Como Morrer Bem
Capítulo 3
Leonardo gritou para si mesmo, batendo os punhos
fechados no volante. Dirigia em alta velocidade, muito nervoso para prestar
atenção em qualquer radar chato durante o caminho.
-
Vaca colegial... dizer que eu a seduzi! Que eu a
forcei!
Em um movimento brusco, a pick-up saiu da estrada
asfaltada para entrar em uma de terra batida.
-
Pobre adolescente vítima de um tio tarado!
Uma nova entrada e o grande carro começa uma
subida difícil, com grandes pedras e buracos no caminho.
-
Até meu irmão acreditou nela! Até
meu irmão! Aquela... vadia... Hn. Grande merda! Que importa agora?
Eles nunca foram com a minha cara mesmo...- um sorriso de ironia enfeitou
a cara de Leonardo-... se queriam uma razão pra me excluírem
da família, conseguiram!
De repente, Leonardo foi tomado de uma tristeza muito
grande.
-
Só o meu irmão me entendia... só
ele me defendia daquelas viúvas ressentidas... ele me aceitava...
por que não acreditou em mim?- a raiva voltou então- Porque
acreditou naquela... naquela...- um suspiro de resignação-
... na sua filha.
Quando alcançou o topo, Leonardo reconheceu
um grupo de pessoas trabalhando quase na beirada de um precipício.
Ele brecou em seco a pick-up, chamando a atenção de todos
e desceu do carro.
-
Leo! Veio participar ou só pra ver?
Um senhor alto, já calvo veio sorrindo em
sua direção.
-
Participar. Preciso... resfriar a mente.
-
Nada que eu não consiga resolver voando- Leonardo
disse tirando seu próprio equipamento de dentro da caçamba
do carro- Só que tem que ser pra agora.
-
Ok...- o homem concordou pegando parte do equipamento-
Você será o próximo, então.
*****
Saulo olhou de soslaio para o filho no banco de trás.
Preocupado com o silêncio do filho, ele perguntou:
O menino balançou a cabeça negativamente.
Estavam viajando há mais ou menos umas
duas horas. Desde que entraram no carro Guilherme não pronunciara
uma palavra.
-
Guilherme, você está me deixando preocupado,
o que aconteceu?
-
... você acha que ela ficou brava?- o menino
perguntou baixinho depois de um tempo em silêncio
-
A Belle? Não... ela vai ficar bem. Foi ela
quem teve essa idéia, não? Ela não veio porque não
quis.
-
Eu... não era da Belle...
-
Hummm... entendi. Você está falando
da Natália?
-
Por que acha que ela ficaria brava?
-
Gui? Eu te fiz uma pergunta.
-
Isso é normal.- Saulo não pôde
deixar de sorrir- E é óbvio que ela não ficou brava
com você...
-
Não é isso.- como Saulo ficou em silêncio,
ele continuou- Ela é minha mãe... mas eu não gosto
dela.
-
Está preocupado com isso? Com o fato de você
ter uma mãe e não gostar dela? Está se sentindo culpado?
-
Gui... eu te proíbo de ficar assim! Quer saber
a verdade? Ela não está nem aí se você é
filho dela ou não. Ela não se importa se você gosta
ou não gosta dela. Sabe por que? Por que ela não te ama!
Ela nem lembrava da sua existência até precisar de dinheiro!
Foi isso que a trouxe de volta: dinheiro e não saudades de você!
Você não pode ficar assim por um ser humano tão baixo
e vulgar como ela! Ela não merece nem uma piedade sua, não
merece nem um sorriso seu! Ela não merece você, entendeu?
Como aquela mulher conseguiu machucar seu filho assim?
Como pôde permitir que isso acontecesse? Ela é o azar de uma
vida inteira! Foi ela reaparecer que tudo já estava revirado de
novo!
Ainda bem que tinha Belle lhe dando assistência.
A velha senhora cuidou do caso de Robert e ainda teve a brilhante idéia
de adiantar a viagem de fim-de-semana. Uns dias a mais na casa de campo
iria fazer muito bem para Saulo e Guilherme. Poderiam conversar sobre o
que aconteceu. Saulo iria então contar toda a verdade sobre seu
casamento fracassado e sobre a verdadeira esposa que teve.
