Rubem Braga, o velho Braga, talvez o maior cronista brasileiro de todos os tempos, escreveu uma vez uma crônica chamada "Um rapaz de Niterói", que saiu numa coletânea chamada "As Boas Coisas da Vida". Morou em Niterói por um ano, estudou no colégio Salesianos, onde segundo ele ainda está lá a foto dele moleque junto com o resto da turma. Brincou no Campo de São Bento, quis ter idade pra arrumar namorada pra passear de mãos dadas pela Praia de Icaraí… Olhava pra trás e de alguma forma ainda se considerava um rapaz de Niterói. Niterói tem mesmo esse efeito sobre as pessoas, deixa marcas indeléveis na personalidade, e como eu mesmo sou fruto dessa cidade, é com um certo orgulho que percebo um escritor tão vivido e tão conhecedor das pessoas e dos lugares reservar um espaço para Niterói nas suas lembranças e no seu coração como uma das boas coisas da vida.
Entretanto Niterói não é uma cidade para ser "passeada", mas para ser vivenciada, experimentada com um sentido oculto que não faz parte da fisiologia do indivíduo. Certo, pode-se ir a Niterói e maravilhar-se com a beleza das praias, com a tranqüilidade das tardes nos bairros residenciais, com os museus e com a rica e pouco conhecida história da cidade, com a gente bonita e acolhedora, com o seu estilo de vida, até mesmo com a vista do Rio - e aqui vale uma digressão: como todos sabem, para os cariocas, a vista do Rio é a melhor coisa de Niterói. No que talvez tenham mesmo razão, porque ao pôr do Sol a imagem é tão, mas tão bonita, que mesmo diante de todas as outras coisas maravilhosas que a cidade tem esta seja a mais deslumbrante. Mas maravilhar-se com tudo isso ainda passa muito longe do que seja passar algum tempo em Niterói e sentir-se parte dela.
Por tudo isso, é claro que é muito difícil falar de Niterói de uma forma linear. Se me tivessem pedido para escrever um texto para um guia de viagens estaria em maus lençóis, sem dúvida. Mas aqui, se me permitem, vou apenas comentar algumas coisas que me parecem mais interessantes na cidade, sem qualquer ordenação cronológica ou geográfica. Assim quem sabe vamos "batendo um papo" sobre a cidade, talvez a melhor maneira de conhecê-la.
Podemos começar falando um pouco daquilo que vamos encontrar por toda parte na cidade: niteroienses. Claro que, como niteroiense, apesar de vivendo na metrópole carioca há mais de quatro anos, sou absolutamente suspeito para falar, portanto dêem os descontos que acharem necessários.
O niteroiense típico é fundamentalmente um sujeito afável e boa-praça. Em geral o niteroiense é mais tranqüilo, daí o aspecto provinciano que leva ao erro de imaginá-lo pouco culto e criativo. Também é gente pouco leviana e que leva a sério o que faz e pensa, sem no entanto perder a alegria. É gente comedida sem ser chata. Algo como o cruzamento de mineiro com carioca, na melhor acepção. Nossas meninas são menos frescas, nossos rapazes menos preconceituosos. As pessoas chamam pipa de cafifa, joelho de italiano, caixote de soca, e dizem que vão à casa de fulana ou beltrano, sem usar o artigo, idiossincrasias que apenas os ouvidos mais apurados percebem. Além disso os ônibus só têm dois dígitos, e as padarias fecham às segundas-feiras - o que provavelmente sinaliza ao cidadão o término do fim de semana, sem o que ele possivelmente continuaria a curtir a praia e os amigos. Até hoje tenho dificuldades com isso aqui no Rio.
