Estes
estranhos acontecimentos ocorreram recentemente. Foram-me narrados por uma
criatura a chamarei o Padre. Na altura em que me deu notícia destes factos,
nunca o julgaria com tão séria e austera ocupação, dada a fisionomia
fantasmagórica e tresloucada que
ostentava.
Mas não vos vou maçar com pormenores…
Já
era a segunda vez naquele ano que isto lhe sucedia… Quando os três sinos da
igreja tocavam, nem o Padre nem o presidente da câmara o impediam de subir à
alta torre da igreja e agarrar os rijos pendões de corda grossa para depois
os lamber até a língua ser uma massa vermelha e informe, o sabor do sangue
avivado pela dor que se instalava comodamente no seu corpo. Antes do fim das
badaladas tinha ainda tempo para partir as unhas e os dedos de encontro à
parede de granito do velho campanário, enquanto tentava desesperadamente
agarrar os próprios ressaltos da parede. O resultado final era uma boca onde
seria difícil separar e distinguir zonas típicas como os lábios superior e
inferior e a já referida língua. Havia também umas mãos que para além de
alguns ossos fracturados, tinham um aspecto que lembrava as chagas de Cristo.
Não
era certamente Pedro Batata que
conseguiria explicar a razão da sua mutilação. Durante as longas semanas de
convalescença que se seguiam a estes "ataques", Pedro tinha acessos
de febre que embora pudessem ser justificados pela gravidade das infecções
que invariavelmente sobrevinham aos seus ferimentos, traziam o Padre e o Médico
da escura e gélida aldeia onde decorre este drama, profundamente preocupados
e (porque não dizê-lo) aterrados com as estranhas palavras que brotavam dos
sonhos dementes, alucinados e
surreais
do doente. Frases como "Ainda não conseguiste furar e vais morrer a
tentar…" e "Não há vida que chegue para tanta dor", não
eram nada tranquilizantes para os doutos e fiéis companheiros de cabeceira do
Pedro Batata.
Quando
finalmente recuperava das suas enfermidades, Pedro era cautelosamente sondado
pelo Padre numa tentativa de fazer alguma luz sobre este estranho
comportamento. Mas o infeliz recordava-se apenas dos momentos imediatamente
anteriores ao episódio de loucura. Depois, o que Pedro conseguia descrever,
nas suas palavras, " É como se me virasse do avesso e ficasse com os
pensamentos ao contrário". Estas palavras obscuras mereciam apenas um
leve menear de cabeça do Padre que mais uma vez o benzia, suspirando na sua
ignorância.. Estas ocorrências eram demasiado estranhas para ele, e desde os
tempos do
Seminário
que não ouvia coisas tão estranhas. Nalguns relatos de exorcismos levados a
cabo pela Igreja, havia alguns pontos de contacto com as descrições de
Pedro, mas não passavam de fracas comparações…
Nem
os acontecimentos posteriores iriam lançar luz sobre o assunto. Um dia, já
numa fase adiantada da convalescença Pedro chamou pelo Padre. Sentia-se mal.
O Padre chamou o Médico. Por esta altura já este se debatia em convulsões,
que aumentaram à chegada do Médico. Tentam segurá-lo. Pedro resiste. Os braços
começam a desmembrar-se. O rosto
explode
deixando no seu lugar uma massa informe e vermelha. Pedro continua a
debater-se A sala enche-se com estranhos cânticos medievais:
"E
eu hei-de voltar para vos governar e dominar os fracos
Eu
sou aquele que sou, e o meu nome é o Não Nomeável,
Sou
o Dador do Horror e procuro o meu Pupilo
De
fora para dentro, do interior para o exterior.
Lanço
os meus filhos, e eles recolhem os corpos
VEM,
Meu principe para um reinado de Trevas"
Neste
ponto o Padre ajoelha-se e fecha os olhos horrorizado. O resto do relato é-me
fornecido através das impressões que me são facultadas pelas suas impressões
auditivas.
O
ruído torna-se ensurdecedor e os gritos de Pedro tornam-se autênticos uivos
das criaturas infernais.
De
súbito tudo sossega. O Padre abre os olhos. O Médico tinha desaparecido.
Pedro encontra-se deitado de bruços no chão. Está morto. Quando lhe tocam,
o seu corpo parte-se em pequenos pedaços que desaparecem engolidos pelo
soalho. O Padre foge horrorizado.
Dias
depois, quando chega ao meu consultório e me faz este relato,
o Padre balbucia incoerentemente o que se passou daquele dia em
diante. As acusações de Satanismo, a expulsão da Igreja, e finalmente a
entrada num manicómio, foram etapas normais e previsíveis da vida deste
pobre diabo. Dalí não tinha nada a recear. Seria sempre impossível alguém
acreditar no seu relato. Mandei chamar a enfermeira nova que eu tinha
admitido recentemente. Pedi-lhe para levar o Padre de volta para a sua cela.
Tem piada, esta enfermeira ainda não fez comentários parvos sobre o facto
de eu ter olhos vermelhos…