Fome Youkai
Por Umi no Kitsune
Três - Um Amigo...
O que estava acontecendo? Alguém poderia
lhe fazer o grande favor de explicar? Kuwabara... esse idiota! Hiei quer
saber onde está Kurama, mas esse ningen besta fica atolando-o! Mas
então, por que o ajuda? Ele, apesar de tudo, é um amigo...
Ou talvez seja porque sua fome de youkai está martelando na sua
cabeça que ele é... Comida!
Quando achou Kuwabara, a primeira coisa que viu
foi o fino fio de sangue que saia da testa dele. Depois se deu conta que
ele estava com dificuldade em respirar e precisava ser tirado daquele monte
de neve imediatamente. Mas mesmo que tentasse se concentrar em salvar o
amigo, o cheiro do sangue dele subia as narinas e seu estômago respondia
com dor, cansado do vazio voluntário a que era obrigado.
Kuwabara finalmente saiu debaixo da neve. Numa
respiração entrecortada, dizia os devidos agradecimentos,
muito inesperados, para Hiei. Mas este nem o escutava; de pé, bem
próximo a Kuwabara, ele não conseguia tirar os olhos daquele
ferimento. Aquele parte de carne que Hiei sempre desprezava... os músculos
da cabeça são muitos, mas não são tão
apreciáveis. Sua fome não ligava para esse pequeno detalhe,
no entanto. E também não se importava com o fato da comida
ser um amigo.
Uma verdadeira batalha era travada dentro de Hiei;
seus braços queriam agarrar e despedaçar a comida, sua boca
queria provar o gosto daquela carne vermelha brilhante... mas Hiei não
queria! Não queria fazer isso! Mas... mas...
Yusuke se aproxima do amigo ferido enquanto Kurama,
não mais como youko, fica com Hiei
-
Kuwabara você está bem? Quem te fez
isso?- Yusuke sacudia o amigo e passava a mão com cuidado pela ferida
em sua testa.
-
Quem fez isso? Ué, ninguém! Foi uma
árvore enorme que passou por mim e...
-
Kurama, tire Hiei daqui!- o tom de voz do detetive
era de desespero e de ordem ao mesmo tempo
-
Mas, Yusuke... ele falou que foi apenas uma árvore!-
Kurama se posicionara em frente a Hiei.
-
Não me interessa! Você sabe o que eu
penso, sabe que estou certo, mas mesmo assim não parece se importar
com as conseqüências!
Hiei estava confuso. Era levado por Kurama para longe
de Kuwabara e Yusuke sem dizer uma palavra, mas queria fazer várias
perguntas! Eles chegaram justamente no momento em que seus instintos iam
tomar conta de seu corpo... Yusuke perguntou aflito Quem fez o corte
na cabeça de Kuwabara... E o detetive também não o
queria por perto... Kurama...
-
Você está bem Hiei?- a raposa interrompe
os pensamentos dele
-
Posso tomar isso como um sim?
-
Pra onde está me levando?- Hiei parou de andar
e encarou Kurama sério
-
Pra longe...- Kurama disse sério e continuou
andando, mas puxou Hiei pelo braço, vendo que este não se
mexia- Vou perguntar de novo e agora quero que seja sincero: você
está bem, Hiei?
Primeiro Hiei fez cara de bravo pelo puxão
que Kurama lhe deu e por estar ainda preso pelo braço. Depois, ao
entender o verdadeiro sentido da pergunta, não apenas na entonação
de voz séria de youko, mas também pela ferocidade impressa
em seus olhos verdes, Hiei estremeceu.
-
Você consegue mentir pra mim?- os olhos verdes
foram tomados, em alguns instantes, por um brilho dourado
-
Do... do que você está falando?- Hiei
não podia acreditar que sua raposa lhe perguntara uma coisa dessas
-
Consegue mentir pra mim? Enganar-me... dizer que
está tudo bem! Consegue?
Hiei não respondeu. Precisava responder, dar
alguma satisfação, fazer qualquer coisa simplesmente, sabia
o que tinha que fazer. Mas não conseguiu. Ficou mudo e paralisado
diante de Kurama, diante de seus olhos e da solitária lágrima
que escorregou rapidamente pelo rosto alvo.
