Quando me atirei para a frente do camião para salvar aquela criança não o fiz por altruísmo.
Fi-lo
pela mesma razão que faz qualquer um avisar alguém que tinha deixado cair
qualquer coisa.
Como
quando se diz : "Cuidado, não
pise essa casca de banana!", eu tinha corrido para a estrada a gritar
"Cuidado, saí daí!". Mas desta vez, a situação não terminava
com um sorriso e um "Obrigado".
Aliás
nem sei como terminou. Empurrei a criança para a berma da estrada, desviando-a da trajectória do
veículo. Ao fazê-lo, quase todo o impulso que
trazia foi transmitido à pobre criança, que ia provavelmente a sonhar com o
Action-Man sem sequer saber ainda o que acontecera, ficando eu a ocupar o
mesmo espaço onde a agora felizarda criança se encontrava um instante antes.
Esta troca de lugares ocorreu tão rapidamente que nem Deus se deu conta da
troca que tinha ocorrido.
Obviamente,
no intervalo infinitesimal de tempo de que dispunha antes do impacto com
aquelas 20 toneladas projectadas a 60 km/h, tive tempo apenas para pensar na
minha namorada que tinha ficado no passeio com um esgar de espanto estampado
na face (acho que não percebia nada do que se estava a passar), tempo também
para reparar que estava quase a chover, para amaldiçoar o estúpido do puto,
e finalmente sentir o impacto.
Curiosamente
não doeu.
Toda
a gente pensa que doí mas é tudo mentira. Dizem isso só porque estão vivos
e nunca foram esmagados por um camião.
Quem
já passou por isso sabe que não é nada como as pessoas pensam.
Sente-se
apenas um choque enorme, e há certas partes do corpo que perdem subitamente a
sua funcionalidade. Por exemplo, a perna que fica debaixo do rodado deixa
notoriamente de exercer qualquer actividade motora e todos os restantes
membros adoptam uma atitude solidária com a dita perna. Nalguns casos pode
ter sido pelo facto de a ligação física com o resto do corpo se ter perdido.
Aliás, o próprio corpo deixa de estar organizado da forma como
estamos habituados. Enfim, a verdade é que não sei por que sortilégio vocês
conseguem ler estas linhas porque sinceramente acho que morri.
Não
há forma de eu ter a certeza do que se passou nos momentos seguintes porque
obviamente quando se morre os sentidos deixam de funcionar. Lembro-me ainda de
ouvir alguém dizer "Coitadinho, morreu como um herói!...".E foi
isto que me fez uma confusão tremenda..
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Porque
eu não queria ser nenhum herói. Aliás preferia de longe estar vivo e não
sair no jornal. Eu tinha só visto o puto no meio da estrada e deu-me aquela
travadinha de o ir lá empurrar. Depois foi tudo uma cascata de acontecimentos
hiper-rápidos. Nunca pensei "Estou a fazer isto para ser um herói".
Apeteceu-me, pronto!
Quero
apenas que saibam que na maior parte das vezes, os actos de heroísmo devem
funcionar desta forma. Quando se está a agir heroicamente, nunca se tem a noção
ou a consciência disso.
Mas
quando morrem os heróis, o Presidente da Câmara bota discurso na campa
salientando os bravos actos do defunto. Se fôr um grande herói até tem
direito a banda. E se fôr um herói nacional, até mete Presidente da República
e (Glória das Glórias) reportagem em directo da SIC.
No
meu funeral podem fazer o que quiserem, mas mais importante é que o Zé
seja o primeiro a chegar, esteja a fumar nervosamente e diga "Vamos
entrar?"!!