"Pai..."
Os dois adultos se viraram para a voz fina e tímida que vinha da porta. Guilherme estava lá, com os olhinhos vermelhos de tanto chorar e tinha o cenho franzido, mas não parecia estar bravo.
"Vem cá.", Saulo disse baixinho, como se quisesse que só o filho o ouvisse.
O menino andou com a cabeça abaixada até o pai e estendendo os braços, deixou ser levantado no ar. No colo do pai, ele fechou os olhos e escondeu o rosto no peito largo.
"Está com dor de cabeça?", Saulo perguntou num tom calmo recebendo como resposta um aceno de cabeça, "Porque você não come um pouco, assim eu posso te dar o remédio."
"Eu não estou fome...", veio a resposta choramingada
"Eu não posso te dar remédio com você de estômago vazio. O jantar está quase pronto, você só precisa comer um pouco."
"Está doendo..."
"Eu sei. Você deve ter ficado a tarde toda chorando, né?", Saulo segurava o filho em um braço e com o outro mexia na panela que estava no fogo. Ele percebeu que o menino acenara com a cabeça, mas não comentou mais nada. Não queria discutir na frente de Leonardo.
"Quer que eu faça isso?"
A voz de Leonardo acordou Saulo de seu devaneio junto com a mão dele sobre a sua que estava mexendo na panela.
"Deixe que eu termino aqui. Assim você pode conversar com o menino."
Saulo piscou surpreso por Leonardo ter adivinhado seus pensamentos. Falando um obrigado baixinho, ele entregou a colher para o loiro e saiu da cozinha entrando no próprio quarto.
"Pai..."
"Sim?", Saulo perguntou ajeitando o filho na grande cama de casal.
"Você está bravo comigo?", a voz de Guilherme soou chorosa
"Estou.", ele respondeu passando uma mão pelos cabelos escuros de Guilherme
"Vai me dar bronca?"
"Não preciso. Parece que você já sabe que errou."
"Vai me deixar de castigo?"
"Sim.", Saulo sentiu o filho ficar tenso e com medo, então completou, "Mas não agora. Você precisa descansar. Um castigo não adianta de nada se o castigado estiver dormindo."
"Não tem graça...", Guilherme fez um bico exagerando tentando esconder o sorriso.
"Claro que não tem graça. Você vai ser castigado!", Saulo apertou uma das bochechas do filho.
"Pai! Pára com isso!!!", ele resmungou passando a mão na bochecha dolorida
"Guilherme...", Saulo pronunciou o nome do filho seriamente chamando a atenção deste, "Vamos conversar. Lembra da história que eu te contei sobre o passado da sua mãe e porque ela não o vê?", Guilherme acenou com a cabeça, "Esqueça essa história. Ela é inventada. Eu a inventei para que você não ficasse triste ao se deparar com temas que lembrem sua mãe."
"Como o dia das mães?"
"Exatamente. Eu sei que na sua escola existem muitas crianças com pais separados, como você, mas tenho quase certeza que elas mantém um contato saudável com as mães e pais delas, o que não ocorre com você. O que eu fiz foi pra te proteger.", Saulo percebeu que Guilherme iria falar, mas adiantou-se, "Eu sei que agora parece absurdo, mas me escute. Quando você nasceu, você não foi levado para a sua mãe na maternidade, você foi levado para uma moça que eu paguei para dar metade do leite dela para você. Isso aconteceu não foi porque sua mãe estava doente ou com algum problema pós-parto... ela simplesmente não queria você antes mesmo de você nascer. Você nasceu porque eu insisti e paguei a sua gestação... caro. Ela não te procurou depois disso. Na verdade, ela só foi saber como você era no dia da nossa separação... quando você estava com dois meses, nos braços de Anabelle. Sabe porque a nossa separação demorou tanto?", o menino negou com a cabeça, "Separação de bens. Ela se recusou a assinar o divórcio até que chegamos a um acordo justo, nos moldes dela. Depois disso, sua mãe Natália sumiu de nossas vidas, casou-se mais duas vezes e agora, pelo que sei, está solteira de novo. Nesse meio tempo ela só te viu uma vez, quando estava com dois anos, em uma festa de final de ano de um amigo comum entre nós. Essa é a sua mãe. Antes de você entrar na minha sala, nós conversávamos e não era sobre você, era sobre dinheiro. Natália ficou sem dinheiro e veio me procurar foi só isso."
"Só... isso?"
"Só isso.", Saulo repetiu sério, "Sua mãe é só isso."
Guilherme ficou calado por um bom tempo enquanto Saulo debatia-se em pensamentos como, por exemplo, se patrocinasse um projeto de ler mentes... talvez conseguisse saber o que se passava na cabecinha de seu filho nesse momento e já soubesse de antemão o que fazer com ele. Ser pai é muito difícil. Saulo suspirou e esperou pacientemente para que Guilherme falasse:
"Nada de divórcio amigável e negócios importantes no exterior?"
