Ele continua sério. Eu o magoei demais.
Ele tem o olhar vazio. Eu fui um estúpido. Ele caminha rápido
para não se deixar cair. Eu me arrependo. Ele quer chorar. Eu quero
matá-lo, matar-me... parar de sofrer, é o que eu quero. Por
que não consigo? Hiei observava Kurama de longe com seus próprios
pensamentos em conflito. Uma nova nevasca começara, perdia-o de
vista, teria que se aproximar mais. Melhor não. Talvez quando eles
resolvessem parar de novo, quando os outros já estivessem dormindo,
iria falar com ele. Tomando essa decisão, Hiei sumiu no meio da
nevasca.
Três dias e duas noites se passaram e Hiei continuou apenas observando. A uma distância segura o bastante para que ninguém percebesse sua presença e ele mesmo tivesse que se esforçar para sentir a presença deles. Estava derrotado pelos próprios instintos: sua vergonha costumeira não deixou que se aproximasse na primeira noite, seu orgulho típico foi mais forte na segunda noite, a fome crescente de hoje lhe dava medo suficiente para não se aproximar mais... Só de lembrar-se do gosto da última refeição a saliva aumentava, o estômago respondia com dor e uma sensação de vazio. O que diabos fazia no Makai? Dificilmente encontraria outro ningen... Hiei respirava pausadamente, olhava com desconfiança qualquer movimento diferente, alguém ou alguma coisa que pudesse comer. O frio começava a lhe incomodar, passando a sensação de que deveria comer, comer muito, mais do que estava acostumado, e essa resistência voluntária aumentava a vontade. Ele encolheu-se, sentando-se nas reentrâncias de uma rocha coberta de neve e pressionando as costas contra a mesma. Odiando seu desejo e sua condição, mordeu com força o lábio inferior. Os caninos perfuraram a fina pele e, lentamente, a língua provou as duas pequenas gotas de sangue que apareceram. O gosto... tão diferente. Sua língua formigava por outro sabor, mais refinado, mais saboroso, um sabor humano! Hiei grunhiu um palavrão, levantou-se e desapareceu no meio da nevasca.
Enquanto corria era feito de tolo pelos próprios pensamentos, que lhe mandavam imagens de um humano desprotegido, indefeso e de sabor especial. Um sabor nunca antes experimentado. Estava escuro, não conseguia ver nada além do humano sentado, ele não tinha rosto, uma luz branca impedia que identificasse sua presa. Não importava, iria se aproximar assim mesmo, por trás. Um movimento o assustou, todo o tronco do humano começou a balançar nervosamente, pareciam soluços insistentes... estava chorando! Hiei pôde ouvir o choro, quase mudo, contido, por isso o corpo balançava tanto. Outro movimento, o humano levantou-se, ainda de costas. "Ele vai fugir!", o koorime faminto pensou, passando a mão na cintura em busca da katana que, para sua decepção, não estava lá. Num movimento rápido, Hiei agarra o corpo frágil e crava as unhas nele. Elevando um pouco a cabeça, abrindo ao máximo a boca, Hiei abocanha o ombro humano, sentindo com prazer o sangue espirrando na língua antes molhada pelo excesso de saliva. O humano ganha face, grita e seu corpo curva em dor. Ele se deixa cair nas mãos de Hiei, que ainda mordia com força seu ombro. Uma mecha de cabelo cai ao seu lado, o humano vira o rosto e encara com desespero o koorime. Hiei abre a mandíbula, como se ele mesmo tivesse sido mordido pelos olhos que o encaravam. Tinha mordido Kurama! Tinha atacado Kurama! Não...
O corpo de Kurama perde as roupas, ficando nu, escapa de suas mãos e começa a cair no meio da escuridão. Hiei grita e tenta segurá-lo de volta, mas por mais que tentasse se esticar não o alcançava; Kurama apenas olhava com os olhos verdes sem vida, vazios. Hiei agarra a si mesmo e grita pelo nome da raposa. O ruivo pára de cair e antes que o koorime tivesse alguma reação, a escuridão entre eles se divide: continua infinita onde Hiei está, mas se transforma em um enorme mar de sangue abaixo de Kurama, que continua encarando Hiei com o olhar vazio. Ele se desespera e grita mais até ficar sem voz, até sentir o gosto do próprio sangue na garganta se misturar ao gosto de Kurama. Seus gritos, seu sangue, sua dor de nada adiantam; como um brinquedo o corpo do youko é arremessado em direção ao mar, o sangue levanta numa grande onda com o impacto e atinge em algumas gotas Hiei, que num ato de cólera, tenta limpar-se, mas o que consegue é espalhar várias manchas vermelhas pelo próprio corpo. Kurama sumira junto com a onda. O mar de sangue começou a revoltar-se, ondas maiores e mais fortes tentavam alcançar Hiei, que se desviava fugindo para o seu lado, o lado da escuridão. Uma grande onda começou a encobri-lo, mas parou como uma parede na frente de Hiei. Ele encarou o olhar de seu próprio reflexo e estendeu a mão, mas antes que tocasse a parede de sangue, braços saíram dela e acariciaram, molhados de sangue, seu pescoço. Kurama apareceu até a cintura no meio do sangue, com o líquido lhe envolvendo todo, rubro. Estendeu mais os braços tentando abraçar Hiei, que ficou parado, hipnotizado pelos olhos sem cor, sem paixão, sem vida, cobertos de sangue. Sentiu Kurama se aproximar de seu ouvido; as mãos do youko pintando seu corpo de vermelho; escutou a pergunta feita sem sentimento, seca: "O que você quer, Hiei?". Kurama e o sangue já lhe envolvendo todo; de novo: "O que você quer?"
