Você não ia até lá com freqüência, poderia me esconder, caso aparecesse, e os demônios não conseguiam me rastrear, pois o Templo é protegido, isolando as energias... Como aqui.”

Não conseguindo mais enfrentar o olhar amoroso de sua raposa, o Demônio do Fogo baixou os olhos, confessando seu maior tormento:

“Não consigo acreditar que cedi... Nunca me permiti pertencer a ninguém, fechava-me por dentro, mesmo porque tinha medo de ser uma maldição para quem quer que se aproximasse de mim... Muito medo, raposa...”, as palavras não eram mais que um suspiro. “Mas não consegui me fechar para você... Quis que você entrasse e tomasse conta de meus pensamentos, meus desejos, minha alma... Quis te amar e quis que me amasse... E ao querer isso, atraí a maldição de Mukuro sobre você... Nunca deveria ter me aproximado aquele dia, deveria tê-lo deixado partir, sem confessar nada!”

Kurama percebeu que chorava também, enquanto as lágrimas quentes dele molhavam sua mão, sem terem tempo de transformarem-se em jóias...

“Eu é que devo pedir desculpa, itoshii...”, disse soluçando, “Você merece tudo, merecia viver esse amor que ambos sentimos de forma plena, como planejamos aquele dia... No entanto, dedicou-se a mim, a me proteger e salvar, de todas as formas...”

O Demônio do Fogo abriu os olhos e fitou-o longa e amorosamente.

“Eu pensava em você o tempo todo, kitsune... Fiquei o mais perto que podia, pois sabia que chegaria o momento que ia precisar de mim, que apenas Yusuke e os outros não conseguiriam protegê-lo, pois tinha certeza que Mukuro mandaria todos os demônios buscarem a única coisa preciosa para mim: você!” Nem bem terminou de falar, um estremecimento sacudiu-o e Kurama percebeu um caos emocional em seu íntimo.

Estava a um movimento para abraçá-lo e traze-lo para seus braços, quando um estrondo fez-se ouvir do lado de fora da casa.

A porta da cozinha escancarou-se, a janela também, assim como todas as demais portas e janelas da casa, fazendo um barulho tremendo; madeira batendo contra madeira, dobradiças rangendo, até que a casa toda ficou aberta à fúria do que quer que fosse. O vento uivou, alguém gritava ordens  do lado de fora e Hiei soltou-o tão de repente que precisou segurar-se para não cair. O youkai recuou um passo, mas permanecendo perto dele, olhando para a janela atrás de Kurama.

Vários rostos demoníacos estavam cercando a clareira, à espreita, armando uma tocaia para ambos...

“Não...”, murmurou pensando em alguma coisa para fazerem, quando viu as plantas e árvores responderem a um comando mudo, atacando aqueles que ameaçavam invadir seus domínios. Responderam ao seu comando, seu poder. A energia voltava, ainda um tanto sem controle, mas era o tempo que necessitavam para a fuga. Porém, as plantas começaram a invadir a casa também, ameaçando-os... não conseguia controlá-las. “Hiei!”, gritou, pedindo sua ajuda.

O Demônio do Fogo continuava a olhar para além da clareira, Kurama viu o jagan aberto, o jagan que escondera dele enquanto estava desmemoriado, então virou-se rápido para a raposa.

“Traga as mantas que estão no quarto! Depressa!”, gritou em meio aos estrondos que ameaçavam derrubar a casa a qualquer momento.

Kurama livrou-se de algumas plantas e percorreu o corredor. Entrou no quarto, cujas janelas já haviam sido arrancadas pelos galhos das árvores. As plantas movimentavam-se ao seu redor, sem no entanto atacá-lo, mas não podia correr o risco. Pegou as mantas que encontravam-se sobre a cama. Queria fechar os olhos, para ver se controlava o ataque, mas não conseguiu. Não estava conseguindo controlar seu poder.

Voltou à cozinha e encontrou Hiei onde o deixara; as plantas dançavam ao seu redor, mas ele mantinha-as afastadas, usando a katana com rapidez.

“Desculpe!”, afligiu-se a raposa, “Sinto muito mas não sei o que está acontecendo comigo, ainda.”

“Controle-se”, era a voz dele em sua mente. “Respire fundo. Reúna a energia que está dispersa!”

Kurama obedeceu, a respiração aos trancos no começo, depois regularizando-se, até que o tremor cessou. Sentiu tudo se acalmar ao redor deles, mas lá fora a situação ainda era descontrolada, se bem que isso os favorecia, uma vez que pouco a pouco, os demônios eram mortos. Mas um perigo maior estava à espreita. Mukuro.

“Hiei! Precisamos sair daqui!”, Kurama segurou-o pela mão e puxou-o com força, “Por favor, Hiei, me ajude. Me ajude!”, estas duas últimas palavras pareceram despertá-lo: sacudiu a cabeça, os olhos readquiriram vida e a mão apertou a de Kurama. Em seguida, era ele quem o levava para fora.

No pátio da clareira, Hiei invocou toda a energia que ainda possuía, uma vez que estava muito fraco. Concentrando todo seu poder, lançou um golpe de chamas que circundou toda a clareira, criando uma barreira de fogo que os isolava completamente. Qualquer um que ousasse ultrapassar, sem a permissão do demônio, morreria instantaneamente.

“Vamos!”, a voz de Hiei soou irreal de tão fraca.  Abaixou-se, pegou a manta e evolveu-o com ela, dos pés à cabeça. “Depressa, Kurama!”, empurrou-o pelos ombros. “Não temos muito tempo até que a barreira apague.”

“Você vem atrás de mim, está bem?”, a raposa pediu.

Correram até a barreira que os rodeava.

“Quando estiver além da barreira”, disse o youkai detendo-o e fazendo encará-lo, “verá a trilha. Siga por ela até seu outro esconderijo, vai lembrar quando chegar até ele. Siga e não olhe para trás. Entendeu?”, sacudiu a raposa e, sem esperar resposta repetiu: “Não olhe para trás!”

“Você vem tam...”