"Não...", Saulo disse tristemente
"Podia ter dito que ela tinha uma vida de voluntariado em países da África e Ásia...", o garoto disse pensativo
"O que...?", Saulo perguntou um pouco confuso, definitivamente iria patrocinar um aparelho de ler mentes
"Ou então que foi raptada por um Sheik e estava vivendo no deserto dividindo o marido com mais cem mulheres...", ele continuou ainda com a voz séria, deixando Saulo mais confuso
"Eu... bem...", o grande empresário paulistano gaguejou. Era ele ou o seu filho que ficara maluco?
"Sabe qual é o seu problema?", o menino perguntou levantando o rosto e encarando o pai seriamente, "Não sabe usar a imaginação."
"... do que...?", Saulo achava que tinha perdido um pedaço importante da conversa
"Sempre que perguntavam da minha mãe era a mesma coisa: ela está sempre viajando a negócios. Só isso!", o menino protestou, "Daí perguntavam: que negócios? Onde? Com que empresa ela trabalha? Pra onde ela já foi? Por que ela não aparece nos jornais?"
Foi então que Saulo reparou que não falavam mais de Natália e sim da estória que ele mesmo tinha inventado para Guilherme. Estava espantado, e muito aliviado, da reação do seu filho. Imaginava mais berreiros, mais choradeira e mal-criação, mas o menino parecia querer é esquecer o assunto discutindo com ele. Recobrando a postura, Saulo sorriu de leve e disse:
"Eu sei que não fui muito criativo, mas não podia distorcer tanto assim a imagem que Natália preza com ardor..."
"Você me disse que ela era bonita e que tinha o rosto de todas as mães, mas ela é bem diferente..."
"Você não a achou bonita?"
"Sim, ela é muito bonita!", o menino então se aproximou do ouvido do pai e cochichou, "Mas ela usa muita maquiagem e tem um cheiro estranho... a Belle também é muito bonita, mas não precisa de tanta maquiagem e não tem "aquele cheiro"..."
"Você acha a Belle bonita?", Saulo perguntou curioso
"Eu acho... você não acha?"
"Belle é muito bonita sim... era o meu amor secreto quando eu tinha uns dez anos."
"Mesmo?! Você e a Belle namoraram?", o garoto perguntou surpreso
"Não, não... eu era apaixonado por ela... mas ela me via apenas como um menino, o filho do chefe..."
"O moço loiro também é muito bonito, né?", Guilherme falou de repente
"Quem... o...o... rapaz que nós atropelamos?", Saulo gaguejou lembrando-se do ocorrido na cozinha
"Ele tem um cabelo muito legal...", Guilherme disse pensativo, mas Saulo já estava perdido com uma imagem que surgira na sua mente quando ele continuou, "Quero ter um cabelo igual ao dele, posso pai? Pai? Paiê!"
"Ah?... desculpe filho. Eu... eu vou ver se a
janta já está pronta.", ele disse levantando-se, "Já
volto."
Leonardo mexia na panela distraído. Ele deu umas batidinhas com a colher na palma da mão e experimentou, fazendo uma careta logo em seguida.
"Argh! Que comida horrível! Está sem tempero nenhum! Apenas sal...", ele se afastou do fogo para procurar por alguns temperos nos armários, "Hmmm... isso aqui deve servir!"
Em poucos minutos, ele lavou e cortou algumas ervas e despejou na panela, depois ainda achou alguns temperos antigos, da culinária árabe, sorrindo ele também coloca um pouco na panela.
"Tanta coisa aqui e ele nem usa... dá pra preparar qualquer prato, tem até um aparelho de porcelana para comida japonesa... como é ele não usa isso?", Leo levou a mão com um pouco do cozido de novo a boca e dessa vez sorriu, "Humm... gostoso..."
Satisfeito, ele tampa a panela e desliga o fogo. Depois se vira para a cozinha vazia e vê que a mesa ainda não está pronta. Vasculhando mais uma vez os armários ele encontra várias toalhas de mesa passadas e limpas e toda a louça. Ao retirar os pratos ele acha um diferente e separado dos outros. Curioso ele o pega e sorri de leve ao ver o desenho.
Era um prato infantil, com a borda mais elevada e um desenho mostrando um menino brincando com um cachorrinho, cheio de desenhos de ossos em volta e, na borda, estava escrito com letrinhas coloridas "Guilherme". Leonardo também achou um garfo, uma faca e uma colher diferentes, também com desenhos e de tamanho menor. Um armário inteiro era dedicado a copos coloridos, canecas e potes plásticos com temas infantis.