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De novo... A escuridão! "Não! Quero sair daqui! Como eu saio daqui? Droga, como eu saio?" Hiei gritava no meio da escuridão, mas ninguém respondia, nem sua voz ecoava. Desesperado começou a correr, a fugir, mas não achava nada, nem parecia mover-se, era apenas a escuridão. Em um canto apareceu alguém, sem rosto. "Não... dessa vez, não! Eu não vou fazer nada! Você não vai me enganar!", gritou Hiei furioso para sua Fome. O estranho também chorava, também estava de costas, também se levantou. Hiei desesperou-se e correu em direção contrária, mas depois de alguns passos, alguém o agarrou por trás. O koorime debateu-se me vão, gritou de dor quando sentiu morderem seu ombro. Olhou para quem o atacava... era ele mesmo! Hiei, transformado, faminto de carne. Então era assim que ficava quando comia. Era um monstro! "Me larga! Eu não sou assim! Eu não..." A mordida fortificou-se, Hiei perdia os sentidos pouco a pouco. Olhou para baixo e viu o mar de sangue se formar aos seus pés. "Você não vai me levar!" Hiei debateu-se, mas o outro Hiei, o faminto, era muito mais forte. Ele levantou-o no ar e atirou o koorime no mar de sangue.
Ele sentiu o momento lentamente. Estava nu, o
sangue molhando e tingindo sua pele; as várias bolhas, formadas
com o impacto, acariciavam todo o seu corpo, o líquido rubro era
morno e o relaxava. Apenas afundava, não chegava a um fundo. Hiei
já se acalmara, quando sentiu algo frio em seu estômago. Era
a sua katana! Quando foi tira-la, ela moveu-se sozinha pelo seu corpo,
fazendo uma trilha dentro de Hiei que gritou de dor. Antes não sentira,
mas o sangue, seu sangue, invadia a boca e o engasgava, o sufocava querendo
sair. Olhou para frente, a katana estava apontada para seu rosto! Sem conseguir
se desviar, Hiei teve o rosto cortado em fatias irregulares, seus pedaços
se perdendo no mar de sangue do qual já fazia parte.
Hiei mal abriu os olhos teve que fechá-los rapidamente. Youko estava sobre ele, lambendo todo o seu rosto e choramingando baixinho. Sentou-se e olhou confuso para o belo animal no seu colo. Olhou depois envolta, os outros dormiam pesadamente. Kurama... Temeroso, Hiei fez um carinho em uma das caudas peludas.
O koorime acordou, mas não abriu os olhos. Estava bom demais para estragar, assim, tão rápido. Durante a noite Kurama deixou-se ser abraçado por Hiei, que mesmo demorando a dormir de novo, teve um sono profundo, sem sonhos, mas também sem pesadelos. Abrindo um olho devagar, Hiei estranhou, mas agradou-se com a surpresa. Estava mesmo abraçado ao youko, mas não ao animal. Com suas orelhas, cauda e aquele cabelo comprido e liso, Youko Kurama, o Ladrão do Leste, abraçava com esmero e aninhava carinhosamente o pequeno corpo de Hiei no seu.
Uma dor, sensação de vazio... Droga! Mas será que essa fome não o deixará nunca? Justo agora, quando se resolvera com Kurama; não deixaria que ela o dominasse. Hiei encolheu-se sob o corpo quente do Youko, desejando que essa vontade repentina de comer passasse logo.
Hiei estava sendo levado, como se fosse um simples galho, pela força da neve. Coisas que nem soube identificar direito o que eram, bateram no seu corpo o arrastando mais, árvores inteiras passavam numa velocidade incrível tirando uma fina de seu rosto. Cansado disso tudo, Hiei virou-se para o que ele supunha ser o chão, mirou com a pala da mão e disparou uma bola de fogo sob seus pés. A neve simplesmente evaporara e um círculo de energia se fez envolta de Hiei. Tentando se localizar, ele enxerga algo escuro mover-se rapidamente em sua direção, um tronco, poderia incinerar facilmente, mas teve outra idéia. Com um salto, ele cai em pé sobre o tronco, que o leva sem maiores problemas até uma ponta de rocha descoberta. Lá, Hiei busca por algum vestígio do Youko, a avalanche começara a enfraquecer, mais alguns instantes e poderia começar a procurá-lo com mais calma. Ele mantinha os olhos atentos a qualquer coisa que pudesse lembrar sua raposa. Distante, quase imperceptível, um movimento de mão desesperado virou o alvo do koorime.
Hiei aproximasse da mão, mas antes de agarra-la,
ele pára, analisa e conclui "Essa não é a mão
do Kurama! Nenhuma das duas..."** Hiei, não tão motivado
quanto antes, ajuda o dono da mão, seja lá ele quem for.
Para sua surpresa, o tal dono era Kuwabara, que respirava com dificuldade
e tinha um pequeno ferimento no rosto.
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*Me desculpem, mas... Pô! É a fome do menino! A barriga ronca, é natural, acontece nas horas mais impróprias, que que eu posso fazer? E além do mais, tava no roteiro!
**hehe...As duas mãos, no caso, seriam
ou a do Youko ou a do Shuuichi. E olha que eu nem contei a pata (de raposa)@_@
Menino complexo, esse Kurama, dá um trabalho...^_^
CONTINUA...