Calou-se no momento em que Hiei o empurrou para dentro do fogo. O calor envolveu-o sem queimá-lo no entanto. Correu, a manta incendiando-se sobre o corpo. Assim que ultrapassou o fogo, jogou a manta longe. Voltou-se e seus olhos procuram pelo youkai.

“Hiei! Depressa, venha!”

Viu-o dar um passo à frente, porém algo o agarrou por trás, imobilizando-o, fazendo-o recuar.

“NÃÃÃÃÃOOO!”, gritou a raposa em desespero. As chamas ficaram mais quentes e mais altas, como se quisessem engolir tudo ao redor. A voz de Hiei, grito de uma alma torturada em busca de redenção, soou no íntimo de Kurama.

“Corra, Kurama! Corra e não olhe para trás!, ainda hesitou, um passo em direção ao fogo. “Corra!”, a voz dele ecoou com força na mente dele, obrigando-o a obedecer. “Já!”

Ele correu e uma bola de fogo soltou-se da barreira, lambendo o lugar onde estivera um segundo atrás.  Corria sem enxergar, porém como que guiado pelo seu instinto de raposa. As árvores obedeciam seu comando, ajudando-o a despistar os passos que o seguiam. Chegou até um lugar onde parecia que tudo terminava. Não sabia para onde ir. Lembrou-se de seu pequeno Youkai.

“Hiei!”. Gritou desesperado.

“Corra! Continue até o esconderijo, raposa! Corra!”

Exortou a voz em sua mente. Foi avançando, ouvindo os ruídos ao seu redor, até que mergulhou numa escuridão cativante que o acolheu como que a um filho... Tudo ficou em silêncio e Kurama não sentiu mais nada...

* * *

“Maldito louco traidor!”, rosnou Ganjin, depois cuspiu no chão junto ao corpo de Hiei. A saliva frigiu ao cair na terra calcinada, como água numa frigideira quente.

“Basta!”, Mukuro olhava para o youkai inconsciente. Ajoelhou-se e tocou o rosto de Hiei. Um dos ombros achava-se em carne viva, bem como outras partes de seu corpo. As roupas eram uma camada de cinzas ao seu redor.

A mulher mais forte do Makai entrecerrou os olhos, o peito apertado por uma sensação estranha. Agira rápido, usando sua própria energia para fazer com que as chamas se voltassem contra Hiei quando este tentou fugir, também. Mas não queria feri-lo tanto, muito menos matá-lo.

“Perdoe-me, Hiei.”, sussurrou sua voz nos recônditos negros de sua mente. Mas não podia permitir-se tal fraqueza. Ele fizera a escolha. Pagava caro por sua rejeição a ela como mulher, e sua traição como seu general. “Nada de remorso, nem de piedade! Ainda há uma parte de minha vingança a ser cumprida.”, tratou de relembrar.

“Você fez bem em detê-lo.”, disse Ganjin. “Pena não ter apanhado o Youko também. Seriam dois coelhos na mesma armadilha.”

 Mukuro ergueu-se novamente enquanto retrucava:

“Kurama não irá longe. Está sozinho e com sua energia em total desequilíbrio. Ainda que tenha recuperado a memória, não está conseguindo controlar seu poder. Será presa fácil. Os outros cuidam dele. Deve estar voltando para encontrar os amigos, na cidade.”, deduziu quando viu alguns de seus comandados voltarem depois de uma busca pela floresta. “Peguem Hiei e vamos embora.”

 “Ele não serve para mais nada, vamos deixá-lo aqui.”

“Você é que ficará aqui se não me obedecer. Ainda tem uma parte de minha vingança a ser cumprida: quero o sofrimento de Kurama. E se Hiei estiver conosco...”, deixou a frase inacabada, o youkai seria a isca perfeita para atrair aquela raposa traiçoeira.

“Podemos continuar a Caçada... Um novo plano e ele estará em nossas mãos! Hiei é um traidor e...”

 “Cale-se!”, cortou Mukuro. “Faça o que mandei Ganjin.”

Seus olhares cruzaram-se, a fúria dela lutando contra a rebeldia dele; porém a mulher era mais poderosa.

 “Como queira, Mukuro.”

A um sinal relutante de Ganjin, vários demônios materializaram-se e rodearam Hiei. Mukuro ainda lançou mais um olhar para o youkai ferido, depois voltou-se e saiu andando entre as chamas que extinguiam-se aos poucos. De volta para o Makai. A sombra de arrependimento que sentira se desvanecera. Sem redenção e sem perdão. Seu maior desejo será seu castigo. Para ambos. Suas próprias palavras vibravam-lhe na mente, lembrando-lhe quem era, e o que prometera a si mesma. Na noite seguinte era a Noite do Equinócio do Gelo. Um dia para capturar o Youko, ou esperar que se entregasse em troca da vida de Hiei.

 E exatamente à meia noite, teria a cabeça de Kurama em suas mãos.

 De uma maneira ou de outra, teria sua vingança.

* * *
 
 

Kurama  abriu os olhos. Tudo ao seu redor estava escuro. Por um instante não se mexeu, confuso, não sabia onde estava, nem se lembrava de como chegara até ali. As cenas passaram por sua mente como num raio... A noite de amor com Hiei, o sonho do youkai trazendo à tona suas memórias adormecidas, o ataque dos monstros à cabana, a barreira de fogo erguida pelo seu Demônio do Fogo para salvá-lo, a corrida desesperada pela mata fechada, a captura de Hiei!

Seus olhos fecharam-se com força e seus braços enlaçaram seu corpo trêmulo... Hiei... sua mente tentava buscá-lo incessantemente, mas apenas o silêncio respondia... Hiei... chamava seu corpo, seu coração, sua alma... Nada... nenhum murmúrio em resposta, apenas o vazio. Uma única certeza gritava em sua mente: Mukuro capturara seu amado youkai.

A revolta ao imaginar as mãos daquela mulher tocando em seu koorime de qualquer modo, foi o suficiente para acordá-lo daquele estado de letargia. Precisava salvar Hiei! Precisava salvar a ambos! O tempo corria rápido. Tinham apenas dois dias!

