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"Senhora, partem tam tristes"

HISTÓRICO
Fevereiro • 2000

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Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d' esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz Castell-Branco

ESTRUTURA EXTERNA

O poema é constituído por um mote de quatro versos e uma glosa de nove versos, repetindo-se o último verso do mote no final da glosa. Trata-se, portanto, de uma cantiga.

Apresenta o seguinte esquema rimático: ABAB CDCCDABAB. No mote, as rimas são cruzadas; na volta, há rima emparelhada entre o 7º e o 8º versos, interpolada entre o 6º e o 9º e rimas cruzadas nos restantes.

Os versos são todos de redondilha maior (7 sílabas), graves e agudos. O ritmo é binário, pelo facto de todos os versos possuírem dois acentos rítmicos.

TEMA E DESENVOLVIMENTO

Como é habitual neste tipo de poemas, o tema (tristeza decorrente da partida) é expresso de forma sintética no mote ("Senhora, partem tam tristes / meus olhos por vós...") e desenvolvido na glosa. Assim, a estrutura externa (mote e glosa) determina a estrutura interna (tema e desenvolvimento).

O discurso poético dirige-se de um "Eu" (o sujeito poético) para um "Vós", identificado pela dupla apóstrofe inicial ("Senhora", "meu bem"). A interpelação do destinatário à cabeça do poema confere-lhe um carácter apelativo, revelando o verdadeiro objectivo do poeta: exprimir os seus sentimentos, é certo; mas principalmente comover, com a exposição deles, a amada. O sujeito poético adopta, portanto, uma postura de dependência - de quem não ousa pedir, mas apenas sugerir - que faz lembrar a dos trovadores face à sua dama, prova de que algo da estética provençal foi incorporado na tradição poética e perdurou através dos tempos.

No entanto, o sujeito poético é apenas explicitamente referido no segundo verso do mote ("meus olhos"), para logo se diluir, centrando-se o discurso, a partir daí, nos olhos, que, para o efeito, são personificados . De facto, são os olhos que partem ("...partem tam tristes / meus olhos...") e é deles que o poeta fala sempre, no decurso do poema.

A utilização dos "olhos" como elemento polarizador da vida afectiva, tão frequente em poesia, tem uma evidente justificação psicológica. Sendo, objectivamente, a principal porta de comunicação com o mundo exterior, tendemos todos a ver neles como que uma janela através da qual podemos vislumbrar o interior do outro. Não é por acaso que são considerados o "espelho da alma". Quando as palavras são insuficientes, é nos olhos que procuramos a confirmação do que desejamos ou receamos.

Mas é com as palavras que os poetas trabalham e, antes de chegar ao fim do mote, o sujeito poético procura exprimir a intensidade do seu sofrimento de forma hiperbólica ("...nunca tam tristes vistes / outros nenhuns por ninguém"). A hipérbole é outro recurso estilístico com raízes psicológicas profundas e por isso utilizado com muita frequência, até na comunicação quotidiana. De facto, o exagero é um processo espontâneo de afirmação veemente.

Apresentado o tema, vem o seu desenvolvimento.

A glosa retoma exactamente a afirmação do mote, agora apresentada de uma forma mais elíptica : o sujeito e o verbo (meus olhos partem) são omitidos e fica apenas esta expressão adjectiva, mais curta e incisiva, como uma pancada que nos abala interiormente - "Tam tristes". E segue-se uma extensa (dado o tamanho do poema) acumulação de adjectivos, com os quais se pretende sugerir a intensidade do sofrimento: saudosos, doentes, cansados, chorosos, desejosos (da morte).

Naturalmente, esses adjectivos possuem um valor semântico fortemente disfórico, de forma a descreverem o profundo mal-estar em que o sujeito se encontra. A enumeração apresenta-se sob a forma de gradação , dispondo-se num crescendo que vai do óbvio "triste" até o "desejosos" da morte. Além disso, cada um dos adjectivos da série é precedido pelo advérbio de quantidade "tam", reforçando-se desse modo o efeito significativo da acumulação.

O nível fónico colabora nessa expressão obsessiva do sofrimento pelo recurso à aliteração do /t/, que percorre todo o poema, mas se acentua exactamente nesta parte. Por meio da aliteração, reforçada pela repetição anafórica do advérbio "tam", cada um dos adjectivos com que se qualifica os olhos (e, portanto, o próprio sujeito) atinge-nos como uma pancada. O ritmo (outro elemento de natureza fónica) colabora também nessa tarefa, na medida em que cada sintagma adjectival corresponde a um elemento rítmico do verso:

(...)
Tam tristes | tam saudosos |
tam doentes | (...)
tam cansados | tam chorosos |
(...)

E uma análise mais atenta revela-nos que a aliteração do /t/ tem ainda um outro efeito. Liga entre si, de forma inconsciente, algumas das palavras mais significativas do poema: partem/partida, tristes, vistes e o advérbio tam. Assim unidos, cada um deles reforça o valor expressivo dos restantes.

E a série termina, mais uma vez, com uma expressão hiperbólica ("da morte mais desejosos / cem mil vezes que da vida"). Mas aqui a hipérbole é reforçada pela combinação com a antítese que opõe morte e vida. E a antítese, por sua vez, adquire maior força expressiva pelo recurso ao hipérbato , que coloca em posições extremas (início e final de verso) os dois elementos do par antitético:

(...)
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida
(...)

A segunda parte da glosa (vv. 10 a 13) retoma o mote, iniciando-se com a expressão utilizada no primeiro verso ("Partem tam tristes"). Mas continua o esforço para exprimir a intensidade do sofrimento, agora com a associação do adjectivo "tristes" com a sua forma substantivada "os tristes" (=olhos), a que se acrescenta explicitamente uma nota de desespero ("tam fora d'esperar bem").

O poema termina com a mesma hipérbole que fechara o mote ("que nunca tam tristes vistes / outros nenhuns por ninguém"), adquirindo assim uma estrutura circular, que sugere a ideia de que o sujeito está inexoravelmente condenado a sofrer o seu sofrimento, como se estivesse fechado dentro de uma redoma.