6 1 , r u e d ' A v r o n A ocupação dos edificios na Paris intramuros tem uma historia tão conturbada quanto a historia do proprio século XX e as mudanças (as vezes pontuais e insignificantes) do tecido urbano e configuração social de seus bairros. Como em toda grande cidade do mundo, a população « sem-teto » se mobiliza para conquistar seu espaço e exigir do Estado moradia digna para a população que ali se instala. Na França, os edificios ocupados, o equivalente aos cortiços no Brasil, chamam-se « squats », termo emprestado do Inglês. Em 1997, esse foi o caso de um edificio na Rue d’Avron, ao leste de Paris, ao sul do « Arrondissement » 20. Dois edificios de escritorios, uma torre de 11 andares face à rua e uma lamina de 7 pisos no interior do quarteirão, com acesso sob a torre. Por algum motivo que ainda não descobri ( a genealogia dos squats pouco importa), o edificio estava vazio e foi tomado por uma das organizações dos « sem-teto » da cidade. Essas organizações estão sempre alertas para os edificios que passam por algum motivo para o poder publico e ficam aguardando na justiça um destino. No caso da Rue d ‘Avron, a grande maioria dos seus ocupantes é de familia imigrante, majoritariamente da Africa, à espera de papéis de legalização, ou se ja são legais esperam somente um HLM, como é chamada a habitação social atual na França. Quando estive em Paris em 1996, na faculdade conheci Dominique, a secretaria da escola e que nos ajudou na montagem da exposicao da PUC la. Nesta ocasiao em 2001, Paulo e Valentina, meus pais adotivos na França, entraram em contato com ela para saber se conhecia um lugar onde eu pudesse ficar. Foi ai que soube que Antonin, o filho de Dominique estava presente na tomada do tal edificio em 1997 e estava aguardando na lista dos HLM, ainda ocupando um apartamento no dito squat. Como a vida não é tão facil para ser levada numa sala de escritorios adaptada, ele usava o apto como atelier, e buscava alguém para dormir ali, assim poderia dividir os gastos de eletricidade com alguém. Não ha gastos de aluguel, porém o dinheiro dado à associação dos moradores deve cobrir os gastos gerais de eletricidade. Isso não é pouco, são 80 dolares por mês ; porém nada comparado a um aluguel em Paris, que hoje beira os 500 dolares no minimo para 15m2. Desde o dia 27 de janeiro estou morando ali, no sétimo andar do edificio de tras. Na verdade a torre que fica na frente do edificio tinha sido tomada também, porém sofreu um processo de degradação rapidamente, associações tinham se instalado, e o que é certo nesse caso, quando trata-se de qualquer ocupação que não o de habitat, a quebradeira do imovel é tal que fica impossivel ocupa-lo de forma definitiva. Esse é o caso de muitos dos squats ocupados por artistas que não moram nos edificios, porém somente trabalham nas salas. São geralmente expulsos rapidamente, inclusive, pela policia. Ha uma lei na França que proibe a expulsão de qualquer invasão antes do mês de março, por causa do frio do inverno : um abrigo é um direito durante os meses de inverno. No caso do squat rue d’Avron, a expulsão é algo longe da realidade, pois a pressão politica é grande para que a associação organizada tenha seus direitos e seja ouvida, apesar das negociações durarem mais de três anos. Assim , tenho um magnifico apartamento de três peças so pra mim, Antonin e os amigos usam um dos quartos como atelier mas somente durante o dia, enquanto eu trabalho, e quase nunca encontro com eles. Aproximando-se do edificio pela rua, atravessa-se um patio localizado entre a torre e a lamina, alguns carros pertencentes a algumas das familias que ali moram. O térreo esta completamente vazio, o hall de entrada dos antigos escritorios serve de patio de brincadeiras das crianças (que falam uma mistura absurda de linguas entre elas) e morada dos ratos que passeiam entre os lixos e os poroes. Subindo as escadas, aos poucos a luz vai faltando. As familias numerosas ocupam os primeiros três andares, as pessoas mais velhas têm dificuldade em subir. Os corredores vao ficando mais escuros e mais sujos. Nos primeiros andares a ação para tentar arrumar o aspecto dos corredores se resumiu a retirar o carpete azul marinho do chão, deixando o piso descoberto. Enquanto se sobe, o carpete vai retomando seu lugar, e também o cheiro de humidade. As grandes janelas de escritorio voltadas para o Norte (pouquissima luz, portanto) mal chegam a iluminar as portas dos antigos elevadores . Ao lado da caixa da escada ficam os banheiros, os vasos higiênicos são compartidos por todo o andar pois como escritorios, é dificil a adaptação do sistema de esgoto aos apartamentos. Chegando no sétimo andar, no fundo do corredor, a apartamento toma tres salas, interligadas entre si. Ao entrar, depara-se com a cozinha/sala, com uma magnifica vista sobre o sul de Paris, vista