Boas Lembranças


Escrito e Traduzido por Morgan D.
Parte II

Num sobressalto, Youko Kurama arregalou seus olhos dourados, agachando-se em seu esconderijo atrás dos arbustos de espinhos, e sacudiu a cabeça, expulsando a sonolência. Por que eu estou tão cansado? Assim não dá, eu quase cochilei no meio de uma caçada! Felizmente, sua presa não tinha desaparecido naquele momento de distração.

Ele apoiou a mão no solo à frente dele, equilibrando melhor seu peso sobre as pernas, pronto para dar o bote assim que o coelho do Makai se aproximasse um pouquinho mais. O vistoso animal mastigava algumas folhas a alguns metros de distância, o macio pêlo cinza esverdeado ondulando contente, longas orelhas pretas agitando-se em movimentos rápidos e nervosos. Parecia saber que seus dentes afiados e minúsculas garras não o salvariam de um predador maior e mais esperto.

Silenciosamente, Kurama esperou até que o pequeno coelho chegasse mais perto, avaliando a carne gorda de seu lombo, percorrendo mentalmente a lista de possíveis ervas e temperos que combinariam com aquela carne forte e salgada. Sua boca salivava de expectativa, e ele teve de suprimir um suspiro frustrado quando o bicho afastou-se um pouco, indo agarrar uma folha num arbusto mais distante.

Talvez seja hora de mudar de estratégia, Kurama sorriu, pensando em usar seu ki para fazer com que os galhos do arbusto crescessem e emboscassem o coelho. Ele não se divertiria tanto quanto o fizera até agora, espreitando sua presa e simplesmente seguindo seus instintos de kitsune. Kurama via a caçada como mais do que uma necessidade diária. Havia naquilo um ritual sagrado que exigia treino e paciência, e oferecia um contato sublime com Inari e as forças da natureza. Mas eu vou ter de comer em algum momento...

Ele sentiu a golfada de youki um milésimo de segundo antes do borrão negro cruzar seu campo de visão. Um baque surdo e um tilintar metálico se espatifaram no chão bem à sua frente quando uma pequena forma, pouco maior que o coelho do Makai, caiu esmagando o arbusto.

Kurama deu um grunhido. De onde veio essa coisa? Por que eu não senti o youki antes?

Não havia tempo para buscar essas respostas se ele ainda tinha alguma intenção de apanhar o seu jantar. Ele pulou sobre aquela estranha coisa negra junto aos seus pés, flexionando músculos vigorosos, arqueando sua figura esguia pelo ar, cravando as unhas no pêlo e na carne tenra, fazendo jorrar grossos jatos de sangue. O fim veio rápido demais para o gosto de Kurama — pareceu algo anticlimático. Você deu o melhor de si, cumprimentou Kurama. Mas eu estou faminto.

Ele se levantou, pendurando o coelho morto sobre seu ombro esquerdo, sorrindo para si mesmo. Seu jantar quase lhe tinha escapado, afugentado por aquela súbita e barulhenta intervenção. Kurama não apreciava ter seu ritual de caçada perturbado; um ser civilizado não teria se atrevido a interferir num momento tão precioso. Ele se virou para o arbusto, curioso.

"Me devolve," gritou o arbusto numa voz rouca e aguda.

O Youko quase deu um pulo. Ele havia pensado que tinha competido pelo coelho com um animal predador com algum youki, ou algum demônio irracional de classe inferior. Que diabos...?

Uma pequena figura imunda ergueu-se da folhagem, e Kurama perguntou-se por que ele não sentia mais nenhum ki. Tratava-se de um demônio inacreditavelmente baixo, vestindo trapos sujos e úmidos, uma corda vulgar segurando calças ridiculamente grandes no lugar. Um pano esverdeado cobria a cabeça, amarrado bem apertado com um nó atrás da orelha esquerda. Ao redor de seu pescoço havia um fino cordão feito de tecido, provavelmente carregando algum tipo de pingente que desaparecia atrás de um trapo carmim desbotado que fazia as vezes de camisa. Diminutos pés descalços com grossos anéis de metal cercando os calcanhares mantinham aquele corpo esquelético sobre a ponta dos dedos, tentando bravamente dar-lhe uma aparência mais alta, larga e ameaçadora, e mesmo assim mal alcançando o joelho de Kurama.

"Dá meu coelho," repetiu a pequena criatura.

O Youko arqueou uma sobrancelha, suas orelhas peludas agitando-se divertidas. "Seu coelho?"

"Tô caçando faz horas," queixou-se o demônio anão. "Presa minha."

Horas? Não podia ser verdade. O Youko tinha estado ali por um bocado de tempo também. Ou o pigmeu estava exagerando no relato de seus esforços, ou Kurama falhou vergonhosamente em detectar a energia demoníaca de um estranho tão próximo. "Seja mais rápido da próxima vez, anão," argumentou Kurama. "Você não teria apanhado ele mesmo que eu não estivesse aqui." Que criatura patética...

Kurama virou-se para ir embora, quando sentiu o mesmo fluxo de youki explodindo à suas costas. Girando para encarar o anão outra vez, o Youko adotou uma postura defensiva, indagando-se como aquele demônio débil e miserável com o ki falhando podia imaginar ser capaz de apresentar qualquer ameaça para ele.