"Garoto sortudo... tem um pai de dar inveja... muita inveja."
Colocando os pratos na mesa, Leonardo se sentiu cada vez pior por ter comparado Saulo com seu pai. Percebia que cometera um erro enorme ao fazer isso. Agora se sentia muito mal... Estranho... sentia uma necessidade de falar com ele sobre isso.
Mas o que estava dando na sua cabeça afinal? Saulo não era um psicólogo, ao contrário, duvidava que aquele homem tenha experimentado qualquer coisa mais emocionante na sua vida do que a baixa das ações de sua empresa. Do que ele entenderia desse sentimento estranho de culpa? Nada, claro...
Mas que era uma coisa estranha era. Não era só pedir desculpas, se fosse simples assim Leonardo não estaria com receio de falar. Sim, era isso... falar, conversar... ou talvez, apenas... ficar com ele. Essa era sua vontade.
Franzindo o cenho, Leonardo ficou parado em frente a mesa posta por alguns minutos ajeitando os próprios pensamentos. Não iria negá-los, isso não. Mas estava espantado com a conclusão que chegaram, pra não dizer confuso e... querendo negá-los! Porque não era possível que ele estivesse interessado em... em... ficar com aquele homem!
Céus! Sabia que era isso que queria... mas... não, não é isso que quer! Não pode querer isso! É loucura... Melhor parar de pensar nisso. Melhor parar de pensar nele. Isso vai passar, vai passar...
Com a mesa posta, ele deu uma olhada no relógio.
"Acho melhor chamá-los, senão a comida vai esfriar...", quando se virou para a porta, deu de cara com Saulo, que o observava intensamente sabe-se lá desde quando. Sentindo-se incomodado com o olhar, Leonardo pensa se fez alguma coisa errada, mas a cozinha está inteira, então ele fala meio descontraído, "Er... terminou lá com o menino? Eu ia chamá-los..."
"Que cheiro é esse?", Saulo interrompe bravo
"Cheiro? Que cheiro?", Leonardo respirou profundamente algumas vezes mas não sentiu nada de estranho, Saulo cortou a cozinha passando por ele e abriu a panela, olhando-o acusador.
"Este cheiro! O que fez com a minha janta?"
Entendendo a situação, Leonardo se indignou, pois achava que tinha deixado a comida mais comestível, isso sim, "Ora, eu temperei! Estava sem gosto nenhum!"
"Você não parou pra pensar que o meu gosto pode ser diferente do seu?", o moreno disse tentando manter a calma
"E pra que todos esses temperos nessa cozinha se você não usa nada?"
"Porque é uma mulher que faz as compras da casa!", Saulo grunhiu bravo, prometendo a si mesmo não deixar que Belle faça mais nenhuma lista de compras pra ele
"Pelo menos prove!", Leonardo disse depois de um longo tempo de silêncio, tirando das mãos de Saulo a panela e colocando-a no centro da mesa.
"Que cheiro é esse?", veio a voz de Guilherme baixinha do corredor.
Leonardo passou a mão na franja em desespero e retirou a panela da mesa. Quando estava a ponto de jogar todo o conteúdo fora, Saulo o parou colocando sua mão firmemente sobre a de Leonardo.
Como se esse simples gesto fosse capaz de parar o tempo, ambos ficaram encarando. Ambos encararam assustados o contado que estava acontecendo. A mão de Saulo cobrindo a de Leonardo. Um ocorrido simples e até displicente, mas que por alguma razão desconhecida para os dois homens, foi algo... elétrico.
O primeiro a se mexer foi Saulo, ele piscou e soltou um suspiro leve, como se tivesse prendido esse tempo todo.
"Não desperdice comida. Vamos comer isso que você fez...", ele disse retirando a panela das mãos de Leonardo e recolocando-a na mesa
"Humm... parece bom, papai!", Guilherme já tinha chegado na cozinha e estava se sentando, admirando o conteúdo da panela e, sem querer, quebrando o clima silencioso entre os dois adultos
Leonardo sorriu admirado saindo do transe. O garoto gostou do cheiro! Com certeza vai adorar a comida, vai pedir para que ele cozinhe sempre e esquecerá a comida sem gosto do pai!
"Qualquer elogio dessa vez é para o Sr. Rechttrane, Guilherme...", a voz grave de Saulo cortou seus pensamentos, "Já lavou as mãos?"
Enquanto Guilherme era servido por Saulo, Leonardo se sentou também, com um sorriso enorme no rosto.
"Não vai avisar ninguém que está aqui, Sr. Rech..."
"Leonardo. Pode me chamar de Leo se quiser também, mas não estou acostumado que me chamem pelo sobrenome."
"Certo... Leonardo. Não vai avisar ninguém?"