Por achar que o filho ainda era muito pequeno,
Saulo tinha inventado uma pequena mentira sobre a mãe. Ou a falta
dela. Agora que Guilherme tem sete anos, já está mais do
que na hora de saber toda a verdade. Sim... uns dias no campo irão
fazer muito bem.
Guilherme gritou o pior xingamento que conhecia,
com uma voz chorosa e muito magoada ao pai. Se soltando do cinto-de-segurança,
o menino avançou nas costas de Saulo e começou a bater em
sua cabeça com toda a força que uma criança de sete
anos podia ter.
-
Guilherme! Volte para o banco! Agora!
-
Você está mentindo! Mentindo!
-
Guilherme! Eu estou te avisando, volte para o banco!
Pare com isso!
Saulo bem que tentou manter o Sedan na pista, mas
na raiva, virou o corpo e, com uma única mão no volante,
segurou um braço do filho bem forte.
-
Você ficou louco? Senta aí, agora!
-
Burro!- o menino ainda se debatia
O carro saiu da pista e correu por um descampado,
Saulo tentando manter o controle da direção.
-
Guilherme! Se você não parar agora eu
vou te bater!
Saulo não entendeu a razão do filho
se desesperar de repente e se agarrar ao seu braço com medo evidente
nos olhos. Mas foi só olhar para frente e conseguir ver o momento
exato da colisão de um homem com o pára-brisa do Sedan.
O baque foi surdo, e em questão de segundos
o corpo foi atirado para trás, caindo inerte no chão.
Sem saber direito como um homem aparecera do nada,
Saulo brecou o carro e saltou para fora correndo até o estranho.
Em seus pensamentos confusos, no meio de várias perguntas, uma questão
lhe chamou a atenção: ele não prestava muita atenção,
mas era um campo aberto e Saulo viu que não havia ninguém
enquanto dirigia sem controle. Como esse homem aparecera, assim... caindo
do céu?
*****
Leonardo abriu os olhos, soltando um gemido baixo
de dor. A imagem disforme e embaçada deu lugar ao rosto de uma criança.
Um menino de cabelos escuros e olhos cheios de lágrimas. "Finalmente
eu morri. E agora, esse anjo veio me dizer que não posso entrar
no céu. Por qual outra razão ele estaria chorando?" Leonardo
voltou a fechar os olhos, sentindo uma dor de cabeça chegar.
Mas um choramingo baixinho o fez abrir os olhos
de novo. Uma lágrima descia lentamente pela bochecha do anjo e caiu
desprendendo-se do queixo que tremia. O menino olhou para Leonardo e os
dois falaram juntos:
Leonardo não respondeu, mas o menino negou
com a cabeça.
-
Eu não posso dizer meu nome a estranhos.
-
Então... por que está chorando?
"Ah... agora eu entendi tudo!", pensou Leonardo ironizando
em pensamento da mesma forma que fazia algumas vezes com Silvia.
Foi então que o loiro se deu conta de onde
estava. Um quarto muito bem mobiliado em estilo campestre, com uma grande
janela com cortinas brancas, de onde Leonardo podia só ver o céu
azul e o topo de algumas árvores.
Se levantando muito bruscamente para o seu estado
físico, Leonardo fica de pé e tenta andar, mas depois de
alguns passos ele cai. O menino se desespera e tenta segurar os ombros
do homem três vezes maior que ele.
Passos pesados fazem o chão do quarto tremer
e em poucos segundos uma figura alta e robusta aparece na porta.
-
Você está bem?- o homem pergunta, pondo
um braço de Leonardo nos seus ombros e levantando-o
-
Mais ou menos... achei que tinha morrido e estava
tentando passar pela porta do céu.
-
Porta do céu?- ele perguntou colocando Leonardo
na cama
-
Seu filho. Foi a primeira coisa que vi. E ele estava
chorando.
-
Ah... o que isso tem a ver com... Bom, deixa pra
lá. Lembra do que aconteceu com você?
-
É... me desculpe. Meu filho estava batendo
em mim e eu não consegui manter o carro na pista.
