GEOGRAPHIA XXI

Leandro Duarte Rust -História

 

AS SOMBRAS DE UMA NAÇÃO

 

Apaziguado. Quase um ano após o bombardeio de notícias e manchetes promovidos pelos meios de comunicação sobre o conflito de Kosovo, é esta a imagem que o mundo possui sobre os atritos que envolvem sérvios e kosovares. Contudo, jaz aqui uma guerra que nem mesmo o tempo conseguiu subjugar. Um conflito que segue a entrecortar os séculos, ora aberto, explícito e sangrento, ora surdo e sorrateiro. Contudo, engana-se aquele que julga encontrar todas as razões deste conflito apenas nos dias atuais.

Ao longo das eras a alma do povo sérvio, hoje o coração da Iugoslávia, foi moldada por sua luta contra o domínio de outros povos. Durante a Antigüidade o território da atual Iugoslávia pertenceu ao Império Romano. No fim do século III, em 292, o imperador Diocleciano (284-305) realizou uma série de reformas econômico-administrativa na tentativa de estancar a crise que assolava o Império, evitar a dissolução do mesmo pelas diversidades regionais pelas investidas e migrações bárbaras. Assim estabeleceu a Tetrarquia, dividindo a administração romana entre dois imperadores (com o título de Augusto) e seus respectivos suplentes (com o título de César). Nesta divisão os territórios que hoje conhecemos como Albânia, Montenegro e Sérvia ficaram sob a tutela do Imperador Oriental, de Bizâncio, já a Croácia, a Eslovênia e a maior parte da Bósnia-Hezergovina sob o controle do Imperador Ocidental. Antes mesmo da chegada dos povos eslavos, os Balcãs já encontravam-se divididos pelos movimentos de regionalização que consumia lentamente grande parcela do Império Latino.

Por volta de 625, na aurora dos tempos medievais, aproximadamente um século e meio após o saque de Roma pelos hérulos demarcando o fim oficial do outrora poderoso império Romano, instalam-se a noroeste dos Balcãs povos de etnia eslava, entre eles sérvios, eslovenos e croatas. Contudo, entre os invasores dos Balcãs os búlgaros, povo asiático aparentado dos hunos, edificam sua superioridade sobre os demais, sendo reconhecidos pelo governo imperial de Constantinopla, antiga Bizâncio, como senhores de grande parte da península. Os próximos cinco séculos seriam marcados pelas tentativas das populações eslavas dominadas de soerguerem-se como independentes. Assim perpassa-se um longo trecho da história sérvia, numa alternância dolorosa de conquistas e derrotas, e mesmo que no século VIII possamos apontar a existência de alguns reinos sérvios e croatas independentes, a hegemonia sob o solo balcânico revezava-se entre os imperadores búlgaros e bizantinos. Esboçava-se o mosaico de etnias e culturas que caracterizam atualmente os Balcãs.

Contudo no século XI a Sérvia estabeleceu-se finalmente como um reino forte, capaz não só de assegurar sua independência como de expandir seu poderio militar. Entretanto, tendo este mesmo século como cenário um outro acontecimento será responsável pela construção da identidade religiosa sérvia. No ano de 1054, as profundas e longas divergências entre o cristianismo ocidental e o peculiar cristianismo oriental, culminariam no Cisma do Ocidente. Uma ruptura no seio do cristianismo que daria origem a Igreja Católica Apostólica Romana, guiada pelo papa, e a Igreja Ortodoxa, orientada pelo patriarcado de Constantinopla. A partir de então os sérvios assumiram a fé ortodoxa, e na mais genuína combinação medieval de guerras e religião, vivenciaram o apogeu do seu reino, com o czar Dusan (1331-1355), que conquistou a Macedônia e a Albânia, e estabeleceu Kosovo como centro do Império Sérvio. Mas por ironia dos deuses da história, no ano de 1389, no coração desde mesmo império, a batalha de Kosovo marcaria a derrota do príncipe Lazar pelas tropas otomanas. O império perdido se tornará um ideal perseguido pelos sérvios no transcorrer dos tempos.

