Olhos Azuis Mar...

 

Olhos azul mar, onde ele fez a vida, a longa vida, ainda assim, curta demais. Em contraste com os olhos claros, a pele era tostada, enrugada, não deixando por isso de ser linda, o rosto mais bonito que algum dia eu vi. E os gestos, únicos, como eu sei, são todos os gestos de toda a gente. Mas este avô era meu, e por isso, os gestos dele diziam mais do que os gestos dos outros avôs dos outros miúdos. Quando se ria, levantava a mão direita e tapava os olhos, baixando ligeiramente a cabeça, e não sei explicar, era fenomenal. E eu ficava deliciada com a gargalhada dele, com pena de não a ter herdado. A roupa dele não tinha graça nenhuma, mas tinha toda a graça no corpo dele. Era roupa velhinha também, e toda a variar entre o cinzento e o preto, uma camisa aos quadrados, umas calças arregaçadas, já não sabiam estar sem ser assim... E na cabeça, um barrete com uma borla na ponta, onde ele guardava o dinheiro, e de vez em quando, tirava uma moeda e dava-me, para comprar rebuçados. Não eram os rebuçados que me deliciavam, era a maneira como ele tirava o barrete, procurava a moeda... Sei que tinha sapatos, mas andava sempre descalço.

Andava sempre descalço e sempre a caminho da praia. A praia era a vida dele, as redes, o barco. Sempre reclamar por isto ou aquilo, porque alguém tinha ido ao barco, roubado o ancinho... estragado qualquer coisa. E ele chorava, porque os olhos dele eram da cor da água e desfaziam-se nela quando era preciso, para aguentar. Ás vezes chorava  a rir...

Ás vezes chorava a rir de felicidade. A primeira recordação que tenho foi quando cheguei. Tinha dez anos. Ele quando me viu, agarrou-me as mãos e começou numa qualquer dança da alegria, a andar comigo á roda, enquanto cantarolava qualquer coisa...  E a partir daí, dessa dança feliz do matar a saudade, este meu avô ficou para sempre guardado num lugar especial onde vou buscar as recordações quando são precisas, que ele partiu, estava cansado de andar para cima e para baixo na vida...

Tinha muita vida, mas toda ela definhou no exacto momento em que a minha avó foi internada no hospital. Começou a não querer levantar-se de manhã, a não querer saber do mar, dos peixes, de nada... e quando a avó voltou ele já tinha perdido as forças e morreu...

Morreu sem saber a falta que fazia. Que agora custava mais ir á casa dele ver as coisas que ele tinha lá que sempre me deliciaram. Um açucareiro em folha de alumínio, onde ele metia a colher de folha com cabo em madeira de manhã, para adocicar o seu pequeno almoço, vinho tinto quente com um ovo cru, tudo misturado, uma mistela horrorosa. A falta do lava louças, ao invés dele, uma torneira a sair duma parede em cimento com uma bacia a aparar os pingos... uma bilha azul, nunca mais me esqueço, que ele levava para ir buscar água á fonte dos namorados... Está lá, pousada no mesmo lugar. 

Pousada no mesmo lugar de sempre, também a fotografia dele. Não é precisa para me lembrar, é a preto e branco, mas vê-se o azul mar dos olhos, a roupa a variar entre o cinzento e o preto, a camisa aos quadrados... e ouve-se  a gargalhada...

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