O Estilo
Características e
Personagens
Luís da Silva
Um inferno interior
Isolamento e neurose
Conotação
político-social-ideológica
Clima de Pesadelo
RESUMO II
Final da Página
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A obra de Graciliano Ramos pode ser dividida em três categorias:
Romances narrados em primeira pessoa (Caetés, São Bernardo e Angústia), nos quais se evidencia a pesquisa progressiva da alma humana, ao lado do retrato e da análise social.
Romance narrado em terceira pessoa (Vidas secas), no qual se enfocam os modos de ser e as condições de existência, segundo uma visão distanciada da realidade.
Autobiografias (Infância e Memórias do cárcere), em que o autor se coloca como problema e como caso humano; nelas transparece uma irresistível necessidade de depor.
Graciliano Ramos é autor de enredos que envolvem a seca, o latifúndio, o drama dos retirantes, a caatinga, a cidade. Seus personagens são seres oprimidos, moldados pelo meio - Luís da Silva, pela cidade; Paulo Honório e Fabiano, pelo sertão. E, dentro das estruturas vigentes, não há nada a fazer a não ser aceitar a força do "inevitável".
A única saída seria mudar as estruturas e o sistema que geram Paulo Honório e sua ambição, o burguês Julião Tavares e os prepotentes soldados amarelos, estes últimos símbolo da ditadura Vargas.
Do ponto de vista formal, Graciliano Ramos talvez seja o escritor brasileiro de linguagem mais sintética. Em seus textos enxutos, a concisão atinge seu clímax: não há uma palavra a mais ou a menos. Trabalha a narração com a mesma mestria, tanto em primeira como em terceira pessoa.
- Pessimismo, negativismo.
- Análise psicológica e social
- Estilo despojado, seco.
- Influência da realidade social sobre o caráter das personagens
- Personagens: poucos, calados, problemáticos, ensimesmados.
- Ambiente urbano
- Narração em primeira pessoa
- O protagonista recorda sua história como num monólogo interior, mencionando apenas os acontecimentos em que se envolveu ou que presenciou
- A ira por seus brios feridos e a vingança são os móveis de suas ações
- A vingança tem raízes em seu passado, na fazendo do avô (misticismo e cangaço)
- A revolta contra o sedutor tem, no fundo, contornos políticos
- Como em uma sessão de psicanálise, o narrador problemático, neurotizado, se entrega a uma associação de tempo, pessoas e lugares
- Tal é a confusão de planos que o romance principia pelo fim, mas de um modo que faz supor o contrário.
ANGÚSTIA
Perfil de Luís da Silva
Nos capítulos iniciais delineia-se o perfil do protagonista e vagamente vão surgindo os motivos imediatos da depressão mental: suas idiossincrasias, obsessões, antagonismos. Depois, graças ao largo uso do monólogo interior, estrutura-se a história, marcada pelos estigmas da miséria física e moral.
Fragmentariamente o narrador evoca suas origens com muitas reminiscências da infância amargurada sem carinhos, da adolescência cheia de privações econômicas, ao fracasso de suas tentativas de vida no Rio de Janeiro e, finalmente, à fixação em Maceió, sofrendo toda sorte de humilhações, pois os restos de ideal e dignidade foram esmagados pelas necessidades de subsistência.
O conhecimento de Marina, o conseqüente noivado que absorve as parcas economias, a decepção final, marcam o clímax de angústias que o leva ao desfecho trágico.
O relato decorre numa atmosfera de opressão criada com requintes de minúcias, capaz de envolver o próprio leitor no torvelinho caótico que é o mundo interior do protagonista. A precisão da técnica narrativa, com um jogo bem explorado de frases curtas, incisivas, e dos planos temporais, contribui para dar a máxima densidade ao drama humano de Luís da Silva e se constitui num dos pontos altos do romance.
Encurralado, sobrevive alimentado por uma neurose que tem caminho certo: o crime. Quando imagina Julião Tavares numa fornalha, "derretendo as banhas", não está sonhando. É um desejo que ainda quer ver realizado.
