O Método Concretista da “Constituição Aberta” de Peter Häberle

 

Flávio Elias Riche·

 

 

 

         Um dos autores a quem a tópica de Theodor Viehweg mais influenciou foi sem dúvida Peter Häberle. Sua metodologia implicará na radicalização da orientação tópico-problemática no campo da teoria da Constituição. Partindo da perspectiva conceitual de Karl Popper, defenderá a adequação da hermenêutica constitucional à sociedade aberta, através da democratização da interpretação da Constituição.

Segundo o autor, a teoria da interpretação constitucional tem concentrado seus esforços em dois pontos principais: a questão acerca das tarefas e objetivos da interpretação, e a questão acerca dos métodos, que envolve o processo da interpretação e suas regras. Todavia, há um aspecto fundamental para o qual não se tem dado a devida importância: a questão relativa aos participantes da interpretação. Isto se dá em razão do forte vínculo que a teoria da interpretação constitucional tem mantido com um modelo de sociedade fechada, conferindo especial destaque aos procedimentos formalizados e à interpretação constitucional realizada pelos magistrados. Contudo, por mais importante que seja a interpretação constitucional dos juízes, ela não é a única possível.

Mais precisamente, Häberle deseja operar uma síntese entre a Constituição e a realidade constitucional, destacando o papel fundamental exercido pelos agentes que conformam esta realidade. Destarte, busca analisar as implicações decorrentes de uma revisão da metodologia jurídica tradicional – vinculada ao conceito de sociedade fechada – e trabalhar uma metodologia centrada no modelo aberto e pluralista de sociedade, tendo como eixo principal o problema dos participantes do processo de interpretação constitucional. Destaca, assim, que a interpretação tem sido tradicionalmente considerada tão somente como uma atividade dirigida, de modo consciente e intencional, à compreensão e  explicitação do sentido de um texto. Obviamente, esta concepção restrita – reflexo dos métodos tradicionais de origem civilista propostos por Savigny – é insuficiente à análise hermenêutica realista proposta por Häberle, tornando-se necessário o uso de um conceito mais amplo de interpretação, que reconheça a relevância do espaço público na sociedade aberta. Por isso, ele irá propor a tese de que não é possível o estabelecimento de um número limitado de intérpretes da Constituição, na medida em que todos os órgãos estatais e potências públicas, assim como todos os grupos e cidadãos, encontram-se envolvidos neste processo de interpretação, que deverá ser tão mais aberto quanto mais pluralista for uma sociedade.[1]

Tal afirmativa está fundamentada no fato de que todos aqueles que vivem a norma devem ser considerados como forças produtivas da interpretação, isto é, intérpretes lato sensu da Constituição, ou ao menos pré-intérpretes (Vorinterpreten): “Toda atualização da Constituição, por meio da atuação de qualquer indivíduo, constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional antecipada”.[2] Contudo, isso não significa a supressão da responsabilidade da jurisdição constitucional, tampouco nega sua relevância no que diz respeito ao processo interpretativo. Trata-se apenas de reconhecer a influência da teoria democrática sobre a hermenêutica constitucional, conferindo-lhe maior legitimidade.[3] Como os intérpretes jurídicos da Constituição não são os únicos que vivem a norma, não podem monopolizar a atividade interpretativa: “Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que pode se supor tradicionalmente, do processo hermenêutico”.[4] Logo, a interpretação constitucional só pode ser pensada tendo em vista a esfera pública e a realidade constitucional, de modo que não é mais possível desconsiderar o papel do cidadão e das demais potências públicas na interpretação da Lei Maior.

Em outras palavras, significa o abandono do modelo hermenêutico clássico, construído a partir de uma sociedade fechada, reconhecendo que não apenas o processo de formação é pluralista, mas também todo o desenvolvimento posterior, de modo que a teoria da Constituição – assim como a teoria da democracia[5] – exercem um papel mediador entre Estado e sociedade. Tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático, a interpretação da Constituição não constitui um fenômeno absolutamente estatal, pois além dos órgãos estatais e dos participantes diretos, todas as forças da comunidade política – ainda que de forma potencial – também têm acesso a esse processo. O papel exercido pelas pessoas concretas merece destaque na teoria de Häberle, inclusive no que diz respeito às funções estatais – leia-se parlamentares, funcionários públicos e juízes. A isto ele denomina personalização da interpretação constitucional.