Levantou-se examinando tudo ao seu redor. A escuridão não permitia-lhe ver muita coisa, mas ao que parecia, estava dentro de uma gruta. Num relance, reviveu as últimas cenas de sua fuga alucinada pela floresta: Hiei gritando para que corresse e continuasse até seu outro esconderijo... Sim... agora recordava-se... Quando achava que não havia mais para onde ir, os demônios que aproximavam-se mais e mais, cercando-o na mata; um galho de árvore empurrou-o para um tronco largo, e o chão coberto de folhas cedeu aos seus pés, caindo num buraco sob o carvalho, batendo a cabeça ao deslizar para dentro da gruta, por isso ficara desacordado.

Uma gruta. Esse era o seu segundo esconderijo. Uma enorme gruta sob o velho carvalho. Se algo acontecesse à cabana, sempre teria a oportunidade de refugiar-se ali, pois as árvores obedeceriam ao seu comando e dariam cobertura para a fuga... Como de fato ocorrera... A entrada era ocultada pelos galhos e folhas que rodeavam a gigantesca árvore.

Lembrava-se de quando estivera ali com seu pequeno youkai, semanas antes do Torneio das Trevas da Ilha da Morte; e lhe mostrara ambos os refúgios. E o Demônio do Fogo não esquecera de nenhum deles.... Hiei... soluçou dolorosamente...

Por duas vezes estiveram tão próximos, em momentos de profunda entrega e devoção, compartilhando o sentimento que os unia; e por ambas ocasiões foram tão brutalmente separados... Pela mesma pessoa... Mukuro!

As lágrimas foram substituídas por uma raiva fria. Por causa dessa mulher, Hiei sofrera um longo tempo. E não um sofrimento qualquer e sim uma dor muito pior, de marcas mais profundas: o sofrimento psicológico. O trauma e o medo de tocar em Kurama, de ser o responsável pela sua morte....

Mulher Maldita!

Ela o queria morto de qualquer maneira, mas preferiu usar esse golpe baixo apenas para torturar seu Demônio do Fogo. Quanto mais raciocinava, mais aumentava a raiva da raposa.

Silenciosamente, caminhou até a entrada da gruta e, imóvel, perscrutou o local, à procura de algum indício de que ainda o procuravam... Nada... Tudo muito quieto. Num salto ágil, saiu de seu esconderijo em direção à clareira. Acima o céu estrelado contrastava com a sombria solidão de seu ser que só dispersar-se-ia com a luminosidade ardente dos olhos de fogo de Hiei...

Chegando ao círculo formado pelas árvores, a raposa percebeu que nada se queimara, além do pequeno espaço demarcado por seu youkai, a única prova que ali ardera uma barreira de fogo, era um rastro de grama queimada, que circundava o espaço um pouco à frente da cabana... De resto, tudo intacto. Mesmo a casa, apenas janelas quebradas e a porta arrombada eram sinal da invasão dos monstros e do descontrole de seu próprio poder, mas nada que não fosse fácil de consertar.

Vagou por um tempo entre dos pedaços de madeira arrancados da casa, galhos e folhas de árvores, alguns queimados pelo calor das chamas, não sabia ainda o que fazer quando deparou-se com um pedaço de pano chamuscado pelo fogo... Era um pedaço da roupa de Hiei...

Achou que as lágrimas não tardariam a correr pelas faces novamente, mas estas não vieram... Apenas uma força adormecida começou a dar sinais de vida em seu corpo, enquanto cada vez mais apertava aquele pedaço de pano em sua mão...

Uma névoa densa começou a descer sobre a clareira, cobrindo o céu estrelado... Uma névoa que dançava ao seu redor uma música antiga que só ele poderia ouvir... O vento açoitava os galhos das árvores fazendo-os uivar um lamento sentido e suplicante, ao mesmo tempo que agitava-lhe os longos cabelos vermelhos de forma doce e selvagem, como o toque de seu amante... O toque de Hiei... Fechou os olhos, clamando pelo único poder que poderia trazer esse toque de volta.

E quanto mais o vento soprava, e quanto mais a névoa encobria a frágil figura de Shuuichi Minamino , um uivo cruzou a noite, como um grito, um chamado de reconhecimento do verdadeiro e arguto caçador da noite, o ladrão de sonhos, tesouros e corações... E quando a névoa dissipou-se ao seu redor e seus olhos abriram-se para a noite gélida, não era o sofrido brilho das esmeraldas, mas sim o frio e misterioso âmbar dos olhos dourados de Kurama Youko.

A bela figura da raposa, com seus longos cabelos prateados, sua cauda comprida e suas vestes claras como o pálido tom de luar, destacava-se solitária e dominante no centro da clareira silenciosa... Tudo parara... O vento, a névoa, o uivo... Tudo esperava pelo ser que reinava soberano nas noites sombrias do mundo das trevas, mas que era reconhecido pela sua aura mística e poderosa no mundo dos homens...

O Youko olhou para a lua que brilhava no céu estrelado... uma lua quase cheia, a mesma lua que dali a mais duas noites estaria completamente cheia, encerrando um ciclo de Promessa, Caçada e Vingança... Baixou os olhos para o tecido ainda apertado em sua mão. Os dedos longos abriram-se, permitindo o contemplar daquele que o segurava, para em seguida fecharem-se com mais força.

“Hiei... Não foi apenas à forma humana que você se uniu... Também faço parte de você, tanto quanto faz parte de mim... Por várias vezes dividiu as escuridões comigo, no mesmo poço negro onde essa maldita Promessa me aprisionou. Mas ao amar minha forma humana, você me libertou dessa prisão sem muros... Agora é minha vez! Confie em mim, koibito! Não vou te perder! Nunca!”

As palavras murmuradas pela figura magnífica, ecoaram pela noite silenciosa, e nem o vento ousou soprar algo em resposta. Os olhos da raposa tornaram-se mais frios ao encarar a lua novamente, enquanto murmurava em tom firme e determinado...

“Cuidado com o que deseja, Mukuro, pois pode vir a conseguir. Você pediu a minha cabeça, só que receberá muito mais junto com ela... Ninguém rouba o que é meu e vive prá contar a história... Esta noite você tirou algo que faz parte de mim e com isso conseguiu o que tanto queria. Estou indo para o Makai, e vou te matar, por mim e por Hiei... Essa é a minha promessa. A promessa de Kurama Youko!”