"Não, quero deixá-los preocupados...", depois do olhar severo e confuso que recebeu de Saulo e Guilherme, respectivamente, ele acrescentou, "Na verdade, o pessoal que estava comigo me conhece... sabem que eu sou assim. Só vão começar a se preocupar depois de uma semana sem me verem."
"Você vai ficar uma semana com a gente?", Guilherme perguntou com os olhos brilhando enquanto equilibrava a comida no garfo
"Não!", Leonardo e Saulo responderam juntos, o primeiro rindo e o segundo bravo.
"Er... não foi isso que eu quis dizer.", o loiro comentou rindo sem graça, "Eu vou embora amanhã... mas é porque eu não fui convidado a ficar, né?"
"Eu e o meu pai vamos passar o fim-de-semana sozinhos aqui. Você pode ficar se quiser!", o menino disse sorrindo excitado, deixando cair todo o conteúdo do garfo no prato
"Guilherme!", Saulo o advertiu bravo, deixando o garoto mudo na mesma hora
"hehe... bem... não é nem uma questão de ser ou não convidado.", Leonardo falou ainda mais sem graça, ficando vermelho, tentando consertar a situação, "É que eu não sou bem-vindo...", no mesmo instante Saulo o olhou bravo, "... e... eu tenho assuntos em São Paulo que precisam ser resolvidos.", ele sorriu pra si mesmo com a resposta, "Assuntos importantes que precisam ser resolvidos imediatamente.", ele acrescentou feliz.
"Ah...", o garoto murmurou, "Eu sei... meu pai também é assim... sempre tem alguma coisa mais importante."
Saulo olhou para a face triste do filho e abriu a boca pensando ainda no que dizer, mas parou quando a voz de Leonardo o deixou paralisado.
"Como cuidar de você, por exemplo?", o loiro disse sorrindo, "Sabe eu encontrei umas coisas interessantes nessa cozinha...", Guilherme o olhou confuso e ele continuou, "Você tem várias coisas só suas nessa casa, não é? Esse prato... só você que usa, estou certo? E também deve ser só você que usa as canecas e copos coloridos daquele armário.", Leonardo disse apontando para o lugar onde achou os utensílios de criança, "Não é mesmo? E aposto que lá em São Paulo deve ter mais um monte de coisa."
"Sim, mas...", o menino fez um bico abaixando o rosto
"Mas você não se interessa por eles.", Leonardo disse ainda sorrindo. Guilherme levantou o rosto e mostrou os olhinhos arregalados de surpresa enquanto Saulo olhava em um misto de perplexidade e raiva com a boca aberta, "Bingo! Também aposto que o que interessa mesmo pra você é o momento em que seu pai te coloca pra dormir. Ou quando ele te leva pra escola. Ou quando você acorda mais cedo que ele no domingo e vai acordá-lo, aproveitando para bagunçar toda a cama."
"Como você sabe disso?", Guilherme perguntou maravilhado, ficando em pé na cadeira e não levando bronca, porque o seu pai também estava muito ocupado olhando para Leonardo.
"Ora... não é difícil adivinhar...", o loiro respondeu calmamente, mas interiormente pensava triste que era apenas imaginar o contrário do que foi sua própria infância, "Você gosta desses momentos, não é?"
"Sim! É muito bom também quando papai me dá bronca quando eu entro no meio de uma reunião quando tá todo mundo sério quando eu sei que vou levar bronca!", ele responde rindo, "Mas ele nunca me dá bronca de verdade, só de mentirinha na frente dos senhores!"
"É mesmo? E depois você me diz que seu pai tem algo mais importante que você? Eu duvido muito!", Leonardo disse sorrindo satisfeito com o olhar de Guilherme. Sem querer, ele olha também para Saulo, pela primeira vez depois que começou a conversa com o menino, e deixa cair o garfo, assustado, "Er... eu..."
O barulho do metal contra o vidro parece ter tirado Saulo de um devaneio e ele olha para Guilherme, falando bravo em seguida, "Guilherme! Mas o que é isso? Sente-se direito!", depois que o filho sentou-se na cadeira e voltou a comer comportado, Saulo olhou para Leonardo mais uma vez e disse encabulado e mais calmo, "Não faça essa cara, eu não vou mordê-lo."
"N-não... eu quero... não é que... eu não devia...", Leonardo começou a gaguejar diante daquele olhar, mas foi interrompido por Saulo.
"Você não devia ter mudado a minha janta... mas isso está muito bom, apesar de tudo.", Saulo disse calmamente levando uma garfada à boca.
Leonardo ainda ficou um tempo mudo olhando-o sem
saber o que pensar, mas depois sentiu-se calmo e sorriu, voltando a jantar
também.
Continua...