No que diz respeito ao processo político, Häberle reconhece sua relevância para a interpretação da Constituição.[6] O legislador também possui de um poder de conformação, assim como o juiz constitucional. A diferença existente se situa no plano qualitativo, ou seja, ao juiz é assegurado um espaço na interpretação cujos limites decorrem de argumentos de índole técnica. Todavia, sob o prisma quantitativo, não existiria, segundo o autor, diferença fundamental entre as duas situações. Vale a transcrição de suas palavras:

“O muitas vezes referido processo político, que, quase sempre,  é apresentado como uma sub-espécie de processo livre em face da interpretação constitucional, representa, constitucione lata e de fato, um elemento importante – mais importante do que se supõe geralmente – da interpretação constitucional, (política como interpretação constitucional). Esse processo político não é eliminado da Constituição, configurando antes um elemento vital ou central no mais puro sentido da palavra: ele deve ser comparado a um motor que impulsiona esse processo. Aqui, verificam-se o movimento, a inovação, a mudança, que também contribuem para o fortalecimento e para a formação do material da interpretação constitucional a ser desenvolvida posteriormente. Esses impulsos são, portanto, parte da interpretação constitucional, porque, no seu quadro, são criadas realidades públicas e, muitas vezes, essa própria realidade é alterada sem que a mudança seja perceptível”.[7] 

 

Observa-se nesse sentido que parte da esfera pública (Öffentlichkeit), assim como da realidade constitucional, é criada pelo legislador, de modo que seu papel possui uma função precursora na interpretação da Lei Maior e no processo de mutação constitucional, influenciando sua atividade o posterior desenvolvimento dos princípios constitucionais. Por fim, a Ciência do Direito Constitucional, catalisada  principalmente por intermédio da jurisdição constitucional, também configura a interpretação da Constituição.     

Häberle continua sua exposição, buscando demonstrar a legitimação das forças participantes do processo interpretativo. Primeiramente, ele reconhece as possíveis críticas em relação ao seu trabalho. A principal delas traduz-se na constatação de que uma teoria constitucional defensora do postulado da unidade da Constituição, assim como da produção de uma unidade política, deve reconhecer o risco da interpretação constitucional (dependendo de como for praticada) acabar se dissolvendo em um número excessivamente elevado de intérpretes e de interpretações, o que levaria à redução do elemento normativo, ou até à sua anulação.

Os defensores dessa crítica alegam que a legitimação para a interpretação deveria ocorrer de modo restrito, tão somente ao nível dos entes nomeados pela Constituição para realizar sua interpretação. Entretanto, Häberle entende que esse argumento perde sua força a partir do momento em que consideramos um novo fator a orientar a hermenêutica constitucional: o reconhecimento de que a interpretação é um processo aberto, onde a ampliação do círculo de intérpretes decorre da necessidade de integrar a realidade no processo interpretativo.

A hermenêutica não se confunde, então, com um processo de passiva submissão, com a mera recepção de uma ordem, pois interpretar uma norma significa colocá-la no tempo, integrá-la à realidade pública, uma vez que para Häberle não existe norma jurídica, apenas norma jurídica interpretada[8]. Logo, a regra jurídica não é uma decisão prévia, simples e acabada. Pelo contrário, depende da atividade exercida por todos os participantes de seu desenvolvimento funcional e que configuram forças ativas de sua interpretação, partes da publicidade e da realidade constitucional. Isto implica não apenas na personalização,  mas também na pluralização da interpretação constitucional.