Mas a reação veio tarde demais, pois uma pedra do tamanho de um punho chocou-se contra o rosto de Kurama.

O anão forçou um sorriso. "Me dá, seu bosta," disse aquela voz estranha, tons estridentes manchados por uma profunda rouquidão.

Kurama roçou dedos esguios por sua bochecha ferida. A pedrada tinha provocado um sangramento. "Você está tão ansioso pra morrer assim, anão?" sibilou o Youko, oferecendo ao outro um sorriso apertado.

"Meu coelho!" gritou o youkai.

Kurama fingiu examinar o pêlo embaraçado da carcaça. "Se o seu nome estiver escrito aqui em algum lugar, eu dou ele pra você. Qual é o seu nome, pigmeu?"

O anão estremeceu, mordendo o lábio inferior com força. Ele ficou muito quieto, olhando com raiva para o Youko imponente, todos os seus membros visivelmente rígidos numa tensão dolorosa.

Kurama largou a carcaça no chão ao lado de seus pés. "Se você quer ele tanto assim, vem cá pegar."

O youkai não se moveu de forma alguma, duro como uma estátua, aparentemente despreocupado com a postura, o corpo maior e mais forte, ou o ki mais estável de Kurama. Seu pequeno rosto sujo permanecia completamente inexpressivo, como se intocado por qualquer emoção. Mesmo a sua respiração havia se reduzido a um ritmo lento e preocupante, o tecido de sua camisa levantando-se muito de leve quando ele inspirava.

Youko Kurama esperou. Os minutos passavam e o anão não deu nenhum sinal de ataque, e ele perguntou-se se aquela criatura esquisita tinha simplesmente dormido em pé com os olhos abertos. Kurama não percebia nenhum ki vindo dele, nenhum mesmo, mas mesmo com os cinco metros de distância que os separavam, Kurama podia sentir o olhar glacial do outro queimando sua pele.

Esse anão não é perigoso... ele concluiu. Se ele não conseguiu nem apanhar um coelho idiota, ele não é nenhuma ameaça pra mim. Ainda assim Kurama não se sentia tranqüilo. Tinha algo de estranho naquele pigmeu. Em geral raiva e medo aumentavam o ki de um youkai, como um escudo de força pronto para a batalha. Mas esse cara... eu não sinto nada.

Vários minutos se passaram e o demônio ainda se mantinha como uma escultura sem vida, apenas seu olhar fixo e furioso denunciando sua não submissão ante o poderoso Youko. Entretanto, Kurama começava a se cansar daquele jogo. O corte na sua bochecha já havia secado e começado a cicatrizar, e o mesmo acontecia com sua indignação por ter sido tão ingenuamente atacado.

Esse cara não é de nada, ele disse a si mesmo, afastando o nervosismo. Abaixou-se para pegar o coelho, pondo-o de volta sobre o ombro e voltando-se para partir. Em despedida Kurama fungou com desdém, mesmo que muito atento a qualquer mudança na atitude de seu adversário.

O fluxo de youki atingiu os sentidos de Kurama numa velocidade meteórica, colocando-o em alerta. Ele ficou impressionado com a rapidez com a qual o ataque foi executado. Mas desta vez o anão foi lento demais. Com um curto salto para frente, Kurama se esquivou do corpo que se lançava às suas costas.

Contudo, apesar da rápida reação, o Youko foi incapaz de sair totalmente do alcance do youkai, e encontrou-se sendo puxado para trás pelo rabo. A carcassa do coelho caiu no chão a poucos metros de distância.

Voltando-se para encarar o anão, Kurama tentou em vão soltar sua cauda. O pequeno youkai segurava-o dolorosamente apertado, agachado aos seus pés, oferecendo-lhe um sorriso convencido.

"Coelho," foi o pedido lacônico.

Que impertinente! "Solta, pigmeu." Agora que podia ver mais de perto, Kurama percebeu que o estranho demônio tinha olhos vermelhos cor de sangue, assustadoramente profundos e envelhecidos, e todo o tipo de hematomas pelo rosto. Um galo na testa, parcialmente coberto pelo pano verde; um corte fundo no queixo; marcas arroxeadas na bochecha esquerda; lábios inchados. "Você está brincando com o cara errado. Me soltaaaa-- Aaaarrgh!"

Kurama ficou bestificado. O vermezinho miserável me mordeu! O Youko olhou em choque para sua cauda, agora comprimida entre minúsculas presas muito afiadas, finas trilhas de sangue escorrendo pelo queixo do anão.

"Como se atreve?" As palavras gritadas mal puderam ser ouvidas por sob a enlouquecida saraivada de socos com que Kurama puniu o youkai. Em pouquíssimo tempo a cabeça e o corpo do anão eram pouco mais que uma massa de cortes e hematomas, e os punhos de Kurama estavam encharcados com o sangue do outro.

O anão não fez nada para se defender além de erguer os braços num esforço inútil de proteger a cabeça da fúria e força do Youko. Mesmo assim ele não largou da cauda de Kurama, cerrando seus dentes o mais que podia.

Kurama recuou, ainda estapeando e chutando e esmurrando, tomando o cuidado de arrastá-lo para longe do coelho morto. Mas a mordida desesperada do anão não enfraqueceu mesmo ao ser arrastado junto com o Youko.

