Fiz Uma Coisa Mesmo Estúpida

 

Fiz uma coisa mesmo estúpida. Mas mesmo estúpida.

 

Estive a ler as tuas cartas.

 

A mais recente data de há sete anos atrás. A mais antiga foi escrita há dez.

Dez anos não me fazem sentir velho. Pelo menos, não mais do que me sinto.

 

Que parvoíce, não é? Estivémos perto de seis anos sem nos vermos, encontrei-te por acaso numa bomba de gasolina à beira da auto-estrada e pronto. Como que a morrer, assim de repente, engoli várias vezes em seco quando me disseste que tinhas casado há dois anos, que estavas feliz.

Fizémos planos para nos encontrarmos em breve e hoje, aproveitando a minha visita ao Porto, almoçámos junto, num cafézinho ao pé do teu emprego.

Um almoço normal. Daqueles que eu faço com os meus colegas de trabalho.

Um almoço de uma hora, sem mais, porque há horários a cumprir.

 

Talvez um dia venhas a saber que esse café, numa transversal da Avenida dos Aliados, vai para sempre ficar marcado na minha memória, mesmo que nunca lá volte. Acho que ainda te lembras da casa onde passámos aquele fim-de-ano, a casa que hoje já não existe, onde só estivémos uma vez. Lembro-me de pormenores dessa casa como nunca pensei lembrar-me de coisa alguma.

Lembro-me que ao lado da cama onde passámos boa parte dessa noite havia um sinal de trânsito a que alguém deve ter achado piada.

 

Falámos dos amores que se viveram no verão em que nos conhecemos.

Disseste-me que a tua irmã nunca conseguiu esquecer o Fernando. O que eu não te disse foi que também eu nunca te esqueci; que ainda hoje fazes mossa nas outras mulheres que te tentam substituir. Só consegui gracejar que ‘depois de ti foi sempre a descer’, o que até certo ponto nem é verdade, mas hoje é, porque as verdades, ao contrário do que se pensa, também mudam. E hoje desejei-te, cobicei-te, amei-te tanto por ainda seres a pessoa adorável que eras, odiei-me tanto por te ter perdido, senti-me tão vazio por não te ter, que não tive alternativa senão reler sem lágrimas as cartas que me escreveste há sete e há oito e há nove e há dez anos, para te ter outra vez, para que me amasses outra vez, para viver o sonho outra vez.

 

E eu que digo que nunca amei digo-te já, antes que fuja, que eu amei-te mesmo, com todas as letras, e foste - agora de certeza - a única que amei.

Porque se na altura eu pensava que não sabia o que era o amor, que pensava que era uma coisa que viria mais tarde, hoje sinto o amargo na boca de perceber que era aquilo mesmo. E sinto a tristeza de nunca mais ter conhecido coisa parecida.

Foram precisos tantos anos para chegar aqui? Que discernimento perdi entretanto? Que parvoíce é esta de eu procurar o amor, quando afinal já o tive, quando afinal eu sei o que isso é?

 

Quando acabaste comigo, num centro comercial na Rotunda da Boavista, nessa noite pensei que ia morrer. Bebi tanto, chorei tanto, vomitei tanto, dormi na rua... quando acabaste comigo, acabaste comigo. Porque eu não estava lá.

Porque eu não vivia no Porto, porque só nos víamos de vez em quando. Na altura isso chegava-me, sabes? Mas tu eras já uma senhora (tinhas vinte na altura, não era?), e a distância prega partidas aos amantes, e a distância faz com que os terceiros fiquem mais próximos. Quando cheguei aos vinte entendi isso muito bem, não te levo a mal.

 

Mas agora gostava que me dissessem: porque é que eu te voltei a encontrar?

Uma coincidência daquele tamanho não é uma coincidência, é intervenção divina, é uma armadilha nas nossas vidas. Consegues ver que é uma armadilha?

Será que tu também percebes que estas coisas não acontecem assim? É que, se tu não vês, ainda me dá mais medo, medo do que vou fazer a seguir, medo de te telefonar, de te escrever, de estragar qualquer coisa que está feita.

Porque eu conheço-me, e sei que faço coisas porque quero, e só porque quero, sem pensar nas consequências.

 

Se calhar vou deixar de te ligar, de te escrever, até conseguir esquecer que nos voltámos a encontrar. Talvez seja para isso que nos encontrámos – o derradeiro teste para que me aparte do passado, para que viva para hoje, sem arrependimentos, com alegria. Se calhar é o melhor que tenho para fazer.

Mas, e se daqui a dez anos te voltar a encontrar? E me arrepender desta cobardia que é fugir ao destino? E se afinal conseguíssemos ser amigos, apesar de tudo? Afinal, eu mudo de espírito com frequência, e não sei o dia de amanhã... isto tudo só se move assim porque tu conseguiste e eu ainda não.

 

E agora, Ana? Não tenho o direito de te mandar esta carta. Nunca mais te vou poder dizer estas coisas. Atrasei-me, casaste há dois anos.

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