-
Não consegue nem me responder?- fora apenas
uma lágrima, uma linha brilhante enfeitando um rosto sério
e preocupado- Por que você não mente pra mim?- dessa vez Kurama
gritou- Por que não me engana?- Kurama soltou o braço de
Hiei e o segurou pelos ombros- Diga que consegue mentir, Hiei, por favor,
me diga que está tudo bem! Se você mentir... eu vou acreditar...
-
...
Um beijo. Foi a única resposta de Hiei. Kurama
foi agarrado com necessidade e sofreguidão. Hiei pressionou seus
lábios, afagou seu cabelo e explorou todo o seu corpo mostrando
o quanto não estava bem. Quanto mais Kurama permitia, mais violento
o koorime ficava. Hiei percebeu que sofria de dois tipos de fome, felizmente
iria saciar uma delas agora.
-
Não... NÃO!- Kurama afastou Hiei, empurrando-o
com os braços- Estamos fazendo a mesma coisa de sempre, você
não percebe? Não vê que assim não vamos resolver
nada?
O koorime não respondeu, confuso com a rejeição.
-
Por que não fala nada?- Kurama voltou a gritar-
Por que só me olha, não me responde? Faça alguma coisa!-
Kurama deu as costas a Hiei- Alias, não faça nada! Não
precisa me responder, já me respondeu!- a raposa virou apenas o
rosto para Hiei- E, depois eu decido se isso é bom ou ruim, mas...
você não sabe mentir...
Kurama sorriu pra si mesmo, como se tudo isso fosse
uma piada de mau gosto que faziam com ele.
-
Kurama...- Hiei abraçou sua raposa por trás-
...eu não estou bem...- deu um longo suspiro- Eu preciso de você,
mas me deixe resolver isso sozinho, por favor.
-
Acha que eu não posso te ajudar?- Kurama virou-se
para encará-lo
-
Você ajuda sim... muito.- Hiei afundou o rosto
no peito da raposa- Me trazendo de volta... me acolhendo.
-
Mas isso vai ficar até quando? Até
quando eu vou ter que ir te buscar e te acolher?
-
Você não sabe, não é?
Quer enfrentar tudo sozinho, mas não sabe se vai vencer ou não.
-
Eu não quero que se preocupe com isso...-
Hiei apertou o abraço, enquanto seu estômago voltou a incomodar.
-
Como não me preocupar?- Kurama o afastou um
pouco- Isso já dura mais de um mês! Não quero isso,
não quero chegar a um dia em que tenha que te buscar mas não
te encontrar... não quero te perder, te perder pra essa...- Kurama
tapou a boca com a mão assustado consigo mesmo
-
... isso não vai acontecer... eu prometo.-
Hiei o trouxe para perto, o vazio em sua barriga aumentando rapidamente
-
Agora consegue mentir... e eu só quero acreditar...
Essa fome maldita! Queria ficar com Kurama,
queria abraçá-lo e protegê-lo, mas essa fome tinha
de reaparecer justo agora? Não poderia aproveitar a presença
e a confiança de sua raposa? Hiei abraçou forte, apertando
mais Kurama em seus braços, querendo sentir cada vez mais aquele
calor que tanto lhe confortava. Como se fosse a última vez que pudesse
tê-lo assim, bem junto a si... com um suspiro Hiei se afasta.
-
Kurama, eu... preciso ficar sozinho.
-
Não me olhe assim!- Hiei desviou o olhar e
falou com raiva- Por que você simplesmente não faz o que eu
te mandei: não se envolva!
No segundo seguinte Hiei foi tomado por um enorme
sentimento de culpa. Sua fome não só o afastava de Kurama
como o fazia ser rude com ele. Não queria, mas a ânsia e o
desejo eram mais fortes e mais rápidos que sua racionalidade e Hiei
sempre acabava dizendo algo grosseiro, sem querer. Agora estava com fome,
muita fome, mas se desculpar com Kurama, não vê-lo com aquele
olhar triste era mais importante, muito mais importante. E mesmo que sua
fome estragasse tudo de novo, iria tentar.