Mas ao continuar andando para trás, os olhos de Kurama se arregalaram com surpresa. Os pés do youkai lentamente ergueram-se do chão, e ele parecia flutuar no ar, seu corpo tão rijo quanto um pedaço de madeira, alguns palmos acima do solo. O quê?!

Só então Kurama notou o fino cabo de metal conectando os aros ao redor dos tornozelos do anão a uma árvore a doze metros de distância. Era um cabo feito de um material extraordinariamente resistente apesar de sua finura, comumente utilizado por caçadores do Makai para prender seus cães de caça. Melhores que cordas comuns, aquele tipo de correia permitia aos animais correr em sua velocidade máxima sem oferecer aos seus donos qualquer risco de perdê-los.

"Cães de caça" era na verdade uma generalização, já que os caçadores do Makai usavam qualquer tipo de fera irracional, feroz e minimamente domável. Mas era a primeira vez que Kurama via aquele tipo de coleira sendo usada por um youkai.

Sua cauda doía muito agora, não apenas devido à mordida profunda da qual escorria muito sangue, mas também ao esforço de segurar o anão no ar. Kurama estava perplexo com a persistência do demônio. Mesmo surrado à exaustão, com grossas gotas de sangue pingando de sua camiseta carmim, com seus pezinhos imundos dolorosamente inchados e azuis, ele simplesmente não desistia, sustentando seu peso no ar com bravura pelos tornozelos e dentes.

Força bruta não vai funcionar aqui, ele concluiu. Era o momento de tentar uma nova abordagem.

Sem aviso prévio, Kurama pulou sobre o anão, atirando-se no chão junto com ele com um impacto de quebrar costelas. A nuca do youkai chocou-se com força contra o solo rochoso, e ele ergueu seus braços outra vez para proteger o rosto dos socos de Kurama, nunca diminuindo a pressão de suas presas no rabo peludo.

Era a abertura pela qual o Youko estava esperando. Sentando-se sobre o corpo magro, correu seus dedos esguios pelos flancos do demônio... e fez-lhe cócegas.

Os olhos rubros de anão quase pularam fora das órbitas. Ele abaixou os braços para proteger as partes expostas àquele ataque inesperado, mas tudo o que conseguiu foi aprisionar as mãos de Kurama junto à sua carne vulnerável, os dedos ameaçadores ainda capazes de perpetrar aquela horrível tortura. O corpo diminuto contorceu-se, estremeceu, debateu-se em espasmos, desesperadamente tentando escapar às importunas cócegas, mas ainda espremido contra o chão pelo corpo mais pesado do Youko.

E ainda assim, ele agüentou... por cerca de três minutos. Youko Kurama, que se considerava o melhor fazedor de cócegas do Makai, estava quase cedendo à valentia daquele anão esquisito quando enfim sua cauda foi cuspida por aquela boca inchada para abrir espaço para uma gargalhada rouca.

"Pa-pa-pára!" As palavras débeis soaram magoadas e envergonhadas, mesmo envoltas pelo riso convulsivo. "Não! Cê... ahnnn... num pode... não..."

Mas agora Youko Kurama estava se divertindo. Suspendendo seu rabo para longe do alcance do anão, ele continuou as cócegas furiosas até que o pequeno demônio começou a resfolegar angustiado, incapaz de respirar. Só então Kurama agarrou os pulsos do outro e deixou seu próprio peso cair duramente sobre o corpinho franzino, imobilizando-o por completo. A cabeleira prateada caiu sobre eles como um véu, impedindo que o anão visse qualquer coisa além do olhar triunfante sobre ele.

"Você está com sorte, pigmeu. Pelo menos vai ter uma morte feliz."

O anão a duras penas restaurou sua respiração a um ritmo regular, não oferecendo mais que um olhar raivoso como resistência. Kurama engoliu em seco. Apenas alguns centímetros separavam seus rostos e ele podia ver cada arranhão naquele rosto judiado. O anão fedia, suor e sangue espalhavam-se por seu queixo e bochechas, e o Youko sentiu que o tecido fino de suas roupas se encharcava com aquela mesma mistura onde seu corpo tocava o do youkai.

Na sua fúria cega, Kurama havia ferido o outro com gravidade. "Não se preocupe, eu vou acabar com a sua dor," sussurrou, incerto se o dizia ainda por raiva ou por piedade.

"Cê espera o quê, bosta?" desafiou o anão.

"Você está com pressa de morrer, hein?" Kurama franziu a testa. Tão corajoso... mas tão fraco. Ele é bom mascarando seu ki, mas nada além disso.

"Cê fede."

O Youko quase riu. "Eu fedo?! Você parece que passou um ano inteiro num chiqueiro!"

"Dois," o anão corrigiu, indiferente. "Mas cê fede pior. Me mata ou não?"

Kurama hesitou. Dois anos vivendo num chiqueiro? Aprisionado, talvez mesmo usado, como um mero cão de caça? Qualquer Youko ficaria ansioso por morrer depois de uma humilhação dessas. Mas nenhum Youko seria tão pusilânime de se deixar tratar assim... "Estou te fazendo um favor, pigmeu. De que vale viver desse jeito, como um animal?"

Os olhos do anão estavam secos e distantes. Apenas esperando.