-
Eu vi tudo de cima, não seu filho batendo
em você, mas o carro perdendo o controle. Só não achei
que você viria bem na minha direção.
-
Você apareceu do nada!- falou de repente o
menino
-
Não consegui evitar... vocês não
me deixaram escapar.
-
Ainda bem que você não estava no chão
e sim ainda... planando. Você escapou sem nenhum ferimento grave,
foi muita sorte.
-
Sorte sua.- Leonardo sorri e diz quase sem pensar-
Você não parece ser um cara disposto a pagar qualquer tipo
de indenização.
-
Eu faria isso sim.- o homem disse ríspido-
Pagaria tudo o que fosse necessário. Acho melhor descansar, senhor...
-
Meu nome é Saulo di Monte Domani, meu filho
se chama Guilherme Laun Domani. Você pode ficar aqui até se
sentir melhor, se quiser ligar pra alguém avisando onde está,
o telefone fica na sala.
-
No meio sítio, interior paulista, 250 Km de
Campinas.
-
Você me trouxe até aqui?- disse Leonardo
impressionado com a distância
-
Onde você estava era pior. Se bem que é
meio estranho... não deveria ter gente te esperando lá no
descampado?
-
Não... eu peguei um outro vento. Eles devem
estar putos comigo agora...
-
Meu filho não tem contato com certas gírias,
por favor, não as ensine a ele. Estamos na sala, qualquer coisa
chame.
Leonardo percebeu o olhar sério de Saulo e
sorriu, esperando ele fechar a porta do quarto onde estava.
-
Mas que simpatia!- disse o loiro jogando o corpo
na cama.
*****
-
Guilherme! Guilherme, volte aqui!
Saulo alcançou o menino e o segurou nos ombros,
falando com raiva.
-
Pare com isso! Você nunca me desobedeceu, agora
que viu a mamãe vai ficar fazendo birra?
-
Me solta! Você é mentiroso!
-
Você não sabe a verdade, como pode me
chamar de mentiroso?
-
...- Guilherme fecha a cara
-
Vamos conversar. Depois você decide o que fazer...
-
Eu quero a minha mãe!- o menino gritou
-
Guilherme... você está ficando um menino
muito chato!
-
Eu quero a minha mãe!- ele gritou de novo
-
Pois ela não quer você! Ela desistiu
de você faz tempo, quando achou um marido com mais dinheiro!
-
O que está acontecendo aqui?
Pai e filho foram pegos de surpresa com a chegada
de Leonardo na sala. Guilherme saiu correndo e se trancou no quarto, deixando
os dois adultos em um silêncio constrangedor.
-
Você devia estar descansando.- Saulo falou
se pondo de pé
-
Não, é uma visita indesejada.
-
Desculpe, eu não pedi pra ser atropelado.
-
Você caiu do céu!- Saulo disse bravo,
mudando o sentindo da frase
-
Você veio na minha direção! Eu
desviei e você me seguiu!
-
O que quer afinal? Dinheiro?- o moreno tira a carteira
do bolso- É isso que quer? Pois tome e dê o fora!
Ofendido, Leonardo se joga na direção
de Saulo o prensando contra a parede. As notas que estavam na mão
dele caíram pelo chão. O loiro prende o pescoço de
Saulo com um braço e com a outra mão aponta um dedo acusador
na cara dele.
-
Tá pensando o que? Que eu me jogo na frente
dos carros pra conseguir dinheiro?- a voz dele era cheia de raiva- Pois
eu não preciso da merda do seu dinheiro, eu não preciso da
merda da sua boa-vontade, eu não preciso de nenhum velho acabado
que acredita no poder do dinheiro e que maltrata o filho!
A falta de ar tomou Leonardo de surpresa, que dobrou
o corpo com os braços no estômago.
-
Eu não sou nenhum velho acabado.- Saulo falou
sério- E estou cansado de gente infantil que só sabe tirar
conclusões apressadas. Você e meu filho são completamente
iguais! Os dois me acusam sem saber droga nenhuma da minha vida!
Saulo ajeitou os cabelos e a blusa dentro da calça
dizendo:
-
Espero que isso lhe sirva de lição...
filho.
Continua...