-
Olhe, não foi...- Hiei tocou o rosto de Kurama-
Não foi o que eu quis dizer...
-
Eu não sei. O que você quis dizer?-Kurama
não se desviou do toque de Hiei, mas também não reagiu
ao mesmo
-
Você não ia gostar...- Hiei recuou a
mão e fez que ia partir, controlando ao máximo sua fome,
mas Kurama o puxou levemente de volta
-
Lembra quando você me chamou para roubar os
três tesouros do Reikai?- Hiei assentiu de leve com a cabeça,
sentia que se fizesse um movimento mais brusco, sua mente perderia para
seu estômago- Então... você não pensava em ninguém
apenas em si mesmo e no que queria conseguir...
-
Não é verdade!- Hiei interrompeu com
uma explosão de raiva repentina- Você sabe que eu...
-
Shhhh...-Kurama pôs um dedo nos lábios
de Hiei calando-o e sentindo como o koorime tremeu em reação
ao contato- Você também se lembra de quando ia acertar o Yusuke,
mas eu me coloquei entre vocês dois?
-
...- Hiei abaixou o rosto não querendo trazer
a cena de volta à mente- Não sei porque quer ficar lembrando
disso!
-
Naquele momento...- Kurama trouxe a mão de
Hiei próxima aos seus lábios- ...quando eu vi a reação
dos seus olhos... tão diferente! Você falava e agia de um
modo, mas eu vi em seus olhos, por um breve momento, eu vi que...
-
...eu me culpo até hoje por isso...
-
É... eu não vi apenas o seu espanto,
de eu estar lá, te traindo pela segunda vez... - Kurama deu um beijo
na pequena mão- Eu decidi que, não importando pra que lado
seguisse, eu estaria com você... Seja ao lado de Yusuke, seja contra
ele...
Hiei fechou os olhos com as palavras de Kurama fazendo
confusão em sua mente.
-
Você... não me ajudou... depois.- um
esboço de sorriso marcou a face de Kurama
-
Convenhamos que eu não estava em condições
de ajudar ninguém... e também esperava que com uma pequena
"lição" você pudesse mudar.
O silêncio tomou conta dos dois por um longo
tempo. De um lado o imenso vazio em seu estômago dizia para sair
imediatamente dali, do outro a confusão que as palavras de Kurama
provocaram nele, dizia para que ficasse e perguntasse:
-
...por que está me dizendo isso?
-
Eu achei que você deveria saber... eu vou ficar
sempre ao seu lado, sempre vou te apoiar no que for. Mesmo que você...
mesmo você sendo...- Kurama suspirou e prendeu a respiração
por um tempo, tomando coragem- ...mesmo que esse seu "comportamento" me
mate.
Hiei arregalou os olhos diante das palavras de Kurama.
-
Não me fale uma coisa dessas!!!- ele agarrou
Kurama pelos braços e o sacudiu com força- Você nunca
vai fazer uma coisa assim!- depois o abraçou e afagou a cabeleira
ruiva possessivamente com as mãos- Eu não vou permitir! Eu
não vou permitir! Você não vai...
Hiei soltou Kurama e desatou a correr. Não
acreditava nas palavras dele. Ele não sabe o terror que é...
e mesmo assim quer ficar ao seu lado! Ele não sabe... Hiei correu
em linha reta sem se importar com nada, árvores, pedras, animais...
animais! Tinha visto um... um animal típico do Makai. Hiei correu
um pedaço de volta e achou o que queria. Uma mistura de bicho e
de youkai, os ningens idiotas iriam chamar de monstro, mas Hiei chama de
comida. O suficiente para suportar mais algumas horas e conseguir por os
pensamentos em ordem.
O som da katana sendo desembainhada foi seguido
rapidamente pelo som do golpe no animal. Os dois foram tão ínfimos
e silenciosos que até a respiração entrecortada de
Hiei era mais chamativa no silêncio da montanha. Faz tempo. Hiei
ainda era criança e já comia animais como aquele. Mas sua
convivência com Kurama o afastou dessas coisas "primitivas".