Isolado como pessoa, obcecado pelo ciúme, Luís da Silva talvez pudesse respirar como ser social, como um intelectual que possui manuscritos guardados, periodicamente revistos, severamente julgados.
Mas não. A prisão é a mesma, se não pior. Não existe possibilidade de identificação do seu trabalho com o mundo que o esmaga, e das aspirações com a realidade vigente. Ele não consegue se colocar em setor algum da sociedade: não há lugar, tudo repleto, impossível entrar. Também para quê, se não há saída?
Conotação Político-Social-Ideológica
O pano de fundo é a sociedade burguesa, onde triunfam os espertos e os medíocres, e por isso cheia de desigualdades humanas, imoralidades, injustiças, que Luís da Silva considera responsável pela falta de maiores perspectivas na sua existência apagada.
Na ânsia de libertar-se das barreiras asfixiantes, ele é dominado pela idéia fixa da vingança e mata o rival, o inimigo tangível, símbolo de tudo que ele odeia.
Em Angústia, Luís da Silva, personagem central, funcionário público e escritor frustrado, descobre que é traído pela noiva com Julião Tavares, "um sujeito gordo, vermelho, suado, bem falante, de olhos abotoados". Desesperado, vive num clima de pesadelo, impossibilitado de conviver com ruídos que lhe são familiares, provocados por animais (ratos, galos, gatos), objetos (relógios, armadores de rede), pessoas tossindo.
O ciúme de Luís da Silva cresce com a evolução de seu pensamento: a certeza de que foi deixado de lado, a ausência de perspectivas, a impossibilidade de qualquer saída para qualquer lugar.
"Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.
Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e , aproximando-se de mim, vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.(...)
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram. "
O narrador nos anuncia que pôs-se em pé novamente há apenas trinta dias.
Esteve doente? Está agitado, a narração, nota-se, mistura fatos e ele diz que a mãos cicatrizaram. Mas são mãos de um velho, "fracas e inúteis".
Coisas que antes lhe dava prazer, como parar diante da vitrina de uma livraria, o desgostam. O que de tão dramático aconteceu que o impede, inclusive, de trabalhar com sossego, agora?
"Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida."
Aí, neste parágrafo, está o motivo pelo qual Luís da Silva adoeceu: Julião Tavares. Mas vai demorar muito tempo até que ele nos confesse o motivo real que o levou ao crime.
Aparecerá em seguida o pivô desses acontecimentos: Marina. "Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando as letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira , amar."Os ratos também povoam estas lembranças: brigam dentro do armário da cozinha, ou aparecem na definição que o narrador dá de si mesmo: "colo-me à parede como um rato assustado."
Ficamos ainda sabendo que está com o aluguel atrasado e que o Dr. Gouveia envia-lhe bilhetes de cobrança; Luís deve ainda a luz, as prestações de Moisés e uma promissória de quinhentos mil réis, que já foi reformada. E a confissão terrível:
"Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandades e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, Dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso."
***
O narrador lamenta-se. Diz que se pudesse, voltaria a viajar. Considera que a vida que leva "agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu." Observa que gostaria de afastar Marina do seu pensamento e pensa sobre seu próprio cadáver, magro e com os dentes arreganhados. Repete que não é um rato, que não quer ser um rato e mistura ao tempo presente lembranças remotas, da época da infância:
"Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo, os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno, sonhando com a vitória do Partido que Padre Inácio chefiava. "
Há quinze anos, era tudo diferente: dividia o quarto que morava com Dagoberto, que era estudante e repórter, havia um calor infernal e um cheiro de gás invadia o ar.
Como se vê, as idéias surgem fragmentadas, soltas, que se presentificam com observações pessimistas:
"O carro passa pelos fundos do Tesouro. É ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado."
Misturam-se lembranças do pai, Camilo,do avô Trajano que aos poucos confunde o eixo do tempo, a avó Germana. Por fim, lembra-se do Mestre Antônio Justino : "Aprendi leitura, catecismo, a conjugação dos verbos. (...) Eu ia jogar pião, sozinho, ou empinar papagaio. Sempre brinquei só."