"Talvez você tenha mais sorte na sua próxima vida," Kurama sugeriu, assombrado com sua própria sinceridade. Ele se viu desejando sinceramente um destino melhor para aquela criatura ridícula que o tinha desafiado tão insolentemente.

"Vou ter se num cheirar mais seu fedor."

O Youko deu uma risada. "Essa não... você tem culhão, hein?" Ao ver o youkai estremecer, Kurama riu mais alto, soltando uma de suas mãos para apalpar a virilha do anão. "Inseto insignificante, você acha que tem um bocado de culhão, né?

O anão tremeu sob o toque provocante do Youko, mas bem menos do que Kurama esperava. E levou um momento até que Kurama compreendesse que não estava apalpando exatamente o que ele esperava também.

Os olhos vermelhos ainda o fitavam, velhos e gélidos. Mas o rosto que emoldurava aquele olhar cansado não parecia nada velho. Arranhado e batido como estava, aquela pele pálida era macia demais, lisinha demais... a mãozinha que Kurama segurava contra o solo... o jeito esquisito de falar... o tamanho do demônio... e agora a evidência que o Youko sentia através do tecido das largas calças sujas...

Kurama arfou, chocado. "Inari-sama... Você é só um nenê!!!"

Os olhos do garoto se estreitaram, e com a mão livre estapeou a face do Youko com força. "Num sô nenê! Me mata ou não?"

Kurama segurou a mão do outro e pregou-a no chão, tentando imaginar quantos anos a criança teria. Era difícil adivinhar sem saber a que espécie ele pertencia, mas certamente não poderia ter mais que... quatro? Inari... é um nenê mesmo...!

O bebê mais corajoso, vil e forte de que ele já ouvira falar.

"Cala boca, raposa fedida," o garoto rosnou, ameaçador. "Cala boca fedida ou eu... eu..."

"Você o quê, nenê?"

O menino hesitou um pouco, mas logo uma idéia nova iluminou seu rosto com um sorriso travesso. "Faço xixi no seu vestido."

Kurama pestanejou, vendo aquele sorriso largo e desafiador curvando os lábios inchados da criança. O sorriso confiante de alguém que sabia que nunca seria vencido.

O Youko não agüentou mais. Largando do garoto, ele se sentou no chão... e riu. Riu alto e com vontade, até que seu estômago doesse tanto que ele não conseguia mais respirar, e que lágrimas corressem por sua face. "Nenê... você é impagável..." Deitou-se de lado, braços envolvendo a barriga, completamente tomado pela louca gargalhada.

Duramente insultado, o garoto cambaleou em direção ao Youko, machucado demais para ficar em pé direito. "Cê tá pedindo, raposa."

Kurama ergueu os olhos para ver o menininho, brandindo um minúsculo punho no ar... e riu ainda mais forte. "Inari... estou com tanto medo..."

O garoto estava furioso agora. Aproveitando-se da posição do Youko, aproximou-se do traseiro do demônio alto.

Ele chutou a bunda de Kurama com toda a sua força.

O grito de dor e surpresa do Youko ofereceu apenas um breve gosto de vitória ao menino. Logo ele sentiu seu corpinho sendo puxado brutalmente para o colo da raposa de cabelos prateados. "Não abusa da minha paciência, nenê," Kurama avisou. "Eu ainda acho que matar uma criatura patética como você seria um ato de misericórdia."

"Num sô nenê!" o garoto berrou, contorcendo-se numa vã tentativa de se libertar. "Cê fala um monte e num faz nada. Se vai matar, mata."

"Não é um nenê?" o Youko sorriu. "É gente grande? Então deixa eu te dizer uma coisa: se um cara quer morrer, deveria cuidar disso ele mesmo, ao invés de incomodar os outros com seu sangue."

Uma leve sensação de déjà vu beliscou o interior da mente de Kurama. Onde eu ouvi isso antes?

"Se não mata, larga e dá meu coelho!"

"Você sabe quem eu sou, nenê?"

"Uma raposa que fede, fala um monte, age estúpido e roubou meu coelho!"

"Eu sou Youko Kurama."

O anúncio solene fracassou em conseguir qualquer reação do garoto. "Hn. Raposa estúpida."

Mais uma vez a vaga sensação de familiaridade atingiu Kurama. "Sou o mais velho da minha espécie. Eu vivo há tanto tempo, há mais tempo que esta floresta, mais tempo que você poderia imaginar. Eu já era um demônio poderoso no tempo em que Makai e Ningenkai eram um só mundo. Ainda há uma montanha no Mundo dos Homens batizada em minha honra. E você acha que é páreo pra mim, nenê?"

"Posso ser," disse o menino teimoso.

"Qual é o seu nome, nenê?"

Exatamente como antes, a pergunta deixou o menino tenso e sombrio, silenciando suas queixas.

Kurama indicou as algemas prendendo os tornozelos do garoto. "Aqueles que puseram isso em você. Como eles te chamam?"

"Num chamam."

"O quê?"

"Eles dizem, "dê nome prum cão e ele pensa que é alguém." Mas num sô nenê," a criança resmungou.

Que ótima política, pensou Kurama com amargura. "Então você não é ninguém."

O menino olhou com raiva para o Youko, mas não disse nada.