E com o vento forte soprando suas palavras ao longe, a figura do legendário ladrão das trevas começou caminhar lentamente entre a mata para o lugar onde sabia, teria um portão que dividia os mundos  aberto, à sua espera.

* * *

Um dia e uma noite haviam se passado desde então. Finalmente chegara a noite da Lua Cheia do Equinócio do Gelo. Os demônios estavam inquietos na clareira onde seria realizado o sacrifício. Ninguém encontrara nenhuma pista do Youko, porém tudo estava pronto à espera do momento crucial. Perto do Altar, Mukuro apenas aguardava.

“Acha que ele virá?”, a voz de Ganjin soou ao seu lado.

“Ele já está aqui. Os sentinelas avisaram quando viram-no cruzar a fronteira, mas foram estúpidos demais para conseguir segui-lo. Ele virá.”, respondeu a mulher tranquilamente.

“Sim. Mas pode ser que resolva dar um golpe e só aparecer depois da Hora Sagrada, como uma tentativa de quebrar a magia...”

A mulher também cogitara isso. Seria algo bem capaz da raposa tentar fazer. Para isso, aramara um segundo plano de estratégia. Não lhe agradava, mas não chegara tão longe para perder no último momento nas artimanhas de um Youko!

“Se a hora começar a se aproximar e Kurama não se entregar, não importa. Esta noite haverá um sacrifício. De um jeito ou de outro. Se esse Youko ousar me desafiar assim, inverterei o sofrimento: matarei Hiei em sacrifício e será a raposa a sofrer cada dia de sua existência por não haver sequer tentado resgatar o amante.”

Ganjin olhou para a mulher um tanto que surpreso. Todos já sabiam dos sentimentos de Mukuro por Hiei. Matá-lo seria um ato terrível, mesmo para ela. Porém, como a própria dissera, nada mais havia a perder. Teriam o sacrifício de qualquer maneira. Não havia mais Caçada, nem Promessa. Apenas a sede da vingança, e essa só saciaria com sangue, não importava se seria do Youko ou do Youkai. Olhou para o lugar onde, o que restara de Hiei, estava escondido. Um campo energético impedia qualquer um de sentir seu you-ki, se bem que nem seria necessário, tão fraco e ferido encontrava-se, mas, ordens eram ordens, e deviam ser cumpridas.

O demônio das sombras olhos para a mulher quando percebeu que esta movia-se em direção à escada que precedia o Altar, enquanto ela comentava como que consigo mesma.

“No fundo, não passa de uma raposa covarde...”

“Não tão covarde quanto você, que gosta de atacar pelas costas, não é?”, a voz fria e grave fez-se ouvir entre as árvores atrás dela.

“Ora, ora ora... Vejo que ainda consegue movimentar-se tão silencioso quanto o ladrão do passado, escondeu sua energia de todos nós... Estou impressionada!”, respondeu de modo sarcástico ignorando o comentário da raposa.

“Onde está Hiei?”, perguntou Kurama, saindo das sombras e mostrando sua magnífica presença em forma de Youko.

“Ainda vivo. Mas não pode senti-lo, não é? Sequer pode ter a certeza se ele está por aqui ou não...?”, queria ver a insegurança nos olhos dele, o medo... porém ele lançou-lhe um olhar raivoso.

“Se tocou nele de alguma maneira, se machucou-o mais do que já o fez, eu a matarei! Pode ter certeza!”, ameaçou em voz baixa e controlada.

“Não está em posição de fazer ameaças Youko. Está quase na hora de sua morte. Agarrem-no!!!!”, deu a ordem que os monstros esperavam, vendo a raposa eliminar facilmente, um a um, os demônios que o cercavam... claro, era muito mais forte do que todos eles juntos... Mas ainda guardava um trunfo, e não hesitou em usá-lo para conseguir a rendição de Kurama. Fazendo um sinal quase que imperceptível para Ganjin, viu quando o demônio das sombras esgueirou-se de forma desapercebida até o local onde Hiei estava escondido da raposa.

Enquanto isso, Kurama lutava, tentando ganhar tempo para conseguir colocar seu plano em ação... mas para isso precisaria de Hiei, e ainda não conseguira localizá-lo.

“Hiei!”, gritou a raposa mentalmente, tentando ouvir a resposta, qualquer resposta...

* * *

 
 
 

“Eu sabia que vocês não iam ficar juntos. Um terá que morrer de qualquer maneira hoje.”

A voz conhecida fez Hiei abrir os olhos, mas fechou-os depressa ao clarão do fogo que ardia na tocha. Sentia a presença, fria como uma estátua de gelo. A voz chegou mais perto:

“Devíamos tê-lo deixado morrer queimando na clareira.”, algo esbarrou no ombro ferido e refletiu no corpo todo, fazendo o pequeno youkai encolher-se. “Oh, desculpe! Esqueci que está todo queimado nessa região...”, ecoou uma risada arrepiante. Dedos cruéis envolveram o ombro machucado e pressionaram a carne viva. Hiei perdeu a respiração e para não gritar mordeu o lábio inferior até tirar sangue.

“É... Está mesmo mal. Bem, é por isso que estou aqui. Vou livrá-lo de seu sofrimento e entregá-lo ao sacrifício, graças ao meu bom coração de demônio.”

Os olhos de Hiei abriram quando a lâmina encostou na sua garganta. Uma leve pressão criou uma fina linha de sangue que pingou na carne queimada, com o efeito de gotas de óleo fervente.

“Ainda não é “nada”, amigo...”, ironizou Ganjin. “Estou apenas marcando onde vou cortar.

Com a ponta da faca, de leve, traçou uma linha descendente no peito. Ardeu como fogo e o sangue brotou, em pequeninas gotas. Cheio de ódio, o Demônio do Fogo procurou reunir forças. Não tinha nenhuma. Era como um pedaço de concreto, à espera do massacre. Fechou os olhos, resignado. Derramara muito sangue naquele mesmo lugar, em várias lutas, e pelo visto seria ali que derramaria o seu também. Mas o que o consolava é que não era o sangue de Kurama, a raposa devia estar escondida no seu esconderijo esperando a hora passar para tentar algum plano. Seria tarde demais para ele, mas com certeza, a raposa vingaria sua morte, acabando com Mukuro.