Da mesma forma, não tem fundamento a alegação de que a ampliação do círculo de intérpretes ameaçaria a independência dos juízes e a vinculação à lei. Isto porque não é possível através de tais fatores tentar ocultar o fato de que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e em face da realidade. O intérprete sempre se orienta pela teoria e pela práxis. Esta última, no entanto, não é conformada pura e simplesmente pelos intérpretes oficiais da Constituição:

“Uma Constituição que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública, dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos. [...] Limitar a hermenêutica constitucional aos intérpretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um autoengodo”.[9]

 

A abordagem proposta por Häberle traz conseqüências para o próprio processo constitucional: “Colocado no tempo, o processo de interpretação constitucional é infinito, o constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger)”.[10] Acrescente o fato de que diversos problemas em torno da Constituição material não chegam à Corte Constitucional e será possível perceber que mesmo sem a interpretação judicial a Constituição subsiste. Em uma sociedade aberta existem outras vias que levam à interpretação da Lei Maior, o processo constitucional formal não é a única. Em última instância, significa a necessidade de aperfeiçoamento dos instrumentos de informação dos juízes, principalmente quanto ao alargamento da possibilidade de participação no processo constitucional, permitindo assim uma comunicação efetiva entre os diversos participantes deste amplo processo de interpretação. Conseqüentemente, “O direito processual constitucional torna-se parte do direito de participação democrática”.[11]

 

 



· Mestrando em Direito pela Puc-Rio

[1] Häberle oferece a seguinte sistematização do quadro dos intérpretes da Constituição: (1) os  que exercem função estatal: Tribunal Constitucional e demais órgãos do Judiciário, assim como o Legislativo e o Executivo; (2) as partes no processo judicial, legislativo e administrativo: autor, réu, recorrente, testemunha, parecerista, associações; partidos políticos, dentre outros; (3) os grandes estimuladores do espaço público democrático e pluralista: mídia (imprensa, rádio e televisão), jornalistas, leitores, igrejas, teatros, editoras, escolas, pedagogos, etc; (4) a doutrina constitucional, por tematizar a participação de todos os demais intérpretes. (Idem, p.19-23).

[2] Idem, p.13-14

[3] Sobre a relevância da teoria democrática para a teoria de Häberle, vale a transcrição dos comentários tecidos por Bonavides: “A interpretação concretista, por sua flexibilidade, pluralismo e abertura, mantém escancaradas as janelas para o futuro e para as mudanças mediante as quais a Constituição se conserva estável na rota do progresso e das transformações incoercíveis, sem padecer abalos estruturais, como os decorrentes de uma ação revolucionária atualizadora. Mas para chegar a tanto faz-se mister uma ideologia: a ideologia democrática, sustentáculo do método interpretativo da Constituição aberta, concebido por Häberle, e que serve de base portanto a uma hermenêutica de variação e mudança [grifos nossos]” (Curso de Direito Constitucional. 10a ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.471).

[4] HABERLE, Peter. Op. cit., p.15.

[5] Importante notar que Häberle toma a democracia não apenas como uma delegação de funções para os órgãos estatais. Na sociedade aberta, ela também se desenvolve mediante a práxis cotidiana, utilizando formas mais refinadas de mediação do processo público e pluralista da política, e principalmente através da realização dos direitos fundamentais. É uma democracia do cidadão, com ênfase no viés participativo, mais realista face ao fato do pluralismo do que a democracia popular: “‘Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional. [...] A democracia do cidadão está muito próxima da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir da concepção segundo a qual o Povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar do monarca. [...] Liberdade fundamental (pluralismo) e não ‘o Povo’ converte-se em ponto de referência para a Constituição democrática. Essa capitis diminutio da concepção monárquica exacerbada de povo situa-se sob o signo da liberdade do cidadão e do pluralismo” (Idem, p.37-39). A fundamentar-se na teoria da democracia, Häberle busca, portanto, ampliar a legitimação da interpretação constitucional aberta.

[6] Tal reconhecimento o leva a afirmar: “Não existe apenas política por meio de interpretação constitucional, mas também interpretação constitucional por meio da política”(Idem, p.26).