"É isso que você é, nada, ninguém," Kurama repetiu, pondo-se de pé enquanto segurava a criança um metro acima do chão pela parte de trás do colarinho. "É tudo o que você vai ser enquanto viver deste jeito, implorando a estranhos que te libertem da sua vida miserável. Se você é valente o bastante pra me atormentar, então devia ter a garra de tomar a sua vida nas suas mãos e levá-la pra onde você deseja, ao invés de só esperar que a sua correia seja puxada por aí."

Kurama não esperava que um garoto tão jovem entendesse o que ele dizia, mas para sua surpresa seu pequeno agressor ficou quieto e atento, pendendo passivamente da mão do Youko. "Confesso que tenho pena de você," Kurama suspirou. "Que chance você tem no Makai, se não consegue nem apanhar um único coelho depois de horas caçando?"

"Correia maldita me faz cair," o menino grunhiu.

O Youko estava curioso a respeito daquilo. "E quem é o imbecil do seu dono? Amarrando um cão de caça pelos pés?! Você deve tropeçar nesse cabo o tempo todo!"

"Tava no meu pescoço antes. Eles mudaram preu num morrer."

Kurama franziu o cenho, tentando encontrar sentido naquele fragmento de informação. Com a correia ligada a uma coleira, ele poderia se enforcar... Será que ele tinha tentado? Um bebê seriamente considerando o suicídio? "O que você estava pensando, nenê? Achou mesmo que ia conseguir me derrotar? Ou estava esperando algum ato de caridade?"

"Tava cum fome," o menino respondeu com simplicidade. Mas não ofereceu a Kurama grandes olhos lacrimejantes, não fez biquinho, não posou de criancinha indefesa. Cruzou os bracinhos sobre o peito e encarou o Youko com um olhar estranho, muito zeloso de seu orgulho. Decididamente sem esperar nenhum ato de caridade.

"Você ainda tem um longo caminho antes de se equiparar à minha força, nenê bobinho. Quando você aprender a correr mais rápido que o pensamento, a se por de pé com a firmeza e solidez de uma rocha, a invocar youki suficiente para brilhar mais que o sol, a se mover tão silenciosamente quanto uma sombra, então você pode começar a pensar em me desafiar." Ele largou o menino no chão, mais ou menos gentilmente, e afastou-se, movendo-se em direção ao local onde ele deixara a carcassa do coelho.

Examinando sua presa no chão, Kurama pensou em deixá-la para o menino. Se não o animal inteiro, talvez uma pequena porção. As pernas da frente? Eu nunca gostei muito delas mesmo... Mas logo ele descartou a idéia, apanhando o coelho e jogando-o sobre o ombro. "Um dia normal no Makai, nenê," comentou. "Você sai pra caçar e vai pra casa de mãos vazias, porque alguém foi mais esperto, mais rápido e mais forte do que você. Se quer aprender a sobreviver, então aprenda sua lição."

"Te pego, raposa," o menino prometeu. "Cê vai ser minha presa."

Kurama sorriu. "Antes disso, mereça um nome."

"Eu tenho nome," a criança replicou com tristeza, pela primeira vez realmente parecendo uma criança. "Só num gosto."

O Youko deu de ombros. "Então mereça um melhor. Um grande nome para um grande cara," ele acrescentou com um riso abafado.

A atitude do menino recobrou sua aresta afiada instantaneamente, mais uma vez dando-lhe a aparência de um velho anão cruel. "Que nem o seu?" fungou ele.

"Por que não?" Kurama riu. "Quem sabe, se uma coisinha insignificante como você conseguir sobreviver, talvez até merecesse ter o nome de uma montanha... Você poderia se chamar... Arashi. Ou Otowa." Ele deu as costas ao garoto zangado e gargalhou, tomando seu caminho de volta ao seu próprio acampamento. "Que tal Pompon? Kannabe? Takao? Hiei?"

"Hiei?" ecoou a voz rouca e aguda do menino.

A sensação de déjà vu outra vez... agora mais forte e importuna, zumbido dolorosamente dentro de seu crânio. Um assobio guinchante penetrou em seus ouvidos num uivo desesperado, deixando-o nauseado. Kurama fechou os olhos contra o redemoinho tempestuoso de cores líquidas que pareciam jorrar de sua testa, bem de seu centro, causando a pior dor de cabeça que ele já sentira em séculos.

Apesar de tudo, Kurama sentiu as formas em chamas começando lentamente a se solidificar ao seu redor, e sua mente foi envolta numa suave luz cor de âmbar, um delicioso perfume de pinho e cerejas subindo às suas narinas.

A náusea cedeu, e logo ele se viu muito relaxado e aquecido... e protegido. Kurama sorriu. Muito antes de abrir os olhos ele já sabia onde estava.

Deitado em sua cama no Hotel Kubikukuri, sua cabeça aninhada no colo de Hiei.

"Kurama?"

O chamado soou tão suave... tão diferente da voz do nenê... Sentindo-se cansado e confortável, o Youko não se moveu.

"Kurama, eu sei que você está acordado."

"Hiei..."

A náusea retornou. E desta vez não tinha nada a ver com os efeitos colaterais do uso do Jagan. "Hiei?"