“Você deveria ter desistido, Hiei. Evitaria muita encrenca. Kurama estaria conosco a mais tempo e sua morte teria sido evitada.”

Kurama. O nome foi como um vento do gelo, apagou a dor, deu-lhe forças. Abriu os olhos.

“Surpreso?”, Ganjin ergueu as sobrancelhas e a faca. “Não devia, pois sabia que venceríamos. Foi por isso que você transou com ele... Conte prá mim, Hiei”, a voz se tornou tão canalha quanto o olhar “, foi gostoso como você imaginou? Ele é tudo que dizem as lendas?”

“Mexa num fio de cabelo dele e eu te mato!”, ameaçou Hiei com os dentes cerrados.

 “Mata mesmo? Olha... seria um milagre nas suas condições...”

“Onde está Kurama?”, as palavras pareciam rasgar a garganta do youkai, contraída pelo ódio. Num instante percebera que, pela expressão de Ganjin, sua raposa não devia estar na segurança do refúgio, mas não queria acreditar que eles tinham capturado-o.

“Preparando-se para a cerimônia.”, Ganjin olhou para a ponta da faca, fascinado. “É um jardineiro de mão cheia, sabia? Está adubando a terra com o sangue de alguns demônios medíocres prá depois plantar o seu próprio sangue fortificante. Com certeza as plantas nascerão muito mais fortes e viçosas depois dessa noite...”, os punhos de Hiei se apertaram no esforço de não pensar na dor de sua raposa, da cena da espada descendo em sua direção numa velocidade incrível, do sangue correndo pelo Altar... “Não se preocupe, meu amigo. Mukuro é uma excelente espadachim, o corte será bem preciso e sem falha. Morte instantânea.”, o rosto odioso aproximou-se, “Será que Kurama vai pensar em você quando a espada estiver descendo em direção ao pescoço dele?

A imagem desenhou-se viva, na mente de Hiei, como em seus pesadelos... Ouviu os gritos de Kurama ao ser acorrentado no Altar, as lágrimas ao encará-lo, como que despedindo-se, mas sempre confiando, a espada vindo em sua direção, cortando de uma vez... os olhos perdendo o brilho enquanto o sangue jorra pelo corte, caindo até o chão.... NÃO! Ergueu a mão, segurou o pulso de Ganjin, a faca caiu e a surpresa desenhou-se no rosto dele. O demônio das sombras logo de refez, cheio de ódio.

“Você é forte, Hiei. Sempre foi. Mas teve uma fraqueza: você se apaixonou por aquele Youko. E isso tirou-lhe a sua tão famosa objetividade. Foi por isso que não me matou aquele dia, perto do Templo. Podia ter feito, mas me deixou partir com um recado para Mukuro, absolutamente dispensável.”

 “É... Eu devia tê-lo matado como o animal que é!”

“Devia, mas não o fez. Agora, veja: estamos de volta onde começamos. Desta vez, um de nós tem que morrer.”

 “Você!”, os dedos de Hiei apertaram mais o pulso de Ganjin.

“Não, fedelho. Eu vou rir por último. Mukuro foi uma idiota por ter confiado em você. E agora quer se redimir perante todo o reino, recusando a fama de rejeitada e traída querendo matar Kurama, e você. É uma mulher maluca.”

 “Uma mulher maluca que acabaria com você se ouvisse o que disse.”

“Ahhh... mas ela não ouviu. E agora esta lá, entretida demais em caçar a raposa prá prestar atenção em você. Esta noite você e o Youko morrerão. Serão esquecidos como um pesadelo acabado. Aliás, você não passa de um sonho mau que está terminando... Agora!”

Ganjin abaixou-se e pegou a faca, apesar de Hiei continuar segurando seu pulso. O Demônio do Fogo olhou a faca quando o demônio a ergueu, a lâmina cintilou contra o teto negro da caverna e desceu sobre ele como um raio prateado. Uma dor ardente atravessou o peito de youkai, que inspirou fundo; o sangue escorreu sobre a pedra onde estava acorrentado. Sentiu o cheiro pungente de vida e morte, enquanto o tempo parecia ficar suspenso, a dor drenando o oxigênio e o espírito para fora do corpo.

Com a visão nublada, percebeu que a faca se erguia de novo, vermelha. Ganjin riu e a gargalhada foi como um som abafado introduzindo-se na mente de Hiei para misturar-se ao bater de seu coração, prova que ele ainda vivia. Mas não por muito tempo.  Um reflexo prateado do cabo da faca pareceu-lhe lágrimas... Lagrimas da lua, derramadas pelos dois seres perdidos e agora separados, cada qual imerso na sua própria escuridão. Sozinhos. Com medo.

Viu a imagem de Kurama... Kurama na sua forma de Youko, tão perto que sentiu-lhe o perfume. O rosto pálido, lutando contra os demônios que o cercavam, não se entregando ao destino que Mukuro traçara, sua mente gritando o nome dele: “Hiei!”... A voz dele atingiu-lhe a alma, despertou sua força e demônio adormecidos dentro dele.

A faca descia em câmara lenta, enquanto o ódio devolvia a vida ao corpo de Hiei. Seus braços ergueram-se para ir de encontro do desafio da Morte.  E Ganjin, demônio com poderes e acordos com as trevas, era um adversário medíocre para o  Maijin em pessoa.

O último ruído que se ouviu foram as correntes arrebentando-se....

* * *
 
 

“Já chega!”, a voz da mulher sobressaiu sobre a luta da raposa com os demônios, enquanto caminhava para perto de seu rival, “Desista, Kurama. Nessa luta você não têm a menor chance!”

“Não?”, o Youko ergueu uma das sobrancelhas em ironia ao comentário, sua postura elegante destoando das figuras patéticas que o cercavam, “Pois acho o contrário. Seus servos é que não têm a menor chance contra mim. A menos que esteja querendo um confronto direto, Mukuro.”