***topo
Chove; uma chuva renitente e fina encharca todas as coisas. O narrador indaga-se sobre o porquê de ter remexido defuntos antigos, "Penso em mestre Domingos, no velho Trajano, em meu pai. Não sei por que mexi com eles, tão remotos, tão diluídos em tantos anos de separação. Não têm nenhuma relação com as pessoas e as coisas que me cercam. (...) Os defuntos antigos me importunam. Deve ser por causa da chuva."
Marina é pensamento recorrente. Ele a imagina ali, sob a chuva, "Maria despida ,arrepiada, coberta de carocinhos - bole comigo durante alguns minutos."
E de novo a infância invade suas recordações, lembrando-se de quando chovia e ele , cavalgando um cavalo de pau, disparava debaixo d'água: "Eu tirava as alpercatas, arrancava do corpo a camisinha de algodão encardida, agarrava um cabo de vassoura, fazia dele um cavalo e saía pinoteando, pererê, pererê, pererê, até o fim do pátio, onde havia três pés de juá."
Lamenta a qualidade de um artigo encomendado pelo chefe, o Pimentel. E, ao se lembrar do poço da Pedra onde o pai o levava para aprender a nadar, imagina que poderia, tal como o pai fazia com ele, obrigando-o a nadar, fazer o mesmo com Marina: "Se eu pudesse fazer o mesmo com Marina, afoga-la devagar, trazendo-a para a superfície quando ela estivesse perdendo o fôlego, prolongar o suplício um dia inteiro..." E ao olhar o quintal vizinho, lembra de Marina. Os desejos gritam fortes. Observe bem isso: são os desejos e não os sentimentos que gritam forte: "Lá estão novamente gritando os meus desejos.(...) Um arrepio atravessa-me a espinha, inteiriça-me os dedos sobre o papel. Naturalmente são os desejos que fazem isto, mas atribuo a coisa à chuva que bate no telhado e à recordação daquela peneira ranzinza que descia do céu dias e dias."
Os distúrbios do inconsciente aparecem; confunde o tempo, pensa em Marina e na infância, ouve barulhos que na realidade estão perdidos na infância, para sempre.
***
A lembrança conduz o narrador a imagens da morte do pai. Ele estava na escola, tinha 14 anos e, ao voltar para casa, "ele estava estirado num marquesão, coberto por um lençol branco que lhe escondia o corpo todo até a cabeça. Só ficavam expostos os pés, que iam além de uma das pontas do marquesão, pequeno para o defunto enorme."
Sentindo-se infeliz e sozinho, Luís foi sentar-se no fundo do quintal. "Eu estava ali como um bichinho abandonado(...) Que ia ser de mim, solto no mundo?(...) Agora eu tinha 14 anos, conhecia a mão direita e os verbos."
Estava sozinho e não conseguia chorar. Mas Rosenda, ao levar para ele uma xícara de café, acordou-o e ele, então, compreendeu a extensão de sua solidão: começou a soluçar.
Após o enterro do pai, os credores levaram quase tudo; sumiram os amigos, entre eles o padre Inácio. Com medo da alma do pai, passou noites e dias enrolado num cobertor, a um canto da sala.
Aqui, outra vez, é possível observar a perturbação emocional de Luís da Silva:
"Que estaria fazendo a alma de Camilo Pereira da Silva? Provavelmente rondava a casa, entrava pelas portas fechadas, olhava as prateleiras vazias. As outras almas mais antigas, Trajano, seu Evaristo, Sinhá Germana, não me atemorizavam; mas aquela, estava tão próxima, ainda agarrada ao corpo, dava-me tremuras. O suror corria-me pelo rosto. Como estariam os pés de Camilo Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, verdes, com pedaços ficando pretos."
***
Seu Ivo vai visitar Luís. É um pobre homem, sempre faminto e sempre bêbado. Sempre que chega, faz agrados ao gato e ao papagaio. Luís evita olhar para ele e somente ao final da narrativa é que você entenderia por que: é seu Ivo quem dá ao narrador a corda com o que ele enforca Julião Tavares.
"Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou.", imagina o narrador em meio aos seus devaneios da infância.
Depois, ouve o relógio bater oito e meia e o confunde com o sino da igreja, sai correndo para o trabalho, com a impressão de que lhe falta algo no vestuário, tem a impressão de que os transeuntes olham-no espantados, sente que não consegue se mexer, imóvel como Camilo Pereira da Silva, o pai morto. Cogita sobre o purgatório em meio às lembranças do dia da morte do pai. "Começo a andar depressa, receando encontrar o ponto encerrado. Tolice. Provavelmente tudo aquilo se passou num segundo. Tenho a impressão de que uma objetiva me pegou, num instantâneo. Ficarei assim, com a perna erguida, a pasta debaixo do braço, o chapéu embicado.
Luís da Silva, a caminho da repartição, lesando, pensando em defuntos."
***
O tom que a narrativa assume assemelha-se ao de um diário: "Este mês fiz um sacrifício: dei uns dinheiros ao Moisés das prestações. Dr. Gouveia há de ter paciência: espera mais uns dias. Deixarei de andar pela rua do Sol para não encontrá-lo. O que não posso é esconder-me de Moisés."
A impressão que dá aos leitores é que evita falar sobre o assunto central do livro, devaneia, esconde-se. Conta sobre Moisés, que evitava e que o evitava, mas que , ao encontra-lo e receber dele uns tostões, dá a conta do amigo por completa e paga. O constrangimento entre ambos desaparece e ambos encontram o Chefe da Polícia, o que causa medo em Luís.
Moisés põe-se a andar com ele e, na praça Montepio, faz discursos contra a violência e o governo. As lembranças do tempo de menino enchem de novo sua cabeça: germana, Trajano Pereira de Aquino, o pai, Amaro, Sinhá Terta, José Baía.
Tudo se confunde e rompe a linha do tempo com violência.
***topo
Aqui, Luís da Silva nos informa que sua criada Vitória tem cinqüenta anos, é meio surda e possui um papagaio inteiramente mudo a quem pretende ensinar palavras, versos. Conta também que, apesar de nunca ter navegado, sabe - porque l6e os jornais - todas as entradas e saídas do porto, repete as notícias importantes, como a chegada do arcebispo do Rio de Janeiro.
Não descansa sequer à noite, quando sai para enterrar moedas na horta, junto aos pés de alface:
"A voz é áspera e desdentada. E, acompanhando a cadência, tremem as pelancas do pescoço engelhado como um pescoço de peru, tremem os pêlos do buço e as duas verrugas escuras. É terrivelmente feia."
***topo
"Em janeiro do ano passado estava eu uma tarde no quintal, deitado numa espreguiçadeira, fumando e lendo u romance. O romance não prestava, mas os meus negócios iam equilibrados, os chefes me toleravam, as dívidas eram pequenas ." Luís lia à sombra da mangueira, Moisés e Pimentel apareciam às vezes para conversar, ele escrevia poemas ou artigos por dez ou quinze mil-réis. Lia à sombra da mangueira e saltava páginas, de vez em quando acendia um cigarro, suspendia a leitura.
Aqui, pela primeira vez, aparece Marina: "Foi numa dessas suspensões que percebi um vulto mexendo-se no quintal da casa vizinha. Como já disse, existe apenas uma cerca separando os dois quintais. Do lado esquerdo há um muro, e ignoro completamente o que se passa além dele.(...) O vulto que se mexia não era a mulher idosa: era uma sujeitinha vermelhaça, de olhos azuis e cabelos tão amarelos que pareciam oxigenados."
E aqui começa o drama da nossa personagem-narradora. Neste mesmo capítulo, ele se auto-descreve: "Trinta e cinco anos, funcionário público, homens de ocupações marcadas pelo regulamento.(...) Além de tudo, sei que sou feio."
Ao perguntar pela antiga vizinha que cuidava das roseiras ao lado, fica sabendo por Vitória que tinha morrido.
Confessa que passara tempos tenebrosos, impelido para as mulheres que "tinham cheiros excessivos." E acrescenta "Um rato roia-me por dentro."Narra a primeira experi6encia com prostitutas, e vê-se aí que tem uma auto-estima baixa.