livre impagavel numa cidade onde a ausência de céu enerva. Nos fins de semana com sol, o apartamento fica incrivelmente iluminado. O meu quarto fica para o mesmo lado sul, o que me garante um pouco de aquecimento nos dias de sol, o atelier fica para o norte. A sala onde eles trabalham (fazem luminarias, moveis, etc) é uma bagunça absoluta, mas isso não me incomodaria somente pela oportunidade de estar morando ali. O apartamento não tem chuveiro, e como bom brasileiro acostumado com o banho diario aprendido dos indios, contornei a situação inscrevendo-me numa academia proxima a minha casa para poder tomar banho. Os banhos publicos instalados pela prefeitura funcionam somente entre quinta-feira e sabado, tem que ter muita força de vontade para ficar sem banho entre segunda e quinta. Apareço na academia as 8 da manha, faço um pouco de exercicio para nao parecer que estou la somente pra tomar banho, fico até as 9 :15. Acompanho o ritmo de todas as vovozinhas e os tios do bairro. A faixa etaria em média é de 75 anos, pessoas que estão na academia por indicação médica, com certeza. Vocês sabem que o forte dos franceses não é o esporte apesar de todos serem magros. Outro dia no jornal falava-se no paradoxo francês, nenhum povo que não controla o que come e não faz exercicio tem tanta saude fisica quanto os franceses… sorte deles… Assim, a academia fica cheia de velhinhos e velhinhas no periodo em que estou la. E se acham o maximo, quando saio de um aparelho, fazem questao de peguntar « vous avez fini, monsieur ? », não mudam a carga, fazem questão de mostrar que estão em boa forma, quatro ou cinco repetições e UAU… ja massagearam o ego do dia, pra mim é divertido colaborar com isso, fico sério e com cara de impressionado com a performance deles. Voltando ao squat, a cozinha tem uma torneira interligada a torre central de agua do edificio, assim normalmente tenho agua bem cedo e a noite depois das 10. Durante o resto do dia, a agua não é garantida pois a pressão no ultimo andar não é suficiente quando os outros andares a usam. Sabado e domingo, nem pensar, liga-se a torneira, toma-se um café, ouve-se uma musica, pra somente depois escutar o barulho da agua chegando. A eletricidade é garantida pela distribuição do prédio, apesar de uma vez a cada duas semanas o prédio todo ficar sem energia. Problema que é contornado rapidamente pelos « mestres engenheiros » responsaveis pelo sistema no prédio. No caso do meu apartamento, uma briga interna me priva de energia elétrica de vez em quando. O vizinho ao lado não paga a taxa ha muito tempo, pois brigou com a associação. Assim, conectou-se ao nosso apartamento para ter energia. A associação, somente para « faire chier » o vizinho (encher o saco - ou « fazer cagar » é a tradução da expresssão em francês que quer dizer isso), corta a energia dos dois apartamentos, para obriga-lo a pagar, ou somente porque não tem o que fazer. Dai Antonin tem que negociar com os caras la do quinto andar e pedir a reconexão da energia, o outro dia cheguei em casa e tava quase tendo uma briga ( de soco mesmo) entre ele e um dos « sindicos »… mas tudo entrou nos eixos depois. O aquecimento então é garantido por um aquecedor elétrico que tenho no quarto e um outro a combustivel que tenho na sala. Alias, o cheiro desse combustivel é onipresente no edificio pois todos aquecem seus lares com isso. Um aparelho de 0.50 m X 0.50 m com 0.80 de altura, aquece muito bem e fede muito. A geladeira que tenho não funciona pois queimou-se apos tantos vais e vens de energia. Comprei uma caixa de plastico com tampa que uso de geladeira, colocando-a no terraço do lado norte do edificio, onde não bate sol e onde a temperatura nao passa dos 10 graus nesta época. A minha despensa so tem enlatados, mais parece um bunker da Segunda Guerra Mundial, desde salada enlatada até o atum de sempre. Alias esqueci de dizer que no sétimo andar o edificio tem dois imensos terraços de 3 metros de largura que correm por toda a extensão do prédio, que tem uns 60 metros de comprimento . Assim tenho dois terraços, um voltado para o lado sul e outro para o norte… A banheira que fica na cozinha até da pra usar, num dia de sol, esquentando-se agua no fogao. Conta-se com um lado meio exibicionista pois alguns vizinhos esforçados podem ver o que se passa na banheira. Do ponto de vista do observador, a vista é magnifica, e um banho com uma boa garrafa de vinho não é ma idéia. A experiencia humana so não é mais rica pois as familias de imigrantes que acabaram de chegar falam em suas linguas e vestem-se ainda a sua maneira, as mulheres com as grandes roupas coloridas e panos na cabeça, os homens com uma espécie de tunica que vão até o chão, vestimenta pratica para ir ao banheiro. As crianças vão à escola de manhã, saem à mesma hora que eu do prédio. As crianças que ainda não têm idade para ir