Abrindo os olhos, ele encarou o rosto do Demônio de Fogo... e contraiu todos os seus músculos. "Inari-sama... eu... eu não tinha intenção..."

"Você está pronto pra se sentar direito de novo, ou só agora começou a se sentir confortável?"

O tom de Hiei era seco, mas não totalmente hostil. Compreendendo que ainda estava deitado no colo do youkai, Kurama rolou para fora da cama, combatendo uma onda de tontura quando se pôs de pé. "Era você?"

"Hn."

Kurama tentou encontrar as feições do garoto no rosto familiar de seu amigo, e logo pequenas similaridades começaram a formar um quadro horrendo em sua mente. Os olhos cor de rubi, profundos e envelhecidos; o narizinho arrebitado; o pescoço esguio; as sobrancelhas finas e expressivas.

Corajoso, vil e forte.

Hiei.

"Eu lembrava do menino," Kurama contou-lhe. "Nunca esqueci aquele dia. Mas não te reconheci. Você estava com aquele pano verde cobrindo o cabelo... e a marca do seu ki..."

"...mudou depois do implante do Jagan," o youkai informou-o. "Você mudou muito mais do que eu, na verdade."

O ruivo não sabia o que dizer. "Você sempre soube que era eu... o mesmo que... quer dizer..."

Hiei sacudiu a cabeça. "Não de verdade. Quando vim para o Ningenkai eu ouvi falar desse cara chamado Kurama que disfarçava sua identidade demoníaca sob aparência humana e que agia na área do Yatsude. Eu estava mais ou menos esperando o mesmo Youko miserável... Estava ansioso pela chance de mostrar a ele o quanto eu cresci."

Kurama se sentiu péssimo. E quando teve de se conter para não fazer piada sobre o crescimento de Hiei, sentiu-se pior ainda. Que tipo de monstro eu sou?

"Então eu te segui," o youkai continuou, esticando as pernas na cama e brincando com o pente de Kurama. "Se você fosse aquele Youko, seria interessante te ver de novo. E se você fosse capanga do Yatsude e tivesse algo a ver com o desaparecimento da Yukina, melhor ainda."

Não me admira que ele tenha pulado em cima de mim com tanta raiva, lembrou Kurama.

"Mas então eu achei isto," Hiei continuou, deslizando um dedo por um dos longos fios de cabelo vermelho que havia ficado preso nos dentes do pente. "E nem era longo assim naquela época. Você estava completamente diferente, um menino bonito da minha altura, com cabelo vermelho e enormes olhos tristes. Seu ki mudou também. E você não me reconheceu. Então só tive certeza quando eu te vi aqui, quando a kekkai do Uraura Shima baixou. Tinha só uma coisa igual entre você e o Youko que eu conheci."

"O quê?"

"Você ainda me trata como um igual, de um jeito esquisito."

Kurama quase engasgou. "Um igual?!" Inari... o que eu fiz com ele...

"De um jeito esquisito," Hiei repetiu com um sorriso de lado.

"E você diz que eu sou doido!"

O youkai riu. "Tá, eu admito que você foi um pouco bruto demais pra que eu tivesse boas lembranças de você," Hiei piscou.

O ruivo fitou o demônio que ria à sua frente, surpreso em vê-lo tão relaxado. "Você é doido, Jaganshi..."

"Kurama, quando eu te ataquei aqui no Ningenkai, por que você usou aquela folha como espada pra me enfrentar?"

O Youko deu de ombros, sentando-se de volta na cama. "Você apareceu com uma katana, então..."

"Cai na real, Kurama! Se você vai me dar uma desculpa esfarrapada, pelo menos dê uma que te convença primeiro."

Kurama dobrou as pernas junto ao peito, usando o movimento para ganhar algum tempo para pensar. "Não sei se consigo te dar uma melhor. Foi meio instintivo. Eu vi a katana vindo na minha direção, então invoquei aquela folha."

"Não me diga que o grande Kurama não tinha nenhum plano brilhante em mente..."

"Nenhum. A não ser te atrair pra longe das áreas populosas..."

"... e da sua namorada," Hiei acrescentou com um sorriso traiçoeiro.

"E da Maya," Kurama confirmou, não se incomodando em corrigir a suposição do youkai. "Eu não sabia quem você era. Eu tinha que descobrir."

"Então você manteve suas habilidades no meu nível até que conseguisse suas respostas."

"Eu já te falei, Hiei, eu não venci. Este corpo era jovem demais pra invocar meu ki direito. Se você não estivesse ferido... Aliás, quem foi que te feriu daquele jeito? Eu sei que não fui eu. Eu mal conseguia chegar perto de você na velocidade em que você se estava se movendo."

"O filho da puta que me falou sobre você."

"Quem?"

"Hedoki."

Kurama ficou boquiaberto. "Hedoki? Mas era ele quem trabalhava pro Yatsude."

"Eu sei disso agora," o youkai gemeu.

O Youko balançou a cabeça em aflição. "Aquilo foi tão estúpido, Hiei! Por que não esperou até ficar curado antes de me atacar?"

"Precisa realmente perguntar?" Hiei fungou.

Não. Kurama entendia perfeitamente por que Hiei não poderia ter esperado. Na época o youkai temia que Yatsude tivesse feito de Yukina uma de suas vítimas... e o desgraçado costumava devorar suas vítimas vivas. "Mesmo assim... foi imprudente da sua parte," o ruivo resmungou.

