Fome Youkai



 

Por Umi no Kitsune

Quatro - O Mais Doce Amargo...


Doce, extremamente doce... está mexendo comigo. Doce... por que doce? Meu corpo todo dói, mas esse gosto... ameniza tudo. Sinto carícias percorrerem os pontos onde a dor é mais forte. Meus músculos relaxam e eu nem percebo, são carícias doces. Uma melodia chega aos meus ouvidos, não... não é uma melodia. É o som da voz de alguém... distante... mas melodioso. É uma voz doce! Quem... quem está brincando tão docemente com meus sentidos? Sinto-me fraco, entorpecido... e protegido. Quem é? É somente doce...

Hiei abre lentamente os olhos. As pálpebras pesando, querendo deixá-lo na escuridão reconfortante. As figuras vão se formando na sua frente. A voz doce de novo... olhos verdes docemente preocupados... o gosto doce... extremamente doce. Impregnado em seus lábios, invadindo sua língua, adoçando a sua garganta... Kurama.

Kurama se aproximou devagar e dei um pequeno beijo no Jagan. Hiei, realmente fraco, apenas fechou os olhos, cedendo ao sono. Mas antes mesmo de seus olhos fecharem, antes que Kurama se afastasse completamente... no lugar onde a raposa o beijara... o Jagan se abriu.

Seus sonhos eram a realidade... Kurama se afastou, mas não muito. Tinha apenas virado de costas e permanecia de pé ao lado do koorime. Com uma mão a raposa afastou a franja e olhou para o céu. Quando estava abaixando os olhos para ver novamente o rosto de Hiei, Yusuke chegou.

Yusuke virou o rosto, não querendo encarar o olhar triste do amigo. Yusuke aponta o dedo para Hiei, que continua deitado e responde gritando: Mesmo sabendo estar errado, Kurama tira uma pequena rosa de seu cabelo. No segundo seguinte, Yusuke está com um rose whip sem espinhos, envolta de seu pescoço, tirando-lhe o ar. Kuwabara e Koenma que assistiam a tudo afastados se levantaram, surpresos e completamente sem reação, diante do ataque de Kurama. Kurama olhou surpreso para Koenma. Os outros três se aproximam. Kurama tenta tocar a testa de Hiei, mas este, ainda dormindo segura sua mão. Kuwabara dá um grito, assustado. Hiei continuava sereno e sem mais nenhuma reação, apenas sua mão segurava firmemente a de Kurama, chegando a machucar. Kurama, sozinho e preso a Hiei, se aproxima do ouvido deste e tenta acalmá-lo. "Quais coisas devem estar passando pela sua cabeça agora?"
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Hiei estava louco, perdido, transtornado depois de ver que Kurama sabia da existência de sua fome. Ele sabia... Pela primeira vez Hiei perdera o controle entre realidade e sonho na visão de seu Jagan: Tinha se levantado e lutado com seus amigos, matara a todos... menos Kurama que estava gravemente ferido em seus braços, quase morto... Kurama não lutou, não se defendeu, não chorou... apenas olhava... Kurama não gritou, nem tentou se afastar, apenas fechou os olhos contra a dor. Quando percebeu que Hiei parara de sugar seu sangue, virou o rosto e o encarou nos olhos. Hiei desviou o rosto e Kurama aproveitou-se chegando perto do seu ouvido. Hiei fechou os olhos esperando uma mordida tão forte quanto a dele... O koorime abriu os olhos surpreso. Depois, como perdendo as forças, deixou seu corpo cair sobre o de Kurama, e escondeu seu rosto nos cabelos da raposa, manchando-se com o sangue que ainda escorria dos ferimentos dele. Hiei foi soltando as mãos de Kurama e correu com elas pelos braços da raposa, o abraçando por trás, finalmente.
 


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Kurama observava aflito as reações de Hiei conforme ia falando. Nada do que dizia ao koorime funcionava, apenas o aperto em sua mão ficava mais forte, com seus dedos já roxos pela falta do fluxo de sangue. Foi quando Hiei murmurou algo inteligível. Kurama não entendeu o que ele quis dizer, foi muito baixo. Mas, Hiei falou mais alto... perguntou mais alto...

O ruivo não teve dúvidas e se aproximando do ouvido do koorime novamente, disse com uma voz firme e alta, que até os outros três rapazes escutaram sua resposta: Passou-se então alguns segundos, longos demais para todos na montanha. Hiei finalmente afrouxou o aperto na mão de Kurama, até que seu braço caísse, como sem vida, no colo da raposa. Kurama sorriu, e mesmo com Hiei ainda inconsciente, abraçou o pequeno corpo. O trouxe bem próximo e aninhou-o a seu próprio corpo. Observando tudo, estavam Yusuke, Kuwabara e Koenma.