à escola, ficam rodando nos corredores, nas escadas, brincando de se pendurar no guarda corpo quebrado e solto, os anjos da guarda de certas crianças de dois anos de idade me impressionam. Passo por ali e nenhum sinal dos pais, ou de alguém responsavel, uma criança sozinha brincando na escada do quinto andar, na escuridão e solidão dos corredores do prédio. Fico pensando no futuro de qualquer um desses pequenos adolescentes em conflito, pois a França (a Europa em geral) formata a cabeça das pessoas a dizerem que tem a nacionalidade dos pais e nunca a nacionalidade francesa, apesar de terem nascido na França. O nacionalismo e a manutenção dos seus habitos geram mais conflitos na cabeça desses adolescentes. Briga de gangues, dialetos, são alguns dos sinais da nova geração francesa de « não franceses ». Obviamente o lado cosmopolita colabora, ou pode mesmo ser o reflexo disso. Em nenhum outro lugar ha tantos restaurantes de diferentes nacionalidades que guardam tanto suas raizes. No restaurante turco somente ha turcos que falam em turco, lêem jornais turcos e vêem o canal turco de televisão. A mistura à qual estamos acostumados no Brasil não acontece na França, isso pode ser bom ou ruim, dependendo do resultado que se queira ter no estabelecimento de uma nova geografia das cidades. Os guetos não são socio-econômicos como o Brasil, porém culturais e etnologicos. A experiência de morar num squat tem sido incrivel de varios pontos de vista, inclusive espacial. Meu quarto pode ser um cubiculo ou um mundo, dependendo se tenho ou não energia elétrica. Quando tenho a luz, o aparelho de som ligado, o aquecimento funcionando, a vista para a cidade, tenho um ambiente verdadeiramente « casa ». Por outro lado, quando falta energia, a relação com o espaço muda completamente, não me dando nem a chance de ficar com raiva, de saco cheio, pois as poucas horas que passo ali, então, servem para dormir debaixo dos imensos cobertores franceses que salvam do frio. O quarto se torna minusculo, as coisas parecem estar mais à mão, a relação com o exterior torna-se o mais importante parâmetro espacial. Como o que mais vejo é o céu, o ponto de fuga do espaço fica muito, muito longe, não me dando a chance de apropriar-me do proprio espaço. Quando sinto isso, a impotência diante de meros 20 metros quadrados, vou dormir. E acordo no dia seguinte, as sete da manhã, com o barulho do despertador holandês comprado a « déis réau », sem o canto de passaro nenhum, os que ficaram no inverno não cantam, e seus outros familiares encontram-se em algum recanto do norte da Africa esperando a volta do sol na capital da moda e dos bons costumes. Obviamente como membro da classe média alta brasileira, não moro ali por necessidade, isso torna a estadia mais exotica, menos conflituosa, de pouca real inserção. Sou um ser estranho ali… Inclusive à noite, nos primeiros dias depois de me mudar, fui varias vezes parado nas escadas por adolescentes pedindo identificação. Sei que a situação criada ali é gerada por varios fatores que não posso no momento contornar, so me resta ir em frente e dizer sem olha-los nos olhos, de forma falsamente irônica « moro no sétimo andar… » … a distância dos olhos em relação aquele imigrante adolescente, que fala um francês absolutamente diferente do meu (no meu caso aprendido mais em gramatica do que na rua), é de tal ordem que fica impossivel qualquer forma de troca, apesar de sermos ambos estrangeiros na mesma cidade. Estrangeiro, stranieri, stranger, étrange. Estranho. Sentir-se um estrangeiro não é um dos sentimentos mais interessantes, mas deve-se aprender a levar em frente a tarefa de informar e confundir os outros, para que, sentindo-se estrangeiros em seu proprio pais, desarmem-se. Somente assim pode-se aos poucos tentar não entender varios aspectos da cultura do outro, e não ligar para essa incompreensão. A estratégia da confusão é ideal para qualquer relação especialmente com pessoas que nunca viajaram ou moraram fora. Faça com que o outro se sinta perturbado por pensar como pensa, se sinta ignorante em relação à sua propria cultura, se sinta ingênuo em relação às nuances culturais do ponto de vista cultural e linguistico. Dai pra frente da para falar não como um estrangeiro, mas como alguém que tem alguma coisa a mais, e não a menos (seja dinheiro, cultura, passaporte europeu, etc) podendo olhar nos olhos das pessoas sem nenhum tipo de autodefesa, dois bipedes em conversação. Seguem algumas fotos do apartamento montados num arquivo GIF para ser visto online. Atenção : se você não sabe nem o que é GIF, e lembra quem matou Odete Reutmann, cuidado. Creio que é melhor desistir, desligue seu 386 e va dormir. Se você nem sabe quem foi Odete, ok, você pertence a uma geração que tem os melhores conhecimentos de informatica, pode entrar tranquilo com seu Pentium 3 na pagina… |