José Gonçalves Salvador |
Os Magnatas do Tráfico Negreiro |
INTRODUÇÃO Quando, há alguns anos, cursávamos História da América, na Fac. de Fil. Ciências e Letras, da Univ. de São Paulo, veio-nos à mente a idéia de que o tráfico negreiro deveria andar nas mãos de judeus portugueses, graças a certas evidências que possuíamos. O assunto talvez comportasse uma tese de doutoramento, conforme desejávamos, e para a qual nos incentivou o mestre da disciplina acima, professor Rozendo Sampaio Garcia. Iniciamos, então, na qualidade de aluno ainda, as primeiras leituras e as pesquisas em demanda do nosso objetivo. Eis porém que, ao nos defrontarmos com determinado documento originário do Conselho das Índias, mas baseado em denúncias remetidas ao rei da Espanha, tivemos que abrir um hiato a fim de buscar luzes acerca do problema sugerido pelo texto. Dizia este que os sertanistas de São Paulo quando se apossavam dos índios paraguaios, aldeados nas "reduções" jesuíticas, lhes punham nomes do Antigo Testamento. O que, noutras palavras, significava que muitos dentre os predadores seriam da estirpe judaica, e que, além do escravismo africano, havia uma segunda corrente alimentada por cativos indígenas, e conduzida por aqueles bandeirantes. Sendo, pois, assim, como identificar tais indivíduos? A tarefa se afigurava gigantesca! As barreiras pareciam inamovíveis à luz do condicionamento gerado por preconceitos e por fatores de natureza político-religiosa. Os velhos cronistas nada informavam e nem as genealogias. As leis da Igreja se opunham ao ingresso dos neo-conversos nas Ordens espirituais e à recepção de comendas honoríficas. O mesmo se passava quanto aos cargos públicos, exigindo-se que tanto estes como aqueles fossem portadores da legítima seiva ariana. Por sua vez, homens ilustres, a exemplo de Taunay, admitiam que, se houve cristãos-novos e marranos na capitania de São Vicente, o montante seria bem inferior relativamente a Pernambuco e à Bahia. Mas, uma coisa era a teoria, e outra, a realidade objetiva, segundo comprovamos depois. Fomos tão longe no sentido de esclarecer o problema relativo aos sertanistas de São Paulo, que, afinal, resultou uma tese assaz diferente daquela preconcebida ao iniciarmos os estudos. E, assim, surgiu a nossa primeira obra intitulada Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição.* Anos depois veio a lume a segunda, com o objetivo de lhe dar continuidade sob a epígrafe de Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680).* Uma terceira, denominada Os Cristãos-Novos e o Comercio no Atlântico Meridional, ** abrangendo a mesma fase histórica, realçou ainda mais o quadro há tanto imaginado. O tempo decorreu, mas, por detrás do novo tema, que agora se enfoca, tínhamos realizado três extenuantes viagens a Portugal à procura de documentos alusivos à questão em apreço. Por conseguinte, somente depois disso nos foi possível regressar ao ponto de partida. No interregno a nossa visão acerca dos judeus sefardins se ampliou consideravelmente. Granjeamos uma experiência sobremodo valiosa. A documentação que obtivemos com vistas ao tráfico negreiro nos permite, assim, oferecer aos estudiosos novas perspectivas quanto à matéria. Com grande surpresa chegamos à conclusão de que os judeus ibéricos foram os principais detentores do comércio negreiro, e mais: que um clã, ligado por interesses econômicos, quando não também por laços sangüíneos, o explorou largamente. De modo que, afora isso, o tráfico seria quase impossível, assim como a colonização do Brasil e da América Espanhola, por falta de outros mercadores habilitados, carência de embarcações, escassez de povoadores brancos e de obreiros que se sujeitassem a trabalhos servis, a exemplo dos exigidos pela indústria açucareira e pelo entabulamento das jazidas mineralógicas. O escravismo constituiu-se, pois, em fator de suma importância para a economia ibero-americana, porquanto canalizou recursos para os cofres de Portugal e da Espanha; imprimiu vida às minas do México e do Peru: incrementou e manteve durante século e meio, pelo menos, a monocultura canavieira do Brasil; animou a imigração para o Novo Mundo em virtude das alvissareiras condições que ia propiciando. Ouro, prata, açúcar, plantas tintoriais, marfim, e outras espécies, influíram eficazmente desde essa ocasião no comércio mundial. O Atlântico Sul se agigantou. Nossa preocupação concentrou-se nos dois primeiros séculos dos tempos modernos, mas, de maneira particular, no XVII, em que o assunto é pouco ventilado ainda hoje. Quase nada se escreveu, por exemplo, acerca da transferência dos direitos peculiares à Coroa lusitana para as mãos dos escravistas e nem sobre a forma pela qual o tráfico era conduzido, limitando-se os autores a narrar o que se passava entre a África e a