Ela apertou os punhos com força, enquanto praguejava mentalmente, aquela raposa estava desafiando-a na frente de todos, como se fosse o dono da situação, quando a realidade era exatamente inversa. Mas faria com que engolisse aquela arrogância.

“Meu objetivo aqui não é uma luta, Youko! É um sacrifício. O seu de preferência. Mas se quiser manter sua cabeça sobre o pescoço, acho que tenho outro voluntário muito interessante...”, deixou as palavras pairando no ar, enquanto seu olhar dirigia-se para o outro lado de onde encontravam-se.

O Youko empertigou-se ainda mais, as orelhas movendo-se em alerta, a cauda agitando em aviso. Lentamente acompanhou o olhar da mulher e arregalou os olhos quando viu o campo de energia desaparecer, permitindo que visse a sombra na parede de uma gruta. Uma sombra inclinava-se com uma faca, sobre um pequeno corpo deitado numa pedra... Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha... Hiei!.. Encarou a mulher, com um brilho de ódio nos olhos dourados, mas quando falou a voz soava firme e controlada.

“Mudança de tática, Mukuro? Acha mesmo que vou acreditar que ira matá-lo?”

“É melhor acreditar... O sangue de alguém irá correr sobre esse Altar hoje. Se não for o seu, será o dele. Se bem que Hiei sofreria muito mais com sua morte do que você com a dele, uma vez que nunca se importou com ninguém, não é, Youko?”

“Está blefando.”, afirmou a raposa, ignorando o último comentário da mulher. Voltou a concentrar-se nos demônios que o rodeavam, sem no entanto, perder os movimentos dela.

“Aí é que se engana. Eu nunca blefo.”, replicou olhando fixamente para o cativeiro do Demônio do Fogo, como que estabelecendo um contato metal com alguém.

Instintivamente, a raposa olhou na mesma direção, no exato momento em que a sombra da faca erguia-se no ar, para em seguida descer velozmente em direção ao peito de seu pequeno Youkai. Sem hesitar um momento, correu na tentativa de evitar o pior.

 “NÃO!... HIEI!!!”

Era a atitude que Mukuro estava esperando ansiosamente. Planejara aquela noite por várias semanas, prevendo várias situações, e esta era uma delas.

“AGORA!!!”, deu o sinal para os demônios que estavam escondidos nos galhos das árvores que circundavam o cativeiro de Hiei.

O Youko conseguiu desviar de dois demônios que pularam para cima dele, mas eram apenas distrações... O barulho de correntes sendo lançadas de diversas direções fizeram-no saltar para cima, na tentativa de escapar da armadilha, porém, de cima de duas árvores, mais quatro correntes foram lançadas em sua direção e não conseguiu desviar-se a tempo... Seus braços e pernas foram acorrentados antes que tocasse o solo novamente.

Olhou na direção do cativeiro de Hiei, mas o campo energético fora erguido novamente, impedindo sua visão. Erguendo-se com dificuldade, tentou libertar-se das correntes, quando mais uma agarrou-lhe o pescoço, sufocando-o até que parasse de lutar. Encarou a mulher que observava toda a cena com um leve sorriso nos lábios, nos olhos dourados ainda brilhavam o ódio e a coragem...... Não... Não se entregaria facilmente... Precisava vencê-la, por ele e por Hiei!

Mukuro caminhou até uma pedra, onde uma longa espada repousava... Sua lâmina brilhava, refletindo os raios da Lua Cheia.

 “Prendam-no sobre o Altar. Está quase na hora...”

Nem os cinco demônios que seguravam firmemente as correntes conseguiram levar o Youko até o Altar com facilidade. A raposa tentava escapar de todas as formas, seus cabelos agitando-se contra o vento, balançando no ar, enquanto forçava as correntes que o prendiam nos pulsos, tornozelos e pescoço.

Mas todo o esforço fora inútil. Em pouco tempo estava deitado sobre a fria pedra que servia de Altar de Sacrifícios. Seus pulsos e tornozelos presos firmemente nas argolas de ferro que ladeavam os cantos. Apenas a corrente de seu pescoço fora retirada. Claro... Era a parte que mais interessava à Mukuro.

Ouviu os passos da mulher subindo a escada que circundava o Altar. Ao visualizar a espada na mão direita, teve ímpetos de arrebentar as correntes e fugir, era o instinto de raposa. Mas não podia: eles tinham Hiei.

Hiei... Seu Demônio do Fogo. Viu o rosto dele em sua mente: seu semblante sério, os olhos cheios de amor...

O vulto sombrio pareceu flutuar na escuridão, dirigindo-se até ele. O Youko sustentou seu olhar. Forçou-se a respirar fundo, devagar... Calma! Controle-se! Só terá uma chance, por isso não pode errar!, dizia a si mesmo.

“Mesmo que me mate, nunca terá Hiei como deseja, Mukuro.”, disse tranqüilamente, como se não estivesse a poucos centímetros da lâmina de dividia o instante entre a vida e a morte.

“Pode ser que tenha razão. Posso nunca vir a tê-lo, mas ele também nunca terá o que mais deseja... No final, estaremos sempre ligados pelo mesmo sofrimento: perder definitivamente alguém que se ama.”, Olhando para o céu, percebeu que a Lua atingia o ponto máximo, bem acima deles. “Está na hora. Vamos começar a cerimônia!”

As fogueiras tornaram-se mais vivas, refletindo-se no mármore negro do Altar. Um cântico terrificante preencheu a noite. A melodia hipnótica tentava entrar pelos ouvidos do Youko para invadir-lhe o corpo e amortecer a violenta revolta.

Mukuro recuou um pouco, erguendo a espada, enquanto a outra mão agarrava os cabelos prateados, puxando-lhe a cabeça para trás, expondo o pescoço retilíneo. Por um instante, Kurama sentiu-se enfraquecer...

“Força!”, a palavra passou-lhe pela mente, dita por uma voz conhecida, aplacou o receio e fez seus olhos encararem a mulher que preparava para matá-lo.

“Não!”, conseguiu falar, mas não conseguiu se mexer para fugir, como queria. Seus olhos vasculharam ao redor, mas os demônios os rodeavam logo abaixo, aos pés das escadas que circulavam o Altar. A raiva de estar ali, preso como um animal, transformou-se em fúria que cresceu em ondas vigorosas.

