O ruído do amanhecer fez-me acordar. Virei-me na cama e o meu braço estendido caiu sobre a almofada ao meu lado. Ao senti-la vazia dei-me então conta da leveza que era dormir sozinho outra vez. Espreguiçar-me, peidar-me, coçar os tomates, arrastar-me para a banheira, deixar o pijama espalhado pelo chão. Bocejar, não ter que falar, ligar a música alto, entrar na banheira e soltar todo o tipo de palavrões por me esquecer mais uma vez de ligar o gás. As pequenas delícias de um homem solteiro...
Tudo começou em casa dela. Ao princípio, parecíamos saciar-nos de toda a fome do mundo, explorando o limite da absorção dos sentidos. Mais nada existia. Nada! O resto era um buraco escuro, os nossos corpos pareciam suspensos no Universo. Fazer amor com ela era esquecer a minha vivência, os meus bens, aquilo que me constituía, era esquecer de mim… e ao mesmo tempo era juntar tudo e pôr à sua disposição!
Durante meses foi assim. Até que não aguentei. Já não sabia quem era eu. Só ia a minha casa dar comida ao peixe, que mesmo assim, morreu de solidão. As minhas coisas estavam intocadas. Tudo o que usei para dar a minha personalidade à casa, o meu eu, estava abandonado. Nessa noite, ao tombar na almofada da cama dela, depois de mais um momento de fusão dos nossos corpos, senti medo. O meu eu já não existia. Eu era ela. E saí. Enquanto ela dormia esgueirei-me pelas escadas do prédio, qual bicho fugindo do destino. Um bilhete em papel rasgado deixado em cima da almofada acabava com meses de entrega profunda.
Hoje resolvi sair mais cedo do trabalho. É o meu aniversário. Mais um ano que se passou, comemorado da mesma maneira que o anterior. Depois dos amigos se irem embora, ficou uma só companheira de longa data: a solidão. Sentado no sofá, cansado da jantarada e das gargalhadas que nos recordaram o bons momentos da vida, o álcool projectou na parede da sala os contornos dos rostos das pessoas mais queridas. Umas jovens, outras velhas, outras já fora deste mundo. Mas houve um rosto que se manteve, parado, enquanto os outros desfilavam ao longo da parede. Um rosto que se articulava com as minhas coisas, que as complementava. Um rosto que absorvia tudo à sua volta, qual buraco negro. Um rosto que, além de tudo, também era eu.
Na busca de mim, acabei por encontrar aquilo que eu era, não aquilo que eu sou… Não sei se ainda é o alcool a falar, mas amanhã não será leveza que irei sentir, quando acordar com a almofada vazia ao meu lado.