O Jaganshi deu aquele sorriso de lado de novo. "Está com medo de que talvez você tivesse me matado?"

"Você é quem devia ter ficado com medo," Kurama replicou.

"Não tinha por quê. Você nunca usa mais poder pra derrotar um inimigo que o estritamente necessário." A essência das belas e pouco práticas lutas de Kurama. "Isso não mudou daquele Youko que eu conheci."

Kurama sentiu um sabor amargo de culpa formando-se em sua garganta. "Eu usei muito mais do que o estritamente necessário... daquela vez." O pobre garotinho... seu rostinho machucado fuzilando-o com o olhar... seus bracinhos tentando proteger o corpinho franzino dos murros de um Youko cinco vezes maior... Se Kaasan um dia souber que eu fiz algo tão cruel, ela nunca mais vai me olhar na cara...

"Kurama?"

"Quê?"

"Por que você não usou as suas plantas?"

"Você diz... aquela primeira vez no Makai?"

Hiei assentiu com a cabeça. "Não foi uma luta bonita... socos e cócegas..."

Ah não... As cócegas. Se Kurama conhecia seu amigo tão bem quanto imaginava, seu orgulho se despedaçara em pó ao ser derrotado por cócegas.

"Você podia ter se livrado de mim tão mais rápido e com muito mais classe com uma de suas plantas," Hiei confessou.

O ruivo mordeu o lábio. Lembrava-se de ter se perguntado a mesma coisa enquanto cozinhava o coelho aquela noite. "Não sei. Eu estava com tanta raiva. Não conseguia acreditar no que você fez, jogando pedras, mordendo minha cauda... Eu queria te destruir com as minhas mãos."

Hiei inclinou a cabeça para o lado. "Você mudou bastante. Nunca te vi tão furioso depois daquilo. Nem mesmo quando Roto ameaçou matar a sua mãe."

"Eu não era assim naquela época também," Kurama murmurou. "Eu nunca fui assim. Não sei o que me deu, quando você mordeu minha cauda, minha temperatura subiu cem graus, eu só vi vermelho na frente, comecei até a salivar... Eu queria te cortar em mil pedacinhos."

O Demônio de Fogo sorriu orgulhoso. "Obrigado."

O Youko levantou-se, puxando o cabelo úmido para trás, visivelmente chateado. "Hiei, me desculpa."

"Por quê? Você disse que se lembrava daquele encontro."

"Bom, sim, mas..."

"Você se sentia culpado a respeito antes?"

Relutantemente, Kurama admitiu que nunca havia parado para pensar muito sobre aquilo até o momento. Baixou os olhos, a única resposta que conseguiu dar.

"Um dia normal no Makai," Hiei deu de ombros. "Tive piores. Aposto que você também."

A única diferença é que agora eu sei que era você. Kurama olhou através da ampla janela, tentando visualizar todas as possibilidades, se ele pudesse voltar no tempo e mudar o passado...

Hiei pareceu ter lido seus pensamentos. "Está feito, Kurama. Não importa mais."

"Como pode dizer uma coisa dessas?"

"A gente queria a mesma coisa. Nós lutamos. Você venceu. O que mais você podia ter feito?"

"Eu podia ter te libertado," exclamou Kurama. "Te alimentado. Te curado, te limpado. Te dado uma chance."

"Você me deu uma chance," Hiei sorriu. "Uma melhor do que se você tivesse apenas tido pena de mim."

Kurama sabia o que o Demônio de Fogo queria dizer. Hiei era um sobrevivente. Talvez nunca tivesse se tornado tão forte se tivesse sido adotado por um Youko misericordioso. "Mesmo assim... eu devia pelo menos ter te deixado o coelho."

"Ai, pára com essa moralidade humana imbecil!" o youkai protestou, zangado. "Era por isso que eu não queria te contar. Sabia que você ia começar a me olhar desse jeito."

"Que jeito?"

"O jeito como você olha pra um mendigo na rua. É doentio."

"Hiei..."

"Eu por acaso pareço um mendigo? Pareço com alguém que merece pena?"

"Não."

"Então pára com essa bobagem de o que você devia ou não devia ter feito," disse Hiei. "Honestamente, Kurama, se pudéssemos voltar no tempo, eu desejaria que você fizesse exatamente o mesmo."

E só agora o Youko entendeu a nota de agradecimento por trás da atitude do pequeno demônio. Eu te batizei. Em mais de um sentido. Kurama precisaria de tempo para aceitar a idéia, para encontrar uma maneira de lidar com aquela questão e com a imagem feia que fazia de si mesmo no momento. Hiei... você construiu o guerreiro chamado Hiei... por minha causa.

O ruivo sentou-se no espaldar da janela baixa, esfregando as mãos nos joelhos num gesto nervoso. "Não dá pra acreditar que você esteja tão tranqüilo. Você disse que queria me mostrar o quanto cresceu."

"E mostrei."

Verdade. Aquele bebezinho frágil certamente enfrentara muita coisa até se tornar o Mestre do Dragão Negro que Kurama conhecia. "E isso é o bastante pra você?"