 “Eu venci!”, falou a mulher com olhar triunfante.

 “Ainda não! Nunca vai me vencer!”, a voz fria e controlada a contradisse.

“Kurama”, sussurrou a voz em sua mente, a voz de Hiei, profunda, forte e protetora. “Resista! Lembre-se quem você é, kitsune. O que você é. Um demônio, um Youko como seus ancestrais, com poderes para combater e vencer qualquer inimigo, visível ou não. É mais forte e esperto que qualquer um deles!”

Num instante, a raposa reviu a casa na clareira da floresta, as plantas que a rodeiam. Tudo produzido pelo seu poder. Seu you-ki. Reviu suas lutas, do passado e do presente, não importava a forma que tivesse, sua energia era mais forte do que qualquer uma dali. Era um espírito antigo. Um Youko!

Uma onda maior que a fúria o fez queimar uma grande quantidade de energia, arrebentando as argolas de ferro que prendiam as correntes de seus pulsos. Empurrou Mukuro pelos ombros, fazendo-a largar, surpresa, seus cabelos; dando-lhe um pouco de tempo pra tentar soltar os tornozelos.

“Segurem-no!”, gritou a mulher, não querendo pensar na possibilidade de estar perdendo novamente para aquela raposa. O ódio que brilhava em seus olhos garantiam que não aceitaria tal fato sem lutar. Um relâmpago prateado rompeu a escuridão quando ela ergueu a espada.

O Youko debateu-se, conseguindo soltar um dos tornozelos, porém não tendo tempo para usar seu rosewhip, pensou rápido: girando a corrente que ainda estava pendurada em seu pulso, acertou a argola de ferro na têmpora da mulher, que vacilou, errando o golpe, enquanto um fio de sangue descia-lhe pela face.

Praguejando, ela partiu para cima da raposa, disposta a uma luta corporal, preparou um soco, que mais uma vez foi repelido pelo Youko, usando a corrente novamente para prender-lhe a mão, enquanto tentava soltar o outro tornozelo desesperadamente. Livre, seus movimentos seriam muito mais ágeis.

“Força!”, murmurou a voz de Hiei na mente do Youko, dando-lhe a energia necessária para, num puxão, arrebentar a ultima corrente, ao mesmo tempo que num impulso, colocava-se em pé sobre o mármore negro, arrastando a mulher consigo, uma vez que continuava presa por uma das mãos entre as correntes dos pulsos da raposa. Ele tentava imobilizar Mukuro totalmente, quando uma pedra, lançada provavelmente por algum demônio atingiu sua cabeça, deixando-o zonzo.

Uma explosão ressoou, vibrante como um trovão cessando o cântico dos demônios.

 “Kurama!”

Dessa vez a voz de Hiei era real e fez a raposa abrir os olhos, apesar da dor e do esforço de manter a mulher presa junto a ele.

Kurama e Mukuro olharam para a fenda que Hiei, machucado, sangrando, mal se mantendo de pé, abria entre os demônios, suas chamas queimando tudo ao redor.

“Prendam-no!”, comandou Mukuro. Um grupo de demônios dirigindo-se para Hiei.

 “Não!”, disse o Youko, avançando prá cima da mulher. “Deixe-o em paz!”

“Eu vou acabar com você!”, gritou Mukuro de volta, pegando a espada caída ao lado e num gesto rápido, cortando a corrente. “Morra!”, avançou para ele coma espada erguida.

“Nunca!”, respondeu o Youko  firmemente. “HIEI!”, gritou ao mesmo tempo que queimava sua energia, explodindo como num arco-íris de cores, enquanto mergulhava a mão direita na terra, evocando o poder das sementes que cresceram ao seu comando... As mesmas sementes que espalhara com seus cabelos dançando ao sabor do vento, no momento que era arrastado para o Altar pelos demônios que o acorrentaram.

 Então desencadeou-se o inferno.

Por entre as plantas que atingiam o céu numa dança de coreografia de morte anunciada; chamas saltaram, altas e fortes; e Mukuro recuou, tamanha a força que circundava-a... Sob seus pés, uma das plantas de Kurama ameaçou prendê-la, obrigando-a a saltar  muito alto. Foi quando percebeu que caíra numa armadilha ao ouvir a voz do demônio de Fogo gritar em suas últimas forças:

 “ENSATSU KOKURYUUHA!!!”

Do meio das chamas que ardiam entre as árvores do Makai, o belo Dragão Negro surgiu, imponente, em direção à mulher. Reunindo toda sua energia nas mãos, ela conseguiu segurá-lo, mas antes que pudesse confirmar a vitória, uma sombra prateada saltou de dentro do Dragão, numa das mãos, a espada que usara para tentar matá-lo, em um rápido golpe, sentiu a lâmina trespassá-la de uma vez, bem no coração. Sim. Um golpe perfeito. Como todos os golpes do Youko.

As chamas negras desvaneceram ao redor e os olhos de ambos encontraram-se: os da mulher em muda revolta pela derrota, os do Youko em ódio frio e dourado. Os pés de ambos tocaram o chão, unidos ainda pela espada no coração da mulher-demônio. Então, ela sorriu, um sorriso pálido:

“Você me mata... mas a vitória final é minha... No último golpe, ele esgotou suas últimas forças e jaz morto entre as chamas... Eu o perdi para você, e no fim venci!”, ela sussurrou encarando-o firmemente.

“Não pode perder o que nunca possuiu.”, retrucou o Youko em voz baixa e sedosa. “Morra!”, sussurrou friamente.

Puxou a espada com a mão esquerda, enquanto o chicote de rosa retalhava o corpo da mulher, completamente, num mórbido e belo espetáculo de sangue e pétalas.

O Youko observou a cabeça da mulher, caída meio de lado, os olhos já sem nenhum brilho de vida.

“Eu a matei por mim e por Hiei. Essa foi a minha Promessa.”, murmurou enquanto num golpe, fincava a espada no chão, ao lado do corpo desfalecido coberto de rosas ensangüentadas; como uma epígrafe a quem ousara desafiar a ira de Kurama Youko. Com um último olhar de gélido desprezo, o Youko voltou-se, os longos cabelos prateados agitados pelo vento que soprava levando todas as lembranças daquela noite de Promessas e Sacrifício.