***
Aqui, você fica sabendo que o narrador mora na rua do Macena, perto da Usina elétrica e que paga ao doutor Gouveia cento e vinte mil-réis de aluguel. Mas tem as contas em dia e um dinheiro, pequeno, no banco.
"Tornei-me amigo de Marina. Com certeza começamos por olhares,movimentos de cabeça, sorrisos, como sempre acontece." E acrescenta que o que o desgostava nela era a frivolidade e as inclinações imbecis ou safadas.
Marina mostra admiração por D. Mercedes, uma espanhola madura, amigada em segredo com uma personagem oficial. Luís a repreende, mas ela insiste em dizer que D. Mercedes é o máximo. Luís conclui: "(...) Aqui me preocupando com aquela burra! Unhas pintadas, beiços pintados, biblioteca das moças, preguiça, admiração por dona Mercedes - Total= Rua da Lama."
As lembranças de Marina misturam-se aos pensamentos presentes, como este que você acabou de ler. Rua da Lama era a rua em que as prostitutas se vendiam.
***
Foi por esta época que Julião Tavares começou a freqüentar a casa de Luís. Os jornais falavam muito bem dele, mas para o narrador era tudo mentira. "Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor."(...) Família rica, Tavares & Cia, negociantes de secos e molhados, donos de prédios, membros influentes da Associação Comercial, eram uns ratos. Quando passava pela rua do Comércio, via-os por detrás do balcão, dois sujeitos papudos..."
A antipatia por Julião foi se tornando funda, Luís não gostava daquela cara balofa e do jeito gordo. Visitava Luís com frequ6encia e tirou a liberdade dos amigos que lá compareciam."O homem do Instituto atrapalhou-me a vida e separou-me dos amigos."
Aqui, o narrador nos apresenta seu Ivo, um pobre coitado, que viajava por todo lado, "entra nas casas sem se anunciar" e está sempre faminto. Quando Luís pergunta como vai a vida, põe-se a chorar.
***topo
A raiva que tem de Julião vai gradualmente aumentando, mas, incompreensivelmente, ele continua visitando o narrador. Moisés e Pimenta se constrangem, já não mantêm as mesmas conversas de antes. O judeu era loquaz, socialista, bom de conversa sobre revoluções; seu Ivo se metia na cozinha, pedindo um prato de comida para Vitória. Diferente de todos naquela casa, gordo e falador, Julião Tavares era um incômodo: era amável em demasia.
"Comecei a odiar Julião Tavares. Farejava-o, percebia-o de longe, só pelo modo de empurrar a porta e atravessar o corredor.
-Canalha!
E rangia os dentes, arrumava os papéis tremendo de raiva. Tudo nele era postiço, tudo dos outros."
***
D. Adélia, mãe de Marina, pede que Luís arranje um emprego para a filha. Queixa-se de tudo, os preços na hora da morte, que o ordenado do marido era irrisório. Começa a dar a entender a Luís que confia nele, que o vê como um homem respeitável: "- Mas dona Adélia, respondi aflito, a senhora está enganada. Eu sou um infeliz, não tenho onde cair morto. Uma recomendação minha não serve. Mas vou tentar, ouviu?"
Seu Ramalho, pai de Marina, queixa-se da filha, diz que ela nunca quis estudar; "entrou na escola e saiu como entrou.", gasta com sapatos e roupas e acrescentou: "O homem que casar com ela faz negócio ruim."
***
Luís tenta arranjar emprego para Marina e,como sempre, à tarde, deita-se na espreguiçadeira sob a mangueira. Marina aparece: "Para ir ao quintal, sapato de sair e meia de seda esticada no pernão bem feito. Ótimas pernas.As coxas e as nádegas, apertadas na saia estreita, estavam com vontade de rebentar as costuras."
