Felizes os Mortos...

 

Devíamos ter procurado outro local enquanto pudemos. Este é muito frio e já está a deixar de ser funcional. Quantos mais chegam mais apertados ficamos.

Ainda ontem um dos que estavam a dormir morreu durante o sono e tivémos que o ir pôr lá fora, com todos os riscos que isso acarreta.

Acho que a situação se vai começar a tornar explosiva não tarda nada.

A comida também começa a escassear.

 

Já não se consegue sair. A pilha de corpos que fomos pondo lá fora resvalou para perto da entrada e bloqueou-nos a passagem. Devíamos ter depositado os corpos um pouco mais longe mas os mortos são pesados, e nunca pensámos que o vento se tornasse assim tão forte. Alguns de nós começam a ter alucinações e já se fala em procurar uma forma que nos permita aproveitar os corpos dos nossos companheiros cá dentro.

Está-se mesmo a ver a ideia, mas o canibalismo ainda não entra na cabeça de muita gente: há quem não perceba que esta será provavelmente a nossa única hipótese de sobrevivência.

 

É impossível ir lá fora. Mesmo impossível. Um de nós tentou sair desesperado, fora de si, aos berros de que já não aguentava mais, e mal pôs uma parte do corpo de fora, ficou quase imediatamente gelado pela intempérie. Morreu, obviamente, mas os uivos que lançou antes de expirar, ainda nos ressoam nos ouvidos.

Corre entre alguns a opinião de que talvez seja melhor tentar um suicídio colectivo. Outros, nos quais me incluo, pensam que vale sempre a pena esperar por um milagre.

 

A revolta estoirou. Os corpos despedaçados dos nossos irmãos espalham-se pelos corredores em poses obscenas.

Gostava de nunca ter vivido estes momentos horrendos em que o cheiro a carne crua e sangue parece tingir o ar de desespero e maldade.

Depois de ver uma mãe partir o crânio do próprio filho, não vale a pena perguntar o que é o horror puro. Fiquei a saber o que era nesse mesmo instante.

O que se segue vai ser certamente um hediondo festim canibal...

 

Eu tinha razão. Comeram os corpos dos própros irmãos e familiares. Não consigo descrever tudo o que vi sem enlouquecer. A tinta com que escrevo está a terminar, e depois disso já não há forma de continuar este relato. Penso que nessa altura, o primeiro passo no retorno para o barbarismo estará dado.

Os vencedores da revolta já empunham os fémures das vítimas como clavas.

Dentro de um ou dois anos, quando pudermos voltar a ir lá fora, já se terão esquecido de como falar uns com os outros e os grunhidos passarão a ser a forma eleita de comunicação. Eu não vou presenciar isto. Tenho junto de mim a última faca deste abrigo. Roubei-a quando

ainda havia ordem neste local, já a pensar numa situação deste género.

Agora vou realizar o meu próprio milagre. O único problema é que os meus ossos vão ser certamente utilizados como armas pelos da minha espécie contra eles próprios. Mas nessa altura já não vou ser eu. Acho que posso morrer com isso na consciência...

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

A tribo deambula pelas ruínas de uma cidade. Nenhum deles alguma vez saberá pronunciar o seu nome. As deformações que ostentam dificilmente permitiriam a um observador externo classificar esta horda como seres humanos. Um deles, o chefe certamente, lança um hurro imenso e direcciona a mole humana para uma estrutura enorme que se eleva para os céus. Há alguns anos (séculos?) atrás, ele diria que estava a passear  em direcção à Torre Eiffel...

 

N.A: Alguns autores defendem que nos meses que se seguem a um conflito nuclear global, o nosso planeta entraria no chamado Inverno Nuclear. A vida na superfície da Terra seria impossível para o Homem.

O arsenal nuclear total da Humanidade, continua a ser mais do que suficiente para provocar este fenómeno. Alguns analistas políticos defendem que hoje em dia é mais fácil haver um conflito deste género, dada a instabilidade política que se vive nalgumas nações que detém o

know-how nuclear.

*Openheimer, "pai" da primeira arma nuclear.

Home Por Autor