Cap.4 - Relógio de Areia
Meus nervos formigavam, mesmo repetindo dentro de mim que aquilo era fruto da arrogância de youko. Desde que ouvi que Yusuke foi até Layara, esta sensação apenas aumentara junto com o conflito de duas consciências.
Uma dizia que era uma besteira estar assim. Várias vezes Yusuke se meteu em encrencas e sempre voltava são e salvo com um sorriso maroto, típico dele. A outra dizia que tinha de ir logo atrás dele e traze-lo de volta. Layara sempre foi um local perigoso, desde a época em que eu era youko. Mesmo para mim era um lugar perigoso e traiçoeiro, cujas paredes eram negras pelo sangue que foram sugados por anos e anos repetitivos.
O branco deste quarto parecia me esmagar, me sufocar. Queria me levantar mas minha outra metade me dizia que não, alertando-me não só do meu ferimento mas também do feitiço maldito que aquele youkai lançara contra mim.
O desespero corria-me por dentro, porém tinha de reagir, mesmo sentindo a sombra da incerteza tocar-me pelas costas para que me virasse, entregando-me a ela.
Escutei o som contínuo de passos sobre os corredores polidos e uma perspectiva surgiu dentro de mim. Levemente levantei-me usando meus cotovelos a observar a porta quando ela se abriu bruscamente, dando-me vista do jovem esbelto, quê avistando-me em melhor estado, abriu um sorriso leve de alívio.
"Pretende continuar parado ou quer entrar?"
Perguntei a ele sorrindo, tentando disfarçar o vento frio que soprava dentro de mim. Yusuke fechou a porta e puxou a cadeira qual ele amanhecera a alguns dias atrás.
"Teve sorte nas buscas?"
"Tive sim. Encontrei um cara que pode acabar com essa coisa aí."
Respondeu ele num sorriso extenso, porém, consegui ver dentro dele ainda uma súbita sombra de preocupação.
"É um youkai meio estranho. Recomendações da rainha da fronteira."
Ao continuar,
"E o machucado, como vai?"
"Bem." Sorri.
"Apenas um pouco entediado de ainda ter de ficar nesta cama."
Falei tocando no local onde permanecia apenas um pouco de dormência.
Uns minutos de silêncio permaneceram na quarto.
"O quê foi?"
Perguntou a mim que hesitava a abrir meus lábios a dizer uma outra coisa que permanecera dentro de mim desde o dia em que eu fugira uma vez daqui, porém me decidi e tentei me sentar quando a bateram na porta.
"Entra."
Yusuke induziu e eu voltei a me deitar na cama macia vendo a porta sendo aberta sem e menor ruído.
"Com licença."
Uma voz suave bateu em meu ouvido, fazendo-me arregalar os olhos no abrir repentino de uma velha parte da minha memória. Da porta do quarto veio andando uma presença familiar, se refletindo no olhar paralisado, fazendo-me me sentar na cama.
"Feilong..."
Minha voz nitidamente estava trêmula.
Feilong afinou seus olhos num sorriso sereno, fazendo que Yusuke me olhasse espantado.
"Cêis se conhecem?"
"Sim...Somos velhos conhecidos."
Respondeu Feilong.
"Como...?"
Uma voz rouca saiu da minha garganta.
"Não precisa me olhar assim, Kurama. Estou vivo, como pode ver."
"Não sei se declaro isso como sorte ou azar."
Feilong recolheu a mão cuja palma estava direcionada para mime fechou o livro de letras douradas. Yusuke estava apoiado na parede ao lado da janela, observando seus passos.
"Porquê?"
"Porque esta maldição normalmente não consegue atingir youkos, Kurama."
Respondeu Feilong.
"Vocês, youkos, não são youkais por natureza e sim se tornam em um após seus cem anos de vida, diferente de muitos outros que são youkai de nascença."
"Então porque foi atingir o Kurama?"
"Porque Kurama se reencarnou, Yusuke."
O sábio de Layara respondeu Yusuke que tinha interrompido a sua explicação.
"Kurama nasceu novamente. Agora ele é como você, meio humano e meio youkai."
"E?"
"Significa que eu nasci novamente, e agora como youkai, podendo ser atingido."
Respondi por Feilong, vestindo minha túnica branca que tinha despido até o ponto de poder deixar exposto o local do curativo.
"Quer dizer que se você tivesse lutado como youko não tinha acontecido nada?"
"Pelo contrário."
Feilong respondeu para Yusuke.
"??"
Yusuke ficou mais confuso e franziu a testa.