Luís fala com ela sobre o emprego, ela se aproxima e ele a morde nas mãos, enlouquecido de desejo: "(...) abracei-a, beijei-lhe a boca, o colo. Enquanto fazia isto, as minhas mãos percorriam-lhe o corpo. Quando nos separamos, ficamos comendo-nos com os olhos, tremendo. Tudo em redor girava. E Marina estava tão perturbada que se esqueceu de recolher um peito que havia escapado da roupa."
O narrador compara-a à Berta, uma prostituta que um dia ele teve para si.
Depois que Marina se vai, Luís desconfia que começa a se entregar.
***
O narrador faz comentários gerais: que defronte à casa dele veio morar uma família: três moças e um velho e logo começaram a circular uns boatos , dando conta de que as meninas eram amantes do homem que logo passou a ser chamado de Lobisomem.
À noite, quando conversávamos sobre o fato, Julião Tavares toma o incesto como normal, o que irrita enormemente o narrador.
***
Marina e Luís continuavam a se encontra depois da meia-noite sob a mangueira.
"- Marina, a gente deve acabar com isto, minha filha. Vamos para dentro.
- Vou nada!
- Torcia o corpo, defendia a virgindade com unhas e dentes.
- Está direito. Então, é melhor apressar o casório.
- Com que roupa? Disse Marina.
- Que é que falta?
- Tudo. Sou uma noiva pelada, meu filho.
Impacientei-me:
- Ora, ora, ora! Entre nós não há cerimônia. Arranja-se. Eu tenho umas economias, pouco, mas tenho. Também você não precisa de muita coisa. Umas fronhas, umas camisas...
Como vêem, eu tinha boa vontade. O que receava era transformar as nossas relações, miúdas, num acontecimento social importante."
Em meio a essas recordações, o narrador junta adjetivos terríveis: preguiçosa, ingrata, leviana.
Diz, no entanto, que era muito limpa e meiga.
Marina reclama que ainda não foi pedida em casamento.
***
"No outro dia retirei quinhentos mil-réis do banco e fui à casa vizinha."
Pediu a mão de Marina à mãe, entregou os 500 mil-réis para as compras do casamento, "gente pobre não tem luxo." E foi para a repartição, feliz. N rua, encontrou Julião Tavares, desviou-se e foi para a repartição.
O cego dos bilhetes entrou anunciando o número da loteria : 16.384.
"Ou seria outro número. Cem contos de réis, dinheiro bastante para a felicidade de Marina. Se eu possuísse aquilo, construiria um bangalô no alto do Farol, um bangalô com vista para a lagoa. Sentar-me-ia ali, de volta da repartição, à tarde, como Tavares e Cia, Dr. Gouveia e os outros, contaria histórias à minha mulher, olhando os coqueiros, as canoas dos pescadores."
Aqui, revelam-se os sentimentos do narrador. Ao se recordar, dá-se conta de que se tivesse dinheiro, teria tido para si, certamente, Marina, que era interesseira, vulgar e dada a uma imensa preguiça. Uma ratuína, como bem a define o narrador.
***
Alguns dias depois, Marina chamou Luís para ver o que comprara com o dinheiro dado por ele: "Não era quase nada: calças de seda, camisas de seda e outras ninharias."
A contragosto, aprova as compras dela. E aceita as críticas que faz às suas golas puídas aos sapatos cambados.
"Ofereci a Seu Ivo os meus sapatos cambados e reformei os pés. O dinheiro sumia-se, essas alterações chupavam-me as reservas acumuladas com paciência. Eu vivia preocupado, fazendo cálculos na rua. E ainda não havia comprado uma lembrança para Marina."
Para agrada-la, liquida a conta no banco e compra-lhe um relógio-pulseira e um anel. Sobraram-lhe míseros vinte mil-réis. Mas confessa que ia cheio de satisfação maluca, pensando em contenta-la. Sem se importar se no próximo mês precisasse pedir cinqüenta mil a Moisés.
Mas uma decepção terrível o aguardava, leia:
"Ao chegar à rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um enorme desejo de apertar-lhe as goelas.O homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.
- Tem negócio comigo?
