Viver Lisboa

 

"A ponte ficou deserta

nem sei mesmo se Lisboa

não partiu para parte incerta"

 

A noite já vai longa mas ainda agora começou.

 

A cidade, dourada pelo brilho escuro da parda luminosidade, transforma-se no seu próprio fantasma.

Travessas de sentidos obrigatórios encaminham os espíritos mais incautos para a solidão que apenas se deixa atrapalhar pela promessa de um sorriso fugaz.

Olho sem ver.

As ruas desertas sucedem-se com inevitável violência.

Vagueio sem sentido.

O auge de um dia prestes a terminar está agora acompanhado pela melancolia do êxtase que talvez seja, desta vez, diferente.

Observo um pouco.

Silhuetas imóveis refugiam-se atrás da luz sombria dos sonhos.

Imagino.

O lioz outrora claro e agora escurecido pelas boémias noites de ardente paixão cega-me com uma luminosidade ofuscante. Ao fundo, no final da sinuosa sucessão de muros esventrados pela vida com os seus pedaços de côr contando histórias que já esqueci, o velho e pesado portão deixa transparecer um retalho mais das almas que se esvaem dos corpos amontoados atrás das pesadas portas dos minúsculos refúgios que não conseguem oferecer mais que uma noite sem fundo.

Sonho.

A minha dança não terminará. Abraçado pela gélida e interminável teia de ruas, travessas, praças e avenidas, pequenas memórias de noites quentes e sóbrias atrapalham o esquecimento que me tentou roubar a cidade. Falta-me o fôlego e sobra-me o desejo de possuir todos os encantos que nunca conseguirei sequer imaginar. A glória passada, tornada desejo languido, encantou-me, qual sereia enleando em seus braços o incauto marinheiro. Ao longe as imagens vão-se tornando cada vez mais nítidas e puras.

Devaneio.

Do outro lado, perco-me do caminho que conheço de cor e encontro-me, sentado, ao lado de Deus.

Pequenos pontos de luz iluminam a ponte que exibe a sua desnudez, só para mim, preenchida com as almas dos que ficarão mais um pouco para se deixarem arrastar pela minha embriagadora cidade.

O rio separa-me agora dos pequenos olhos que brilham, desvanecidos pela majestosa névoa. Por um instante apenas eles fixam-me, imóveis, como se descobrissem todos os meus inconfessáveis desejos.

A aura da minha atlântida chora as lágrimas que farão transbordar o rio, com o qual se submergirá. Sonhá-la talvez não seja impossível. Cantá-la pouco menos. Viver Lisboa poderá ser sonhar, cantando a alma que se permite devanear.

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