Sala de espera

Ao meu lado um homem jovem, poucos anos mais velho do que eu. Sorria-me um sorriso que queria dizer “vai correr tudo bem”. Devolvi-lhe o sorriso que consegui, um sorriso tão breve que quase não se passou, e quando passou essa dor, de ter de levantar os cantos da boca, fiquei de novo como estava antes, com um rosto sem expressão, o olhar pousado num tempo que não sabia qual era, mas com lágrimas a escorrerem em catadupa rosto abaixo, uma catarata de sonhos desfeitos e incertezas por não saber quantos amanhãs teria. Um miúdo com mais ou menos oito anos estava do meu lado direito. Dava-me tiros com o dedo a fingir de pistola, uma imitação dum herói qualquer a matar a bandida; lembro-me de pensar naquele instante que não era preciso, que se calhar já estava mais ou menos morta, embora não tivesse feito nada para merecê-lo...

A sala de espera era fria, impessoal, e quase fiquei aliviada quando a enfermeira chamou o meu nome e a abandonei, olhando mais uma última vez para o tal homem novo, pensando que talvez fosse bom ele ir comigo, segurar-me na mão... para que eu tivesse menos medo do amanhã. Mas o pior não era o amanhã, era a noite, a escuridão; Nessa noite e em todas as que se seguiram, eu entregue a uma insónia e pensamentos. Tinha 25 anos e nunca plantara uma árvore, nunca tivera um filho, escrevera um livro... A recordação da voz do médico a dizer: Quase de certeza que é, só saberemos depois da operação, se for tens de ser forte. Faremos tratamentos. E eu a perguntar que tratamentos, ele a não precisar responder. Eu a sair do consultório, directa ao cabeleireiro a mandar cortar o cabelo, “curto, o mais que puder”, com medo de chegar o dia em que eu visse as minhas madeixas caírem, sem que eu pedisse, sobre a almofada. E depois da sequência cansativa dos testes e exames, o dia em que estava deitada na maca com as luzes a encandearem-me, já dormente. Lembro-me vagamente duma enfermeira estar ali ao pé, de eu perguntar mais uma vez, só para confirmar, se não ia sentir nada. Senti então o calor subir depressa pelo meu braço direito, até ao cérebro. Nunca sentira tanto calor a correr-me pelas veias,  e num instante,  a escuridão completa, o alívio de não sentir absolutamente nada. O acordar, o peito ligado e tão apertado, que parecia ter um espaço vazio onde antes havia um 36. As coisas que fazem as ligaduras! O médico vinha e retirava o meu embrulho, mas eu recusava a olhar-me, embora ele dissesse tantas vezes, “Podes olhar, estás perfeita”. Os dias a passarem. Vagarosos. Depois o meu embrulho não era mais preciso; o médico mandou-me ir tomar banho e enfrentar o espelho, e o medo... do espelho, desse espelho que me devolveu a pessoa que eu sempre fora, com o mesmo corpo (a diferença de oito pontos que hoje quase não se vêem). E Não era nada, disse-me o médico. Tinha não sei quantas vezes olhado o meu rosto ao espelho  e ensaiado dizer a mim própria, aos outros, “tenho cancro”... Imaginando-me com um lenço em lugar de cabelo, imaginando as saudades dos jeitos de que eu não gostava nesses cabelos, mas agora, assim sem mais nem menos, não era nada. A minha mãe agarrou-se ao pescoço do médico mas eu deixei-me ficar recostada para trás, completamente torpe, guardando o choro para o chegar a casa. Tenho 31 anos. Curiosamente estas coisas servem para alguma coisa, mas ao mesmo tempo para nada. Há dias em que me esqueço.  Mas também há dias que olho para os laçinhos cor de rosa e sinto uma dor no peito, na cicatriz que quase não se vê, e sinto uma dor parecida sempre que o tempo vai mudar, ainda que eu antes pensasse que essas coisas de dor quando o tempo muda eram tretas... Se calhar serve para me lembrar... que nunca plantei uma árvore, ainda não tive um filho... mas o livro vai mais ou menos a meio. Se calhar serve para fechar os olhos e  agradecer a Deus, o miúdo não ter uma pistola verdadeira, e não ter de dizer a minha deixa... pelo menos por enquanto.

Home Por Autor