LENDA DO PESCADOR ALDRABÃO

 

-          Ah, mais um dia em que consegui ver o por do sol.  Quando se chega a uma certa idade, temos de dar graças a todos os estes pequenos momentos. Quando nos levantamos de manhã, assistimos ao nascer do sol sem ter a certeza de assistirmos ao seu poente. Da mesma forma, quando nos deitamos, não sabemos se o veremos nascer outra vez.

 

Passei os meus olhos sobre a dúzia de miúdos que se sentaram nas escadas do meu alpendre a olhar para mim.

 

-          Uma única certeza tenho, - acrescentei – é que, quando eu deixar de assistir a estes fins de tarde, outros vão poder fazê-lo por mim, pois o sol não vai parar para assistir ao meu funeral…

 

Embora eu tenha soltado esta observação mais como um pensamento mumuriado do que propriamente para a minha jovem audiência, tenho a certeza que muitos deles nunca tinham pensado nisto ao longo dos seus 8-10 anos de existência.

 

-          Ti Pedro, conte mais uma vez a história da sua luta com o monstro!

 

-          Sim, sim! – suplicam excitados os outros petizes.

 

O sol, a começar a cair sobre as salinas ao fundo, doira os cabelos e pele ainda macia e inocente destes miúdos, ávidos de histórias de experiências que eles ainda não tiveram tempo de passar.

 

-          Muito bem… estão a ver aquele banco de arbustos rasos ali no meio da ria? Aquele, na direcção do farol! Pois bem, há muitos anos, passava eu ali com o meu bote, de regresso a casa depois de mais uma faina, quando senti um restolhar debaixo da quilha do meu barco. Com o estremeção quase caí à água. Corri para a proa sem perceber porque raio tinha eu encalhado ali. Passava lá há tantos anos, e sempre foi uma zona profunda…

 

O meu olhar percorreu o olhar de cada um dos putos, suspensos em cada palavra da minha históra, como se fosse a primeira vez que a ouvissem.

 

-          Foi então que vi a água a afundar-se como no ralo de um barril, e surgiu de lá um peixe enorme, fazia dois de mim! Era um peixe terrível, feio, mas diferente de todos os outros: tinha um braço e uma mão em vez de uma barbatana!…

 

Nesta altura da história eu fazia sempre uma pausa, pois era habitual um coro de exclamações e comentários entre os miúdos. Estes não eram excepção. E assim continuei, como quase todas as tardes em que eu conseguia sentar-me um bocadinho ao sol debaixo do meu alpendre. Contei-lhes como tinha lutado com o monstro, uma luta terrível, que deixou o meu bote quase todo estraçalhado, e como consegui puxar de uma faca de mato e cortar e arrancar-lhe o braço-barabatana no momento em que ele me apertava o pescoço. - E assim, derrotado, ele fugiu, nadando com a única barbatana que lhe sobrava, e nunca mais foi visto desde então!

 

-          Então, mas ó Ti Pedro, o meu pai diz que toda essa história é mentira, que o Ti Pedro é que chegou a casa muito tarde, depois de beber uns copos na lota, e contou essa história à tia Maria para ela não lhe bater! E que se cortou o braço ao peixe, porque é que não o guardou? E se não o guardou, porque é que nunca deu à costa aqui na ria? – pergunta um dos mais velhos.

 

Os miúdos todos riram com a imagem da tia Maria, já falecida, a correr atrás do Marido com o rolo da massa numa mão e a faca de amanhar o peixe na outra.

 

-          Bem, não seria a primeira vez que teria de inventar uma história à minha patroa, por chegar tarde a casa… mas quanto ao braço, caiu à água, e provavelmente ficou preso no moliço. Vá, mas agora, são horas de irem para casa, que as vossas mães já devem estar a chamá-los para o jantar. Até amanhã.

 

Raio dos miúdos já estão a chegar à idade de questionar aquilo que os mais velhos dizem…

 

 

****

E assim ficou a observar os miúdos até entrarem nas suas casas, antes de se levantar e ir para dentro. Abriu então um velho baú e deu a sua olhada diária a um frasco de meio metro de altura que retirou lá de dentro. Este frasco representava para si os seus últimos anos de vida. Com um sorriso de certo modo ternurento voltou a guardar o braço-barbatana conservado em álcool naquele frasco, dentro do baú. Nunca mostrara aquilo a ninguém. Não sabia bem explicar porquê… Mas não partilhava a veracidade daquela história com mais ninguém.

 

Lá no fundo ele sabia que assim é que se constróem as lendas…

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