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"Já se passaram mais de cinco horas... Todos estão dormindo. Eu não posso mais ficar aqui. Kurama... eu não posso prometer voltar. Yusuke está certo, não consigo passar nem uma semana sem comer... sem comer humanos. Eu não quero te machucar... Eu estou morrendo de fome, e... não vou voltar até acabar com ela. Definitivamente. Vou te proteger da minha fome... de mim."

Na escuridão da noite, apenas o brilho dos olhos de Hiei chamava a atenção. Eles velavam o sono de Kurama, atentos e dedicados a cada detalhe, a cada reação da face da raposa. O brilho se apaga. Hiei, de olhos fechados, tira o braço que o envolve na cintura e levanta-se. Kurama se mexe desconfortável embaixo da manta. Hiei leva uma mão ao pescoço e tira a pérola de sua mãe, depositando-a na mão de Kurama, que instintivamente a esconde fechando a palma da mão.

Com um suspiro triste, Hiei coloca a faixa branca sobre o Jagan e prepara-se para partir.

Hiei estanca assustado. Foi descoberto! Girando a cabeça na direção da voz, o koorime se depara com Koenma em pé e os outros, felizmente, ainda dormindo. Koenma estremece com as palavras de Hiei e com o tom usado nelas, instintivamente recua um passo. Mas engole o medo dizendo sério, pensando na decisão que Kurama poderia tomar: Hiei ri baixinho das palavras do humano e se vira apontando um dedo na cara de Koenma: Alguns segundos depois, Kurama acorda assustado e percebe a jóia em sua mão. Olha envolta e vê Koenma parado e estático olhando para a escuridão da noite. Kurama sente um choque correndo pelo seu corpo. Imediatamente levanta e sem pensar em mais nada, passa correndo por Koenma e some na escuridão, assim como Hiei.

Antecipando uma tragédia, Koenma se vira para Yusuke e Kuwabara que, para a sua surpresa, já estão em pé e observaram tudo.


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Enquanto corria, Hiei, pensando estar sozinho, deixa a loucura da sua Fome dominar sua mente. Seus olhos brilham com a ferocidade antiga de seu verdadeiro caráter: Youkai. Ele não preocupa-se mais com a velocidade e sim, com a busca... a tão esperada caça! Hiei não é mais racional. Tanto tempo sem comer, sem sangue e carne humana, fez seus sentidos desnortearem para o lado mais cruel de um youkai... animal. Ele virara um animal faminto em busca de seu alimento.

Sim... podia sentir. Afinal é a lei da natureza. Quem caça também é caçado. Podia sentir-se ameaçado, caçado por seres poderosos. Estavam separados, queriam cercá-lo! Não! Não ia deixar... não agora que notou que seus caçadores também eram a sua caça! Não estava enganado, eram humanos! Três dos quatro que o caçavam... humanos. Sua Fome iria ser saciada... finalmente!

Hiei parou de correr e pulou para um dos galhos em uma grande árvore, uma rara com folhagem espessa mesmo nesse frio. Se agachou e fechou os olhos. O cheiro de humano chegava forte em suas narinas, fazendo-o salivar de antecipação. Um deles estava perto, corria muito rápido, ia passar por ele a qualquer instante...
 

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Yusuke não se lembrava de ter corrido tão rápido em toda a sua vida. Não queria pensar no que Hiei ia fazer, no que Kurama ia sofrer... estava preocupado no que iam se transformar...

Foi quando se deu conta. Havia alguém correndo atrás dele! Bem próximo! Sem olhar pra trás, Yusuke identificou o ki como o de Hiei... mas não fez nada, apenas continuou correndo. Continuou correndo porque não conseguiu ter outra reação! Era o ki de Hiei, tinha certeza disso... mas...

Antes que Yusuke pudesse completar qualquer pensamento, Hiei deu um pulo, parando alguns metros a frente do detetive, com a boca aberta e os caninos a mostra... a espera da presa.

O filho de Raizen pode sentir todo aquele desespero de novo... A lembrança de seu pai lhe abocanhando o ombro e sugando com prazer todo o sangue que saia da mordida. Mas dessa vez era um amigo... Hiei, com os dentes fincados em sua carne, mexia com a mandíbula, rasgando cada vez mais os músculos, enquanto unhas afiadas desenhavam um caminho de sangue por seus braços.

Yusuke gritou de dor e segurou com as duas mãos a cabeça de Hiei, tentando afastá-lo de seu pescoço. Hiei estava muito mais forte... mais do que o normal. Yusuke não entendia... tanto tempo sem comer, mas sua força parecia que aumentava cada vez mais!

