Quando é pra ser, é mesmo e a alma não avisa paradeiro nem direção. Simplesmente vai. Nem se despede. Se muda de endereço nem piscar de olhos apaixonados. O corpo logo acompanha e tudo fica fácil e melódico como balé ensaiado ao extremo movido pela química misteriosa e universal que rege a atracão dos corpos. Tudo se encaixa. Tudo margeia. Tudo penetra. Vai e volta. Desliza suave. Serpenteia. Tudo seduz. Tudo é motivo de beleza e luz permeado por incertezas à princípio discretas, no futuro diretas e no fim, certeiras. Quando se vê, já foi e você agora é todo de alguém. Quem? Não importa. Isso você só fica sabendo quando atravessa a porta. E quando tudo, já mais que misturado, já mais que liquidificado e dissolvido no fundo sem fundo do seu peito resolve voltar pro lugar, já é tarde. Tudo o que havia antes já não está mais lá e o que ficou se perdeu na confusão armazém em fim de estoque. Você ficou só e se tiver sorte, pensará em tudo o que aconteceu e verá que diferente do que lhe pareceu, tudo havia de ser mesmo assim. Não. Nada foi em vão. O teu medo não foi à toa. Não foi por acaso que você enfim teve coragem de pular daquela proa. Tava com medo do que havia embaixo. Medrosa de ver a extensão do oceano. Agora respire fundo e rasgue de vez todo o seu pano. Uma coisa é certa, você não tem como voltar. Você não tem como fazer com que o momento se desfaça no ar. Não dá. Eu já tentei. Já fiquei pensando horas a fio e quase me matei tentando recuperar este mesmo fio de pensamento que teima em nada se amarrar. Agora tudo é aleatório. Tudo é perdido. Tudo é transitório. Tudo não é mais seu. Nem meu. Passou a ser tudo de qualquer um, já que nenhum de nós foi unidade. O que era umidade virou arenoso. O que era ressecado, virou sedoso. Como o cabelo que eu tinha mania de tirar de tua fronte. Como a textura da moeda jogada por mim naquela fonte. Como o cheiro cremoso do bom sabonete quando se ensaboa. Como o som chuvoso dessa pouca garoa que agora me atordoa e que rapidamente fez-se desaparecer. Que fez tudo molhar. Mudar de lugar. Amanhecer.”

 

Alice Venturi

(.Durante a Garoa. 12-13-23/04/2002. )