GLOBO REPÓRTER
Astrologia e jornalismo pseudocientífico
Ronaldo Cordeiro (*)
Já há alguns anos circula na internet um texto humorístico sobre os perigos
do pão. Entre outras estatísticas alarmantes, menciona que "mais de 98% dos
criminosos condenados comem pão", "metade das crianças que crescem em lares
onde se come pão têm desempenho abaixo da média" ou "mais de 90% dos crimes
são cometidos até 24 horas após a ingestão de pão" (The Dangers of Bread) .
Apesar da presença dos números e da aparência científica de algumas das
afirmações, coisas que às vezes seduzem alguns jornalistas, dificilmente
alguém levaria esse artigo alarmista propondo proibir a venda do pão a
menores de idade a sério. Muito menos se fosse alguém habituado à reportagem
científica.
No entanto, o Globo Repórter levado ao ar no dia 25/6/2004 ("Terapias
Alternativas - O poder da astrologia") noticiou uma pesquisa que pouco difere da piada do pão. Trata-se de
uma reportagem falando sobre a astrologia, que relata os resultados
aparentemente impressionantes obtidos por um estudo feito na UnB, que
comprovaria a influência dos astros sobre as pessoas.
Uma afirmação extraordinária, que contraria vários bons estudos científicos
publicados, inclusive em periódicos prestigiosos como a Nature, e que não
atribuem à astrologia capacidade maior de prever características das pessoas
do que o acaso. Embora a maioria desses estudos seja desconhecida do público
e pouco divulgada, ao menos um trabalho recente, o de Geoffrey Dean e Ivan
Kelly, recebeu alguma atenção da mídia em agosto de 2003, quando foi
amplamente divulgado como prova de que a astrologia não funciona. Nesse
estudo, amplo e bem implementado, foram acompanhadas mais de 2.000 pessoas
durante várias décadas, e não foi encontrada nenhuma correlação entre datas
e locais de nascimento e traços de personalidade dos participantes.
Claro que nenhum jornal ou revista parou de publicar a coluna de horóscopos
depois disso - afinal, trata-se apenas de um mero estudo científico. Ora,
que peso têm simples fatos científicos diante de uma crença que tem boa
popularidade?
Média alta
Como era de se esperar, não só a crença na astrologia não diminuiu entre as
pessoas comuns como parece não ter diminuído nem mesmo entre alguns
jornalistas e pesquisadores.
O estudo da UnB solicitou a um astrólogo que elaborasse os mapas astrais de
100 pessoas, e com base neles produzisse formulários descrevendo
características desses participantes. Estes então teriam de avaliar os itens
da descrição, dando notas de 1 a 5 para o quanto achassem que essas
características seriam acuradas. Para a surpresa e espanto dos
pesquisadores, o índice de acerto teria chegado a 95%. Não havia, no
entanto, motivo algum para espanto. Já é bem conhecida por qualquer pessoa
que pesquise sobre o assunto a característica principal que faz com que as
pessoas tenham a impressão de que a astrologia, e outras técnicas
adivinhatórias, funcionem. O segredo é fazerem-se descrições suficientemente
vagas e que se encaixem suficientemente bem com características da maioria
das pessoas, de forma que o leitor sempre encontre alguma coisa que pareça
ser acertada. Esse aspecto psicológico que faz com que as pessoas aceitem
descrições gerais, que poderiam servir para quase todo mundo, como se fossem
feitas unicamente para elas, é conhecido como Efeito Forer (Efeito Forer -
http://brazil.skepdic.com/forer.html), e leva o nome do pesquisador que, em
1948, portanto há mais de meio século, fez um estudo muito parecido com o da
UnB. [N.E.: Veja também Médium
por um dia]
Forer também apresentou a um grupo de estudantes um formulário com
características de suas personalidades, e pediu a eles que dessem notas de 1
a 5 para o acerto. A diferença é que, em vez de entregar aos participantes
do teste inventários de personalidade reais, deu a todos eles o mesmíssimo
texto, tirado de uma coluna de astrologia. O resultado foi uma média de
notas elevadíssima, 4,26. Exatamente por ser conhecido há mais de 50 anos,
esse efeito precisa ser controlado em qualquer teste da astrologia que se
pretenda científico, e isso efetivamente é levado em conta em estudos
publicados na literatura.
Opinião crítica
James Randi, o mágico americano conhecido por oferecer um prêmio de 1 milhão
de dólares a qualquer um que consiga comprovar fenômenos paranormais, relata
que, na juventude, foi responsável pela coluna de astrologia de um jornal
canadense. Escrevia a coluna com o pseudônimo de Zo-Ran, simplesmente
recortando os horóscopos de revistas antigas, colocando os papéis dentro de
um chapéu e sorteando o que iria colocar sob cada signo. A despeito desse
método nada astrológico, muito menos científico, de produzir horóscopos, não
faltaram comentários elogiosos de leitores. O mesmo Randi, num programa de
rádio, certa vez fez a leitura de uma descrição das características de um
ouvinte, que supostamente teriam sido obtidas através da astrologia. O
ouvinte prontamente as identificou como acertadas. Randi disse então ter
cometido um engano, e que teria lido informações que na verdade eram de
outra pessoa, e então leu outra que seria a descrição correta. O ouvinte
classificou a esta última como ainda mais correta que a primeira. Ambas, no
entanto, eram falsas.
Obter "acertos" da forma que a astrologia faz é, obviamente, bastante fácil.
Resumindo, já se sabe, há muito tempo, que a base da astrologia é dizer
coisas como "você provavelmente come pão". Nota 5!
Por tudo isso, causa uma enorme estranheza o fato de que nem os
pesquisadores da UnB, nem a equipe do Globo Repórter, tenham sequer feito
qualquer menção a essa possível falha metodológica. Nas últimas semanas, em
correspondência com participantes de grupos de discussão, o pesquisador
Paulo Celso Gomes, reconheceu a necessidade de se repetir o experimento
controlando o Efeito Forer. Portanto, é de se estranhar que ele, mesmo tendo
conhecimento da falta desse importante controle, tenha permitido que a
reportagem levasse as conclusões do estudo ao ar, num programa televisivo de
alcance nacional, sem qualquer comentário a respeito. Mais estranho ainda
que a equipe do programa não pareça ter sequer procurado ouvir qualquer
opinião crítica sobre o assunto. Não é a primeira vez que isso acontece.
Talvez fosse melhor que fizessem somente as habituais reportagens mostrando
bichos da floresta. O risco de ajudarem a divulgar crenças pseudocientíficas
é menor.
(*) Editor do Dicionário do Cético (http://www.cetico.cjb.net)
Artigo publicado originalmente em
30/06/04 no Observatório da
Imprensa. Nota
de Copyright.
|