"Porque agora sou um youko de nascença, Yusuke."
O mestiço entre humano e demônio olhou para mim. Finalmente terminando de abotoar a túnica continuei.
"Um youkai não pode viver sem seu youki. Tanto o reiki quanto o youki serve como uma corrente que liga a alma com o corpo. Mesmo quando se sente como se seu youki estivesse já esgotado, na verdade ainda há uma reserva. Se eu estivesse na forma de youko, todo meu youki teria desaparecido me levando à morte."
Yusuke engoliu o ar frente a possibilidade de eu poder ter morrido.
"Ainda mais, presumo que não posso mais voltar à minha forma real."
Se fizesse isso, teria uma morte instantânea.
"Sim, até que a maldição seja desfeita."
Com o continuar de Feilong,
"E se tem idéia de como?"
Yusuke olhou para o doutor de túnica verde escura que refletiu por alguns segundos.
"... Não há casos relatados de alguém que tera escapado da morte, muito mais se referindo a uma situação como a que nos referimos."
Feilong olhou para os livros que estavam na mesa às suas costas. Pilhas estavam lá, todas já lidas e relidas várias vezes.
"Precisarei de um lugar isolado, longe das influências de forças como campos de energia e essência de mireiju."
"Lugar isolado e essência de Marajó? Decha comigo."
"É mireiju, Yusuke."
Quando Yusuke enroscou sua mão na tranca Feilong corrigiu sorrindo com o erro do garoto. Yusuke parou por alguns instantes, até que se recuperou do fora que dera e saiu do quarto, deixando dois olhares tentando observar além da porta.
Logo, voltei meu olhar para Feilong.
Sua face era serena. Parecia que nada mudara desde a ultima vez que o vi, uma noite antes dele ter sido levado por soldados de um antigo rei e ser executado...aliás, era assim que eu pensara até algumas horas atrás.
Feilong, reparando no meu olhar, sorriu para mim, trazendo do fundo da minha memória algumas cenas que passamos juntos.
"Fico feliz por estar vivo."
Falei sinceramente recordando-me da hora em que tinha ouvido a notícia de que ele tinha sido executado. Na época não quis admitir, porém realmente fiquei abalado a ponto de não sair dias da minha toca, apenas bebendo o sakê que tinha guardado para o próximo encontro que teríamos e que não foi realizado.
"Lamentei quando me informaram sua morte, Kurama. Muitas vezes refleti os dias em que você vinha até minha casa, e embebedado, falava-me que era imortal e que nunca seria pego. Porém..."
O único sobrevivente do clã de Shenlong sorriu levemente de um modo que chamou a atenção de Kurama.
"Nunca pensei que sua teimosia iria a tal ponto."
"Feilong."
"Sim?"
Mostrei um sorriso amargo a ele, e quando nossos olhares se cruzaram novamente, pronunciei as palavras que estavam na minha mente desde a explicação dele...
"...Quanto tempo de vida me resta."
Vi seus olhos cor de jade tremerem, refletindo o abalo que ele sentira. Sim, sem youki, nenhum youkai pode viver, e ninguém pode viver com a morte da sua metade...
Feilong fechou os olhos, consolidando a minha suspeita que já era quase certeza.
Sou um ser cujas partes humanas e demoníacas se fundiram, tornando-se em um só. Assim, o youko que está dentro de mim está salvo, porém por pouco tempo. Pouco a pouco ele irá se enfraquecer, se diminuir, até que acabará se extinguindo, levando tanto Minamino Shuichi quanto youko Kurama à morte...
"...Não posso lhe confirmar prazos, Kurama..."
"Então, pode ser a qualquer minuto..."
Feilong fitou-me, e lentamente afirmou com a cabeça. Deslizei meu olhar até a janela. O céu estava limpo, alto, silencioso. Não havia medo, apenas tristeza de saber que não poderia retribuir todo o carinho que recebi de minha mãe desmerecido por dezoito anos.
"Kurama."
Ao chamar, direcionei apenas a minha atenção para Feilong.
"Isso não significa que logo chegará a hora. Pode demorar anos até séculos. Tentarei encontrar um método de desfaze-la o mais rápido possível. Eu lhe prometo."
Mesmo calma, sua voz era de determinação. Ao meu agradecer, Feilong se levantou para sair do quarto quando eu o chamei.
"Pois não?"
"Não conte nada ao Yusuke, por favor."
Vi nos seus olhos um leve espanto, que logo deu novamente espaço
a um sorriso ameno, que se desapareceu pela porta da torre.
CONTINUA