[7] Idem, p.26

[8] Tal pressuposto não é desenvolvido de modo mais aprofundado por Häberle neste livro. Quem o aponta é Gilmar Ferreira Mendes, em sua apresentação à obra do referido autor, indicando a seguinte fonte: Häberle, Peter. “Zeit und Verfassung”. In: Ralf/Schwegmann, Friedrich. Probleme der Verfassungsinterpretation. p.293 (313).  

[9] Idem, p.33-34. Aqui, Häberle reconhece o condicionamento mútuo entre a Constituição e a realidade fática, eixo central de todas as metodologias propostas pelos autores da nova hermenêutica: “Constituição é, nesse sentido, um espelho da publicidade e da realidade. Ela não é, porém, apenas o espelho. Ela é, se se permite uma metáfora, a própria fonte de luz” (Idem, p.34). Possui, assim, uma função eminentemente diretiva.

[10] Idem, p.42.

[11] Idem, p.48. Em texto mais recente,  Häberle situa a teoria da Constituição enquanto parte de uma realidade cultural, vendo na cultura – entendida a partir de seus três aspectos essenciais: tradição, inovação e pluralismo – o contexto orientador de todo o Direito, assim como de sua práxis. Direito e Cultura estariam, pois, intimamente relacionados, o que é perceptível não apenas no âmbito material de determinadas normas constitucionais (como, por exemplo, as relativas à educação, à arte, à ciência, etc.) mas também nas formas técnico-jurídicas pelas quais se manifestam (englobando aspectos jurídicos individuais, institucionais e também corporativos). Nota-se aqui que o direito constitucional cultural proposto por Häberle assenta-se nos mesmos princípios de sua obra anterior, pressupondo o entendimento da cultura enquanto uma realidade aberta, capaz de dar conta do pluralismo hoje existente. A Constituição não se limita para Häberle a uma mera reunião de normas, tampouco é determinada unicamente por fatores materiais, sejam estes entendidos como a estrutura econômica de Marx, ou os fatores reais do poder de Lassalle. Ela constitui fundamentalmente a expressão do legado cultural de determinado povo, de sua tradição e de sua experiência histórica, assim como o reflexo de suas esperanças, de suas expectativas e possibilidades reais de configuração futura, de modo que a Constituição sempre se encontra em uma relação de dependência cultural em relação a todo o povo, constituindo ao mesmo tempo um ser e um dever-ser. Seu resultado é, pois, obra de todos os intérpretes de uma sociedade que é aberta e pluralista. Desse modo, a tarefa da exegese constitucional não está restringida ao momento da interpretação dos textos normativos, ganhando relevância o papel condicionador que os requisitos culturais exercem sobre a pré-compreensão do intérprete, a ponto de até mera explicitação do teor literal de uma norma ser determinada pelo respectivo contexto cultural. Conseqüentemente, toda modificação cultural termina por implicar em uma transformação da própria exegese, configurando a cultura o pano de fundo material no qual se move a hermenêutica constitucional. Häberle promove, assim, uma relativização do conteúdo dos textos normativos: “El aserto de R. Smend, de 1951, de que ‘cuando dos leyes fundamentales dicen lo mismo, ello no significa que sea lo mismo’ nos lleva a cuestionar cómo es posible justificar el hecho de que los mismos textos jurídicos que aparecen tanto en los llamados ‘pactos sobre derechos humanos’ entre el Este y el Oeste, como en las respectivas Constituciones occidentales, puedan y de hecho deban ser interpretados en el tiempo y en el espacio de formas diferentes. El telón de fondo material que vincula a cada uno de los diferentes criterios hermenéuticos no es otro que las proprias culturas nacionales que subyacen a cada una de tales Constituciones; dicho com otras palabras: que el mismo texto encierra diferente contenido en cada una de las culturas en las que aparece, y todo ello además en función tanto del tiempo como del espacio” (Teoría de la Constitución como Ciencia de la Cultura. Tradução de Emilio Mikunda. Madrid: Technos, 2000, p.45).

 

 

 

 

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