"Se lutarmos de novo, você não vai zombar de mim," disse o youkai, vindo se colocar diante de seu amigo. "E terá de usar toda a sua força na batalha pra me enfrentar como um igual. Deve ser uma idéia desconfortável pra você."

Como estavam, os dois tinham aproximadamente a mesma altura. "É, sim."

"Então estou satisfeito. Por enquanto," Hiei acrescentou após uma pausa.

Incapaz de guardar rancor, mesmo quando deveria, meditou o ruivo. Você mereceu seu nome e meu respeito... mas... "Eu ainda estou em dívida com você."

Os olhos de Hiei mergulharam fundo nas íris esmeralda de Kurama. "Sem dívida," ele proclamou com suavidade. "Sem compensações. Sem revanches."

Kurama sorriu com amargura.

Mas Hiei não tinha acabado. Chegando tão perto do Youko que seus narizes ficaram a dois centímetros de se tocarem, murmurou, "Sem arrependimentos."

A tempestade de areia passara. E entre os dois amigos não havia mais nenhuma porta, apenas uma passagem totalmente desimpedida. A pergunta agora era, será que um dos dois teria coragem de atravessar?

Kurama estava ainda testando a firmeza do piso. Abrindo os braços, trouxe o Demônio de Fogo para um abraço forte e caloroso.

E pelos anos que se seguiram, Kurama perguntar-se-ia se aquele teria sido o maior erro que já cometera em todas as suas vidas.

Hiei respondeu ao abraço imediatamente, deixando seus braços envolverem o corpo maior numa preguiçosa carícia em espiral. Apoiando a face no ombro de Kurama, fechou cada milímetro entre seus peitos, embrulhando a ambos na sua aura tépida.

O Youko entrou em pânico. O abraço de Hiei era fluido e apaixonado, como uma onda de água quente e perfumada. O pequeno demônio não parecia ter nenhum osso! A sensação gostosa de ser abraçado e protegido, o aroma de pinho e cerejas do cabelo negro espetado... Kurama lembrou-se daquelas manhãs frias de inverno em que sua cama parecia tão quente e confortável, e os lençóis e cobertores se enrolavam nele de um jeito tão delicioso que era como se não quisessem que ele se levantasse...

Abraçar Hiei era ainda melhor.

Kurama sentiu que se tocavam em toda parte. E sua resposta para uma carícia dessas só poderia ser uma.

Ah não... agora não!

Se Hiei percebeu o volume rijo crescendo entre eles ¾ e era difícil crer que ele não notasse, colado em Kurama como estava ¾ ele não deu nenhum sinal. Apenas ficou ali, respirando suavemente, seu youki fluindo agradavelmente do seu corpo para o de seu amigo.

"Hiei...?"

"Há uma coisa boa nisso tudo, sabe?"

O Youko engoliu em seco. "O quê?"

"Você cheira muito melhor agora."

Kurama inspirou profundamente. "Você também."

Ficaram se abraçando em silêncio, os minutos navegando à deriva naquela dimensão particular em que estavam. O ruivo lembrou a promessa solene do menino, "Te pego, raposa. Cê vai ser minha presa."

Era isso que você tinha em mente? Kurama estava morrendo de vontade de pôr aquele demoninho no bolso e levá-lo para casa, e descobrir exatamente o quanto ele tinha crescido. Você é doente, Youko.

Mas ainda assim ele não queria perturbar aquele raro momento, e sentiu-se terrivelmente desapontado ao ouvir a voz de Keiko vindo do quarto ao lado, gritando numa vã tentativa de acordar Yusuke e Kuwabara para que se juntassem a ela e às garotas num passeio na praia. Hiei rompeu gentilmente o abraço, sabendo que Yukina e as outras meninas estariam batendo à porta deles em poucos segundos.

"Uma curiosidade," Kurama comentou num sussurro.

"Sobre o quê?"

"Você ainda sente cócegas?"

Hiei fez uma careta, sua personalidade usual de volta. "Se quiser continuar vivo, é melhor não tentar descobrir."



~*~ owari ~*~



Morgan D morgan_d_@hotmail.com
Escrito em 8 de outubro de 2000
Traduzido em 11 de fevereiro de 2001
Revisado por Lekanthir
 

Confissão completa: esta fic foi em grande parte inspirada por "Name Game" de WhiteCat e "The Last Night at the Kubikukuri Hotel" de Sandy Youko, dois clássicos da Fanfiction sobre Yu Yu Hakusho, e leitura obrigatória para todos os fãs de YYH que não tenham preconceitos contra shounen ai/yaoi.

O texto original em inglês de Boas Lembranças (Fond Memories) foi a primeira fic de YYH que tentei escrever: comecei em maio de 1999... o que quer dizer que eu levei um ano e cinco meses pra terminar... Mas eu terminei, não foi? Então ainda há esperança pra mim, acho eu...

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Yu Yu Hakusho pertence a Yoshihiro Togashi, Shueisha, Studio Pierrot, Fuji TV e Jump Comics, mas seus extraordinários personagens são simplesmente fofinhos demais para que eu os deixe em paz. Não recebo nenhuma grana por este trabalho, só um monte de amigos tão ou mais malucos do que eu — pagamento mais do que suficiente pra mim.

Shounen Ai.

Para Curruira ("Eu não conheci o outro mundo por querer!")