Sobre as praias (vamos logo ao que interessa): em Niterói existem dois tipos de praias - aquelas em que você pode entrar na água e aquelas em que você não pode (ou pelo menos não deve) entrar na água. As primeiras são as praias oceânicas (Piratininga, Sossego, Camboinhas, Itaipu, Itacoatiara), localizadas para além do maciço de morros que dá forma à Baía de Guanabara pelo lado de cá; as últimas são as praias internas, dentro da baía (Gragoatá, Boa Viagem, Praia das Flechas, Icaraí, São Francisco, Charitas, Adão e Eva). Eu me lembro de ter tomado banho em Icaraí quando pequeno, mas há pelo menos 25 anos a praia é tão poluída que é melhor não arriscar. Se mesmo no Rio as praias internas da baía são insalubres, imaginem em Niterói, uma vez que a correnteza dentro da Baía de Guanabara em geral circula no sentido horário, isto é, passando primeiro pelo Rio, depois pelo fundo da baía, São Gonçalo e finalmente Niterói! Recebemos todo o lixo flutuante da baía, sem contar tudo o que é diluído na água. Vê-se que a água não pode ficar grandes coisas. Há quem pense que o município teria o direito de pedir indenização por isso, afinal, é como se vários vizinhos escolhessem o seu quintal para jogar seu lixo. Apesar disso, há dias em que miraculosamente a água na Boa Viagem ou em Icaraí está tão verdinha e tão transparente que parece cartão-postal, e dá uma vontade danada de entrar (resistam!).
Entre a Praia das Flechas e a Praia de Icaraí, logo ali pertinho do antigo Cassino Icarahy, atual reitoria da UFF, sobressai um conjunto de rochas que emerge das ondas, com a pedra do Índio e a pedra de Itapuca, e onde boa parte da grande legião de surfistas de Niterói se inicia. Em dias de ressaca, as ondas ficam boas, e é preciso experiência para localizar as pedras debaixo d'água e evitá-las. É comum ver grandes grupos de jovens reunidos no calçadão defronte à Itapuca observando as manobras dos colegas surfistas. Um desafio ainda mais radical é praticar o surf ali à noite, com a iluminação artificial dos postes da rua. Adrenalina pura.
O que me lembra o "surf de pedra" que tinha em Itaquá - que é como a gente chama carinhosamente a praia de Itacoatiara. Uns malucos subiam o costão da Pedra de Itacoatiara, um morro de granito que fica no canto esquerdo da praia, e quase de lá do topo desciam correndo a vertente íngreme e se jogavam na água, gastando um tênis Rainha Vôlei a cada duas descidas. Um erro e babau, era coisa de maluco mesmo; não levava mais que uns poucos segundos descer aqueles sei lá, cento e poucos metros, pelo menos, e parar no meio era definitivamente proibido pelas leis da física. No entanto, conta-se que alguns desses "surfistas" realizaram alguns heróicos salvamentos de gente que se afogava lá na água.
Itaquá é também a praia da badalação da garotada, da paquera, das gatinhas e dos surfistas. Tem trailer com sanduíche natural e tudo o mais, e é onde rolam os campeonatos de surf em Niterói, em geral. Ao lado direito, tem uma prainha, mais calminha, pra onde os pais levam as crianças. As ondas em Itaquá em geral são fortes e pra criança pode ser perigoso, mas ali na prainha elas ficam protegidas por uma grande rocha que barra as ondas e deixa só uma marola frouxa entrar. Mas fiquem de olho vivo: tem ouriços às pencas nas pedras em volta, mais pro fundo.
Itaquá deve ser maravilhoso pra morar: além da praia fantástica, todas as ruas têm nomes de flores, e só é permitido construir casas ali. Há uma única entrada para o bairro, guarnecida por um posto policial, ali do lado do ponto em que o 38 (Itaipu - Centro) pára. As ruas internas são de terra batida e muito arborizadas, dando às casas bonitas um ar mais de tranqüilidade que de sofisticação. Há também um acesso para o Parque Estadual da Serra da Tiririca, encostado ali na Pedra de Itacoatiara, por onde se pode seguir uma trilha que dá acesso à própria Pedra de Itacoatiara, ao Alto do Mourão, um morro ainda maior além do qual já fica a praia de Itaipuaçu, já no município de Maricá, e a enseada do Bananal, praia rochosa abrigada e campo escola de alpinismo onde outro dia mesmo um leão-marinho com alguns ferimentos resolveu passar um tempo se recuperando. Belo lugar para passeios mais ecológicos, ao mesmo tempo pertinho da praia. Perfeito. Passei o Réveillon algumas vezes no alto da Pedra de Itacoatiara, e é sensacional: dá pra ver os fogos de artifício desde Maricá até São Conrado, e numa noite clara até os clarões dos festejos em Petrópolis.
