Anacleto Gato Preto era o exemplo completo da má sorte e da injustiça.
Ia beber um copo com os amigos e pagava sempre a conta de todos. Houve um dia em que se esqueceu da carteira. Ninguém lhe pagou a conta, nunca mais o deixaram entrar no café.
No emprego era um trabalhador exemplar e fazia tudo por toda a gente. Um dia chegou 10 minutos atrasado. O patrão estava mal disposto, despediu-o.
Comprava sempre o mesmo bilhete de lotaria, na tabacaria do seu irmão. Um dia saiu-lhe a lotaria. O irmão ainda tinha o bilhete, fugiu com o dinheiro.
Em casa era o marido que qualquer mulher desejaria. Um dia adoeceu. A mulher chateou-se e po-lo fora de casa.
Era um verdadeiro bom samaritano. Ajudou uma velhinha a atravessar a estrada. Escorregou numa poça de água, foi atropelado por um camião.
Mas a pior história decorreu num frio e cinzentão dia de inverno.
Ia a sair do estúdio alugado onde vivia, quando o Sr. Alcides do 1ºD lhe pregou um valente encontrão. O vizinho, com maus modos, resmungou durante uns breves instantes e mandou um belo pontapé na sua chave que entretanto caíra para o chão. Calmamente, esqueceu o contratempo, pediu desculpas ao seu companheiro de prédio “coitado do Sr. Alcides, provavelmente teve uma noite atribulada”, e desceu as escadas à procura da sua chave.
Chegou ao fundo das escadas ainda a tempo de ver a porta da rua fechar-se atrás do cão da Dona Constânça “pobre senhora, meio mouca e sem ninguém que olhe por ela” que levava a chave milagrosamente equilibrada sobre o lombo peludo e malcheiroso. Saiu atrás dele e quando tentou abordar a Dona Constânça explicando o caso da pequena chave da sua porta que o cão dela, levava em cima das costas sabujentas, por causa de um pontapé do Sr. Alcides, obteve como resposta um “Malcriado!” e uma mala, bem no meio do nariz. Como já estava habituado a estas coisas, viu aquela cena como uma sorte danada, pois o cão ao ver isto, além de lhe ter dado uma valente mordidela na canela, deixou cair a chave. Quando o Sr. Anacleto pegava na chave, o filho da Dona Felisberta -o Julinho, que é tão traquinas, coitadinho- passou com a roda da bicicleta por cima dela, o que fez com que desse um pinote no ar e após algumas copiosas piruetas, entrasse no bueiro das águas pluviais.
Passou então à fase seguinte e abriu a forte grelha metálica que lhe permitiria, finalmente, seguir viagem para o seu dia de trabalho. Ao tentar pegar na chave, uma pequena enxurrada de água suja de lama empurrou a chave para o esgoto e molhou-o dos pés à cabeça. Qual era a sua solução, nesta altura? Entrar para dentro do esgoto, porque a chave não teria ido ainda para muito longe.
Levantou a pesadíssima tampa do esgoto, olhou para o fundo e saltou lá para baixo. Olhou à sua volta e viu, quase de imediato, a sua chave. Pegou-lhe, guardou-a religiosamente dentro do bolso do casaco. Quando tentou chegar à saída, ouviu um ribombar como de se um grandioso trovão se tratasse, a entrada ficou tapada e ele completamente às escuras. Como ele desejou ser fumador naquela altura!
Até hoje, nunca mais ninguém ouviu falar do Sr. Anacleto Gato Preto. Uns dizem que se mudou para Trancoso. Outros dizem que encontrou uma mulher com quem vive numa cabana à beira mar. Outros dizem que morreu com um tiro numa rusga e está preso no linhó, ali em Sintra. Eu, por mim, já não digo nada…