Olhou para o local em que Hiei aparecera e viu cadáveres em brasas. Com um vazio no peito, caminhou lentamente naquela direção. O fogo crepitava, agora em poucos lugares, tudo voltando ao silêncio misterioso que cercava o Makai... E Hiei...

Morto. A voz de Mukuro ecoou na mente dele. Perdera seu Demônio do Fogo para sempre. Não podia aceitar tal fato... Não agora que estava livre daquela mulher... Que ambos estavam livres...

“Kurama...”

A voz soou clara e o Demônio do Fogo pareceu materializar-se da fumaça e das chamas que ainda ardiam por ali, cambaleando na direção dele.

“Hiei! Por Inari, Hiei!”, correu ao encontro do pequeno youkai, amparou-o, mas o corpo do koorime cedeu, deslizando até o chão.

Ambos encaravam-se, como que para ter certeza que finalmente estavam juntos. Aos poucos Kurama foi percebendo que seu corpo mudava lentamente: os fios de cabelo agitados pelo vento adquiriam a cor do fogo flamejante, os olhos perdiam o formato oblíquo para o arredondado, bem como o brilho dourado cedia espaço ao lacrimejante tom das esmeraldas... O Youko voltava para seu interior, ao passado, trazendo o presente e o corpo de Shuuichi Minamino de volta. Hiei observava-o extasiado... Amava Kurama em qualquer corpo, qualquer forma...

“Pensei que você estivesse morto!”, a raposa chorava, acariciando o rosto torturado de seu koorime., “Pensei...”

“Não... Eu disse que não o deixaria.”, a voz do youkai era um sussurro de dor. “Eu prometi, kitsune.”

 Kurama viu sangue nas mãos de Hiei.

“Você está ferido...”, então viu os dois ferimentos no peito, que mal o deixavam respirar. Abraçou-o e apoiou a cabeça dele em seu colo. Uma fina linha de sangue desceu-lhe pelo queixo quando ele falou:

 “Kurama...”, seus olhos insistiam em se fechar. “Você está vivo...”

 “Sim, itoshii, graças a você.”

 O peito dele arquejava:

“É tudo... que eu sempre quis.”, o rosto se contraiu e Kurama sentiu a dor como se fosse dele. “Acabou...”

“Não, não acabou, Hiei!”, rasgou um pedaço da roupa que usava e procurou estancar o sangue. “Vou levá-lo para o Nigenkai. Eu e Yukina vamos salvá-lo. Ainda não acabou!”

 “Dói muito...”

“Eu sei.”, Kurama sufocava o choro, sabendo que chorar não adiantava. Se não fizesse algo, qualquer coisa, ele morreria. “Posso sentir a dor que o atormenta, itoshii. Concentre-se. Deixe-me senti-la toda, assim você sofrerá menos, talvez possamos ganhar tempo até chegar a um lugar onde possa cuidar de você.”

 “Não.”, o youkai arquejou, “É tarde demais...”

“Não, não é... Deixe-me sofrer por você, koibito. Não suporto isso, vou tirar a dor de você, toda ela!”

 “A dor é boa...”

Um estremecimento sacudiu o corpo dele e Kurama abraçou-o com mais força, absorvendo o sofrimento como o fogo consome a madeira. Seu peito ardeu, a garganta ficou em fogo, teve vontade de soltar-se, de fechar os olhos... Mas não o fez. Forçou-se a respirar profundamente e o manteve junto de si.

 “A dor nada tem de boa.” Suspirou.

 “Prá mim é boa, Kurama... Quase manchei minhas mãos com seu sangue...”

 “Não por sua culpa, Hiei! Você também foi vítima.”

“Vítima voluntária... no fim. Eu cedi... Lembra-se?”, os olhos de rubi fecharam-se como se não suportassem fitar os de esmeraldas. “Fraco demais para resistir, para resistir a você... O pior é que... não me arrependi...”,a voz dele falhou, “Meu lado obscuro assumiu o controle... mas...era eu. Eu possuí você...”, os lábios dele contorceram-se de dor.

 “Não fale, itoshii...”, pediu e seus olhos nublaram-se de lágrimas.

 Quando conseguiu enxergar de novo, o pequeno youkai o fitava:

“Kitsune... Você me deu a paz que eu não conhecia. Um dia vamos nos encontrar em outro lugar e então terei o direito de te amar completamente...”

 Os olhos dele fecharam-se e a lua, as estrelas, tudo desapareceu para Kurama.

 “NÃÃÃÃOOOO!”

O grito angustiado de Kurama foi levado pelo vento. Ergueu o rosto para o céu e ofereceu sua vida pela de Hiei. Fitou a lua, como se aspirasse pela luminosidade prateada. Uma sensação estranha começou-lhe nas mãos e foi se alastrando pelo corpo inteiro, tornando-o mais vivo e radiante do que nunca. A vida vibrava nele; então abraçou seu koorime com toda força, tomando-lhe a mão esquerda com a sua, entrelaçando-lhe os dedos, unindo os pulsos que lembravam com marcas, a união de ambos.

“Por favor.”, soluçou, apertando-o contra o peito, como que numa oração, um mantra, que vinha da alma: “Ai shiteru, Hiei! Eu te amo! Você prometeu! Não me deixe... não me deixe sozinho... Volte prá mim... Volte prá mim, itoshii!”

De súbito o veludo negro do céu pareceu romper-se com um rumor surdo e Kurama sentiu no rosto uma chuva morna, suave. As gotas eram como um elixir revigorante, que extinguiam o fogo ao redor, que levava para longe o mal, a morte, a destruição.

Lágrimas da lua pelos seus dois filhos perdidos e solitários, os filhos que tinham lutado contra as trevas e encontrado um ao outro... reconhecendo-se um no outro... completando-se mutuamente... amando-se completamente.

 A chuva parou. A lua desapareceu atrás das nuvens e a noite acabou.

 E Kurama sentiu o fraco bater de um coração, junto ao seu...
 

 



Continua