O porto dos loucos

 

Vasco Yamashita Ragnarsson acordou com o bip familiar que lhe ressoava um pouco por todo o corpo. Sentiu a habitual e imediata descarga de codeína, fracções de segundo após abrir os olhos, a despertar-lhe os sentidos para a realidade da cabine onde pernoitava desde há 14 dias. Passou pela retina um report rápido dos seus níveis vitais, retornando o implante cervical ao modo standby enquanto se dirigia para a área de higiene.

O espelho devolveu-lhe o que esperava, a imagem do seu rosto coberta por pequenos pontos vermelhos luminosos onde o protocolo da Tropa exigia intervenção - focos de barba, o cabelo 2cm demasiado longo atrás, e as duas cicatrizes em cruz sobre a face esquerda. Quanto a estas últimas, paciência... estava em número 15009 na lista de espera para prostetica militar, e havia ainda de cumprir pelo menos esta campanha antes de ser chamado.

Novamente sentiu o microscópico impulso de infra-sons, desta vez assinalando a chegada de uma mensagem. Abriu o ficheiro e a cabine foi substituida pelo quarto da irmã, distante 5000km em Nova Carachi, com o rosto desta em primeiro plano exibindo uma expressão de alegria. PLAY. “Ainda bem que chegaste ao teu destino, irmão. Em casa estamos todos bem e aguardamos notícias de sucesso na tua campanha”. ARCHIVE. A cabine tornou a ocupar o seu campo visual. Dana ni Bhraónain Ragnarsdottir era a irmã que ele sempre quisera, sua companheira na Tropa e quem geria os interesses da família. Havia saudade naquela mensagem, e teria de passar algum tempo em casa após sair deste novo potencial inferno.

 

No elevador cruzou-se com dois sargentos trajados de negro da cabeça aos pés. As insígnias de capitão produziram efeito imediato, um “Sucesso à Tropa” uníssono e nem um decibel mais alto que o hierarquicamente correcto. Ali juntos, naquele espaço limitado, podiam aperceber-se quase fisicamente do olhar trespassante de cada um, fitando o ar vazio, aguardando em tensão permanente um propósito para agir. A Tropa moldava homens assim, homens que apreciavam a beleza da vida com a mesma emoção que cumpriam o seu dever profissional.

Juntos encaminharam-se para a sala de reuniões a fim de receber o briefing diário.

 

FLASH

 

Dezenas de trovões em sucessão martelavam os sentidos, entre jorros de terra negra que irrompiam por toda a parte. O Hino ao Sucesso ecoava em perfeita fidelidade digital por todos os auriculares da Companhia, cada acorde um incentivo a prosseguir por entre o dilúvio assassino. Aqui e ali Escudos cediam, corpos instantaneamente desfeitos, pedaços a manchar a terra e a saltar projectados entre mais jorros de terra e trovões. O Objectivo não estava longe, e Vasco ainda tinha consigo mais de metade do seu pelotão. Atrás de si pôde perceber o rebentamento de uma cápsula. Passavam-lhe frente à retina informações relampejantes, indicando níveis ambientais absurdos. Ainda mais depressa. Esperavam-nos mais à frente os soldados do Inimigo, sequiosos eles também de Sucesso.

 

Avançavam aos urros sobre a posição inimiga, cobertos por uma barragem de artilharia dos navios. Os aceleradores de massa do “Spruance” impeliam projécteis férreos a velocidades pavorosas, abatendo-os sobre a redoma principal do bunker adversário. Rachas enormes abriam a cada impacto, numa orgia de fogo que convidava a infantaria a entregar-se ao abandono. Das fendas emergiam figuras trajadas de negro, vomitadas sobre a encosta, concorrendo para o embate carnal. Já não havia distinção entre os ruídos, entre o ribombar da artilharia e o bater ensandecido dos corações. O sangue fervia-lhe nas têmporas, as cicatrizes saídas à beira do enfarte.

 

 

Musical e harmonioso, o trailer de abertura do serviço de Notícias enchia a sala. Dana acarinhava o gato Pepsi, grávido de quatro semanas, enquanto aguardava a informação vespertina.

 

“Em mais um excitante desafio desta temporada, o porto de Lisboa foi hoje reclamado pela vitoriosa Companhia Cruz de Wagner. O capitão Vasco Ragnarsson foi louvado com a Comenda Superior pelo desempenho que levou a sua equipa a assumir a liderança do Campeonato da Tropa Global, agora a 12 pontos da companhia Gládio Azul. O resumo alargado do jogo está disponível a crédito em wgw.troop.eur.gov/~today/matchpt03. Passamos agora ao tempo, a nuvem poluente de Estocolmo deslocou-se...”

 

Purrrrrrr.

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