Foi quando Hiei fincou mais seus dentes na carne humana e puxou o naco fazendo Yusuke gritar mais forte até perder a força das pernas e cair de joelhos. Hiei enguliu de uma vez o grande pedaço de carne e segurou o meio-humano pelo pescoço antes que ele caísse completamente no chão. Olhou bem nos olhos de sua presa... estava com a cabeça de Yusuke em suas mãos. Por mero prazer, Hiei finca as unhas próximo as orelhas da caça e corre com elas até o queixo. Yusuke contrai todos os músculos de seu corpo e começa a tremer com o passeio das unhas de Hiei por seu rosto.

O korrime faminto traz uma das mãos banhadas de sangue até a boca, sem tirar os olhos de Kurama, mas antes que pudesse lamber o líquido rubro... Kurama corre e segura Hiei nos braços que começa a tremer em convulsão. Kuwabara e Koenma chegam e vão ver Yusuke, caído no meio da neve, com um grande pedaço de músculo exposto no ombro.


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Hiei aspirou profundamente o cheiro do humano que o abraçava... nunca sentiu um cheiro tão gostoso, tão bom... tão doce. Se não estivesse com fome, poderia poupá-lo para que esse singular perfume humano não desaparecesse, para que essa fragrância estivesse sempre a sua disposição para acalmá-lo. Mas isso "se" não estivesse com fome...

Kurama foi pego de surpresa quando sentiu cinco pontadas dolorosas na lateral de seu estômago. Não precisou sequer se mexer para constatar que eram as unhas de Hiei que atravessavam o grosso agasalho e furavam sua pele. Olhou para Hiei e ficou sem fala com o que viu. O koorime o abraçava e mantinha o rosto parcialmente escondido no seu peito enquanto o olhava intensamente. Kurama não soube identificar... um brilho no olhar, um olhar sombrio. Assim Hiei o encarava. E dizia tudo sem pronunciar nenhuma palavra : "Você é meu!"

Desconcertante! Hiei ficou preso aqueles olhos verdes tão assustados e tristes. "Que combinação desconcertante..." pensou. Ele sabia que não podia só admirar, esse humano era seu agora, somente seu, mas não podia vacilar. Os outros ainda não perceberam o que aconteceu, achavam que ele estava desmaiado. E esse humano... ele não tinha nenhuma reação!

Hiei caminhou com o olhar pelo rosto de Kurama. Os cabelos ruivos levemente despenteados tentavam-no a retirar as unhas da carne para fazer seus dedos se perderem naqueles fios. Fios que denunciavam uma maciez inigualável... era dali que vinha o perfume. Ou melhor, todo o corpo do humano exalava um leve perfume doce que fazia Hiei perder-se na sua real vontade. Irritado consigo mesmo, o koorime afunda mais as unhas e, fazendo notar-se pelos outros, corre com a mão pelo abdômen do humano. Kurama grita e cai no chão com Hiei sentado em sua cintura. O youkai termina de rasgar o agasalho deixando a mostra as cinco linhas de sangue que manchavam a pele branca.

Yusuke, Kuwabara e Koenma olhavam como estátuas Hiei abrir a boca e encarar seu alvo: o pescoço de Kurama. A raposa, por sua vez, não fazia nada. Ainda recuperava o fôlego, usado ao máximo no último ataque de Hiei.

Kurama fechou os olhos evitando que as lágrimas caíssem, mas abriu logo em seguida ao sentir um toque delicado em seu peito. Hiei estava de olhos fechados e tinha, guardada em sua mão, a lágrima-jóia de sua mãe.

Um grande momento de silêncio se fez. Hiei, ainda de olhos fechados, deitou pesadamente sobre o peito de Kurama, que o abraçou. Não... Kurama... não... estava oferecendo seu corpo!!! Kurama estava oferecendo seu corpo humano! Ele ficou louco... quer morrer... morrer por mim! Não pode ser... ele não pode querer isso! Eu não quero isso!!!

Kurama não sentiu mais nada, apenas um vazio quando, rápido demais para que percebe-se, Hiei sumiu de seus braços.

É loucura... ele é louco! Como pode me oferecer seu corpo? Eu não quero a carne dele! Não quero matá-lo... Eu quase... quase o matei! Yusuke... por que isso tudo não acaba? Porque não é um pesadelo? Por que teve que se tornar real???

Hiei decidiu que ficar com esses pensamentos só iria arrastá-lo mais para o fundo do poço. Esvaziou sua mente de qualquer imagem, de qualquer lembrança e correu. Correu para aquele que seria o único que poderia talvez ajudá-lo...
 
 
 

CONTINUA....