Se por um lado a batalha de Kosovo marca a derrocada dos sérvio ela representa a consolidação do poderoso Império Otomano nos Balcãs, que até então eram alvo de incursões de mercenários turco semi-independentes. Uma vez estabelecidos, os otomanos, não obrigaram a população local a se converter à fé muçulmana. Todavia, no século XVI, ameaçados pelo Império Austríaco dos Habsburgo, os otomanos estimulam a conversão das população fronteiriças ao império inimigo (Albânia e Bósnia). Aqui reside a gênese das divergências religiosa entre sérvios, cristãos ortodoxos, e kosovares, de maioria albanesa muçulmana. Aqui tem início um verdadeiro choque de civilizações, num cenário em que a convivência entre a peculiaridade do cristianismo ortodoxo sérvio e a rígida disciplina muçulmana albanesa foi mantida sempre pela lâmina de um espada ou pelo estrondo de um canhão. Numa região em que a tolerância religiosa esfumaça-se pelas vidas perdidas, e confunde-se com sombra da morte.

A partir do século XVIII, os russos incentivaram levantes das províncias balcânicas contra o poderio otomano, enfraquecido pela guerra pela independência da Grécia e pela intervenção das potências ocidentais que temiam o avanço do poder russo, o Império Muçulmano não resiste a pressão sérvia e reconhece uma autonomia à região, em 1817. Contudo a intervenção estrangeira precipita a Guerra da Criméia (1853-56), o debilita mais ainda o Império Otomano. E em 1878, a pressão russa e austríaca ajuda a garantir a independência da Sérvia, Bulgária, Montenegro e Romênia, reconhecida no congresso de Berlim. Em 1882 a Sérvia torna-se um reino sob a dinastia dos Obrenovic, entretanto com seu território reduzido pelo tratado de Berlim, em 1878. Esta convulsão fez aflorar nos Balcãs toda rivalidade e instabilidade existente entre os povos balcânicos. Nos 30 anos seguintes guerras e conflitos lavraram o solo da península em sangue, porém a intervenção das grandes potências asseguram esta configuração territorial. Em 1908 o Império Austro-Húngaro anexou a Bósnia, e reascende a chama dos nacionalismos balcânicos, e constitui-se como um obstáculo ao projeto sérvio de nação. Desta rivalidade deriva a razão do assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, Francisco Ferdinando, por um estudante sérvio (o estopim da Primeira Guerra Mundial). Em 1912 formou-se uma liga para a expulsão dos turcos da Macedônia. A Segunda Guerra Balcânica expande o poderio da Sérvia.

No desastre das potências centrais durante a Primeira Guerra Mundial, ergueu-se a formação dos reinos balcânicos, o que daria origem posteriormente à Iugoslávia. Durante a Segunda Guerra Mundial a Blitzkrieg de Adolf Hitler, a guerra relâmpago, controlou a Iugoslávia. Todavia sem dominá-la, pois os sérvios encamparam uma poderosa resistência que impediu a consolidação da dominação nazista. Sob a guia de Josip Broz Tito a Iugoslávia se livrou do julgo alemão. Tito realizou nos Balcãs uma das maiores obras de arquitetura política já feitas, sob o seu governo a Iugoslávia manteve-se coesa, tornando-se uma federação de seis repúblicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia, Sérvia, Montenegro e Macedônia). Em 1974, para enfraquecer o poder sérvio, Tito criou as regiões autônomas de Kosovo e Voivodina. Em 1989 estas mesmas regiões perdem sua autonomia. Dois anos depois Eslovênia, Croácia, Bósnia e Macedônia declaram-se independentes. Desmoronava o poder sérvio.

Os conflitos de Kosovo do presente reascendem com sangue as rivalidades religiosas entre sérvios e kosovares albaneses, além disso o discurso sérvio é moldado por um povo que busca na vazão dos séculos se afirmar enquanto nação, e que parece resumir sua existência na luta contra a dominação de outros povos. Não podemos negar que existem inúmeras outras questões atuais que fermentam o conflito nos Balcãs, como a reafirmação dos EUA como força hegemônica mundial, a necessidade de se conter um conflito que pode se alastrar pela Europa como um reação em cadeia, a posição Geopolítica de Kosovo no cenário europeu, além de outras. Mas ignorar o legado histórico dos Balcãs significa negar o entendimento do conflito. Pois a ambição de Kosovo de se tornar um país livre e independente fere diretamente o orgulho e o ideal de nação sérvio, e mantém cada vez mais dolorosa a ferida aberta na identidade sérvia pelos otomanos no ano 1389, pelo desfecho da batalha de Kosovo.

O conflito sobre o qual tentamos esboçar um breve e despretensioso resumo, deve ser encarado com o máximo de serenidade e cautela, pois a sucessão dos séculos é testemunha de que se trata de um gigante que nunca dorme, um conflito que insiste em resistir ao elemento mais essencial e duradouro da natureza: o tempo.