América. Muitos jamais trouxeram a lume o fato de que a política monopolista do Governo também abrangia o setor negreiro desde as fontes de suprimento até às áreas de importação. É preciso, outrossim, levar em conta, que o escravismo assumiu diferentes aspectos no decorrer dos anos. Foi um até fins da Idade Média, mas depois, os descobrimentos marítimos e a conseqüente ocupação de novas terras, nas margens opostas do Atlântico Sul, deram-lhe outro caráter. Nem a modalidade que vigiu no XVII se pode equiparar à predominante no século anterior, ou à do subseqüente, quando o ouro do Brasil ponderou na economia européia. Monocultura canavieira, exploração mineralógica, cultivo de cafezais, cada qual teve o seu regime peculiar. Se, porém, quisermos encontrar a estrutura funcional do tráfico negreiro em sua totalidade, devemos buscá-la no século XVI, ao término das últimas décadas. A partir daí ela pouco se inovou quanto ao duplo objetivo de atender ao Brasil e às Índias de Castela. Eis por que, para compreender razoavelmente o fluxo escravista no período alusivo às Minas Gerais, no século XVIII, mister se faz ligá-lo às fases antecedentes. O mesmo, contudo, não se passou quanto às possessões de Castela, visto que os portugueses haviam sido ultrapassados pelos fornecedores ingleses, holandeses e franceses. No caso das Índias Ocidentais e Rio da Prata verifica-se que o tráfico guarda certa semelhança com o destinado ao Brasil durante a união das duas Coroas ibéricas (1580-1640), dadas as afinidades políticas entre ambas, à contigüidade geográfica e aos respectivos interesses econômicos. Mas as diferenças também existiram, conforme viremos a demonstrar trazendo à cena os contratos afro-brasileiros e os "asientos" afro-indianos. A documentação sobre esta matéria é abundante, o que, todavia, de par com o escopo da presente obra, nos obriga a usá-la apenas de maneira parcial. Quanto à América portuguesa não é menos farta a messe de textos, sobretudo manuscritos, os quais ainda jazem mal-explorados. Os escritores têm-se preocupado mais com os dois últimos séculos da escravidão, olvidando, talvez, que os anteriores são bastante significativos para a História, para a Sociologia, para a Economia e para a Ciência Política, e deveras necessários à boa compreensão do assunto. Em nosso estudo demos preferência às fontes originais, e em especial àquelas ainda mal conhecidas, a exemplo dos contratos de arrendamento, os quais, via de regra, incluíam outros monopólios de menor importância conforme as áreas abrangidas. É o caso relativo aos estanques do ferro, do marfim e da urzela. Nessa trama toda, como não poderia deixar de ser, foi notável o papel desempenhado pelos hebreus portugueses. Afeitos às atividades econômicas na Ibéria medieval, integraram-se também nos empreendimentos de ultramar, sem excluir o tráfico de escravos, a produção e o comércio do açúcar, a cobrança dos dízimos e das taxas alfandegárias, e assim por diante. Tivemos, por conseguinte, de efetuar o levantamento nominal dos principais traficantes e de estabelecer-lhes a identificação sangüínea, isto é, se arianos ou semitas, cristãos da velha etnia ou judeus sefardins. E, para tanto, recorremos aos arquivos do Santo Ofício, às chancelarias reais, aos documentos alusivos às Companhias de Comércio, às fontes de origem colonial, e, por fim, às genealogias, procurando deslindar os laços familiares, esgalhados não raro em direitura à França, à Itália, aos Países-Baixos, à Inglaterra, à Africa e aos demais continentes. Tal relacionamento explicaria o seu predomínio nos intercâmbios comerciais da Península com o exterior, e isso os colocava a cavaleiro no tráfico de escravos graças às mercadorias que recebiam de fora e que destinavam aos escambos onde fosse aconselhável. Como ninguém, os judeus ibéricos dispunham de créditos lá fora, só possíveis a reduzido número de negociantes da velha etnia cristã. Longe de nós a pretensão de originalidade no tratamento dispensado ao tema proposto. Queremos apenas esclarecer melhor certos aspectos da matéria em apreço e também mostrar alguns pontos olvidados até agora. Chamamos a atenção especialmente para a maneira controvertida acerca do procedimento para com os escravos a bordo; o problema dos transportes entre a África, Brasil e Índias de Castela; a questão dos lucros auferidos pelos traficantes negreiros. Além de outros considerandos. Agora, conheçamos bem de perto os grandes escravistas do tráfico negreiro nos seus primórdios. |
. |
De José Gonçalves Salvador, Os Magnatas do Tráfico Negreiro, São Paulo: Pioneira-EDUSP, 1981. * Publicados pela Livraria Pioneira Editora, em co-edição com a EDUSP. ** Idem, em co-edição com INL/MEC. Uma lista sobre história dos negros e escravidão em |
. |
A MISCIGENAÇÃO UNE A NAÇÃO |
.
|