Rasgando com os dentes o pedaço cru de
carne, Hiei xingava Kurama e o amaldiçoava com as mais terríveis
pragas que conhecia. Nenhuma delas era tão cruel quanto ele mesmo.
Preferia todas as pragas do mundo sobre si, mas, desgraça! Por que
ele?
Ajoelhado, Hiei soluçou. Enquanto sujava-se
de propósito com o sangue do animal morto, ele mastigava com força
e soluçava, mas não chorava, não conseguia chorar.
Ah! Como queria chorar! Gritar e derramar todas as lágrimas que
estão presas nele. Lágrimas que não caíram
na primeira morte, lágrimas que não caíram com o primeiro
pesadelo e que não caíram quanto o pesadelo começou
a se tornar real.
Transtornado, Hiei, joga a carcaça de sua
refeição longe. Sentado na neve vermelha, com o corpo quase
que todo coberto com sangue seco. Quase, o sangue envolta de sua boca e
nas mãos era brilhante e vivo. O koorime encolhe sobre si mesmo
e tenta agarrar a neve com as mãos, mas o sangue quente e seu próprio
corpo quente com o sangue novo, faz a leve cobertura branca derreter. Hiei
agarra o nada. Ele olha as gotas sem cor se misturarem com o vermelho vivo
e escorrerem para fora de sua mão. Tudo escapa, tudo escapa de suas
mãos. Por que ele insiste em querer ficar ao seu lado, por que insiste
em amá-lo? Por que ao invés de escapar, ele segura a sua
mão? Ele não percebe que pode morrer?
- IDIOTAAAAAAAA!!!!!!!!
Ainda de joelhos, Hiei fecha os olhos e dispara
um Kokuryuha para cima. Ele estava com as bandagens. O fogo negro trava
uma batalha com as tiras de pano enfeitiçadas. Hiei grita de dor
ao sentir sua pele queimando enquanto as bandagens resistiam fielmente.
O dragão púrpura cresce então, com a vontade de auto-flagelação
do youkai e ganha o céu. Seu corpo gigante se revolta no ar e destrói
qualquer tipo de vida existente a sua volta. Uma grande clareira se forma,
com Hiei no seu centro, o rosto virado para cima, recebendo o calor de
seu mais poderoso golpe. As chamas revoltosas, que escapavam do corpo do
dragão, tremelicavam, acariciando seu pescoço, beijando seus
lábios e desarrumando seus cabelos.
A dor. A dor que se fez obrigado a sentir. Por
que os carinhos de Kurama não eram assim, se só o que fazia
era machucá-lo? Por que, mesmo magoado e ferido, Kurama era delicado
e carinhoso?
O dragão morre. Depois de alcançar
uma altura quase infinita, ele morre. As últimas chamas, nasciam
e morriam antes de ultrapassar seus dedos. Antes que pudessem machucar
e ferir.
- Não está certo...
Hiei sussurra triste enquanto cai, num sono profundo,
sobre a terra. A neve derretera toda, a água evaporara toda. "Escaparam.",
foi o último pensamento do pequeno koorime. Com queimaduras impressas
como tatuagens no seu corpo, ele parecia estar morto. Do céu, de
onde morrera o dragão, um pequeno floco de neve cai. Uma brisa passa,
mas ele não se desvia de seu caminho. Cai lentamente, dançando
no ar e pousa lentamente na mão queimada de Hiei. Imediatamente
evapora. Alguns segundos depois outro floco, também vem sozinho,
e pousa de novo, na palma aberta. Evapora. De novo, outro pequeno floco
branco, acompanhado de outros igualmente pequenos. Mas persistentes. Eles
também evaporam no calor do koorime, mas são seguidos. Depois
deles aparecem flocos maiores, e seguidos de mais flocos e mais e mais...
Cobrem todo o pequeno corpo de branco. Hiei se mexe. Está tendo
um pesadelo... não escapou. Voltou...
CONTINUA...