“Cumpriram-se hoje, exactamente cinquenta Anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.
Neste meio século não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica Humanidade capaz de enviar instrumentos a um Planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, porque não sabem ou porque não podem ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aqueles que efectivamente governam o Mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da Democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensemos que nenhuns direitos Humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta Anos aquilo que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o Mundo possa tornar-se um pouco melhor.
Não esqueci os agradecimentos. Em Frankfurt, no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei forma para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Agradeci igualmente aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores Portugueses e de língua Portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto.”
Discurso
de José Saramago.
Estocolmo, 10 de Dezembro de 1998.
Este Homem foi à Academia Sueca receber um importantíssimo prémio e fez um apelo por todos nós.
Façam-lhe a justiça de ouvir atentamente as suas palavras.
Façam-lhe a justiça de o respeitar profundamente pelo seu percurso ímpar, desde que começou, descalço, até ao dia em que percorre, de samarra alentejana, a fria Estocolmo.
Façam-lhe a justiça de se sentirem honrados, agradecidos e felizes com o seu justo prémio.
Façam-lhe a justiça de se emocionarem com a história de seu Avô – iletrado, sem qualquer formação escolar - que, quando no Inverno via os leitões com frio os levava para a cama consigo, para que pudessem ficar um pouco mais quentes. Esse Homem que, ao sair para o Hospital e sabendo que já não voltaria à sua casa, se abraçou - a chorar - às suas laranjeiras.
Façam-lhe a justiça de ser como ele, coerentes com aquilo em que acreditam.
Ou pelo menos deixam que quem quer, lhe faça essa justiça.
Eu quero porque Ele o merece.
Deixem-me sentir as lágrimas a rolarem-me pelo rosto, quando o ouço falar apaixonadamente de sua mulher, dos nomes, dos livros ou das vidas daqueles que sofrem.
Façam-lhe a justiça de lutar um pouco por todos nós, como ele tenta fazer.
“Talvez o Mundo possa ser um pouco melhor”