As outras praias também não ficam muito atrás. A propósito uma coisa legal a respeito das praias oceânicas em Niterói é que ainda têm muito verde em volta. E muito céu, também. Nada daquele paredão de prédios opressivo olhando pra você enquanto você toma seu banho. Todas são bairros residenciais formados por casas e loteamentos, alguns bem antigos. Há duas lagoas, a de Piratininga, atrás da praia de mesmo nome, e a de Itaipu, cujo canal de acesso ao mar separa justamente as praias de Camboinhas e Itaipu, mais ou menos como o canal do Jardim de Allah que liga a lagoa Rodrigo de Freitas ao mar lá no Rio separa o Leblon de Ipanema. Apesar dos esforços de vários grupos ambientalistas, que têm uma atuação marcante e muito positiva na região oceânica de Niterói, a especulação imobiliária e a ocupação desordenada da região causou e ainda causa grandes estragos a ambas as lagoas, cujo espelho d'água foi aos poucos sendo sucessivamente reduzido para dar lugar a mais loteamentos. Ainda assim, as lagoas são importantes ambientes não só para a fauna local (há colhereiros cor-de-rosa!) como também para uma parte da população que sobrevive da pesca e coleta em suas águas, de onde se extrai camarão, caranguejo, siri e pescado pequeno para isca - Itaipu era apenas uma colônia de pescadores não muito tempo atrás.
De Arraial do Cabo até o final da Restinga da Marambaia, Itaipu talvez seja a única praia verdadeiramente abrigada disponível para embarcações como lanchas e veleiros. Não é à toa que eles lotam a enseada em dias de verão ensolarados. O costão da praia é ótimo para a prática do mergulho, e a fauna marinha exuberante. Sempre há bom pescado para comprar, e se vocês chegarem realmente cedo, ainda podem ajudar os pescadores a puxar as redes, ou recebê-los chegando da noite de pesca embarcados com os peixes ainda pulando nas caixas. Mergulhando, não é difícil encontrar polvos, lulas, peixes multicoloridos, caranguejos-aranha, moréias, linguados, estrelas-do-mar etc. E não é preciso ter equipamento: tudo isso se pode ver num mergulho em apnéia no costão! Basta uma máscara e um snorkel. A praia, entretanto, fica lotada no fim de semana. Mais do que a gente gostaria, talvez. Assim, pode ser que mesmo com os restaurantes de frutos do mar na areia e com o Museu de Arqueologia e o sítio arqueológico das dunas de Itaipu, vocês pensem em procurar um lugar mais tranqüilo para ir à praia.
Bom, este lugar existe, e está logo ao lado, embora o acesso a ele de carro se faça por Piratininga: é a praia de Camboinhas. Não há linhas de ônibus para esta praia, portanto ela costuma estar mais vazia (na verdade menos cheia) mesmo num dia ensolarado de verão. Quando eu era pequeno meu pai me levava lá e fazíamos um verdadeiro off-road com o Aerowillis dele, mas hoje em dia o loteamento vingou e o local se transformou num belo bairro cheio de casas novas e bonitas - embora eu odeie umas casas que construíram bem na borda da areia e que a meu ver destruíram o equilíbrio arquitetônico do lugar. Ali, como em Itaipu também já está se fazendo, há quiosques na rua da praia, com descidas para a areia e cadeirinhas e guarda-sóis que se pode usar sem pagar nada - é de bom tom no entanto consumir no quiosque, e eles atendem na areia. Camboinhas costumava ter muitos tatuís, que catávamos para fritar e comer com limão, no arroz. Vocês sabem, praia dá uma fome! Em Itaipu, a mesa era mais farta: pegávamos mexilhões na lage que tem submersa no fundo, mais ou menos no meio da praia, e também siris, atraídos pelos restos dos peixes que os pescadores devolviam ao mar depois de limpá-los para vender, no início do dia.
Dezembro de 2000
Rio Cultural
Copyright © 1999–2005
Fotos e edição: Fernando Ribeiro Gonçalves Brame
Texto: Roberto Affonso Pimentel Junior
beto@urbi.com.br
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