A cólera engasgava-me.Julião Tavares começou a falar e pouco a pouco serenou, mas não compreendi o que ele disse. Canalha. Meses atrás se entalara num processo de defloramento, de que tinha se livrado graças ao dinheiro do pai. Com o olho guloso em cima das mulheres bonitas, estava sempre precisando uma surra. E um cachorro daqueles fazia versos, era poeta."
Luís se irrita com a desfaçatez de Julião. E as lembranças da infância, outra vez, se juntam às do presente: ele se lembra do dia em que o avô, Trajano, estava dormindo no banco do alpendre e uma cascavel se enrolou ao pescoço dele. Todos gritavam.
Por fim, cansado de escutar a voz melosa e estúpida do rival, solta um sonoro 'puta que o pariu'. Julião agarrou o chapéu e saiu.
Luís toma aguardente, janta e sai para a rua. Não cumprimenta Marina, que estranha seu comportamento. No centro, encontra-se com uma prostituta pobremente magra e tuberculosa. Em vez de fazerem sexo, conversam no humilde e pobre quarto para onde fora levado por ela.
***
Marina convenceu Luís de que ele não tinha razão: "O que eu tinha era falta de confiança nele. Chorou, e eu fiquei meio lá, meio cá, propenso a acreditar que me havia enganado."
Disse que não podia impedir que Julião Tavares olhasse para ela. E Luís entrega-lhe, convencido, a lembrança que comprara para ela. Fala em marcar a data do casamento, ela objeta, dizendo que ainda borda umas almofadas. Marina queria isso: luxos que Luís não poderia dar. Fazia exigências. Ele se encarrega das compras e declara estar na pindaíba.
À noite, Marina ficou a visita toda de Luís de olhos fechados estendida na cadeira, sem o anel ou relógio, parecendo que sonhava. O narrador, do tempo presente, nos observa:
"- Escolher marido por dinheiro. Que miséria! Não há pior espécie de prostituição."
***
"Por que foi que aquela criatura não procedeu com franqueza? Devia ter-me chamado e dito:"Luís, vamos acabar com isto. Pensei que gostava de você, enganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?"Eu teria respondido: "Não fico não, Marina. Você de se casar contravontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz." Era o que eu teria dito. Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acontecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho: -"Sim senhor, gostei de uma mulher de caráter, mulher de cabelo na venta."Não seria esta miséria, esta recordação de coisas mesquinhas."
Aos poucos, deixaram de falar sobre casamento. E pelo menos um dia da semana, quando Luís deixava o serviço fora de hora, ia apanhar os dois, Julião e Marina, aos namoricos. D. Adélia defendia a filha, justificando que era a mocidade.
À noite, sozinho na casa insuportavelmente cheia de ratos, Luís ouvia a tosse de seu Ramalho e os rangidos da rede onde dormia Marina.
"Assaltava-me o desejo de ver Julião Tavares sujo de azeite e carvão, recebendo na cara as faíscas da fornalha. Por que não? Derretendo as banhas. Inútil, preguiçoso, discursador. Canalha."
***
Distanciaram-se, Marina e Luís, aos poucos: "Um mês depois éramos inimigos.(...) Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares.(...) O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas, íntimo da família, unha com carne. Empurrava a porta, entrava como se aquilo fosse dele. Seu ramalho nem se voltava: debruçado à janela, aperreado, fumando cachimbo, mordia os beiços, encolhia os ombros. Vinha conversar comigo, desabafava:
- Não se case, seu Luís. É o conselho que lhe dou."
Julião ia se fazendo cada vez mais íntimo da casa, das duas mulheres: quando ia jantar, mandava, durante o dia, latas e garrafas e embrulhos. O narrador registra que seu ramalho não tomava parte "dessas orgias".
Luís ficava ouvindo as vozes e zanzava de um lugar para outro, inquieto feito um bicho.
***
Aos domingos, Maria e Julião iam ao cinema de braços dados, bancando marido e mulher. Ela ia bem vestida: seda, peles: "o pessoal da rua povoava janelas." As filhas do Lobisomem ficavam à janela, observando tudo. E Julião exibia a mulher que conquistara:
"Julião Tavares passava como um pavão. E o pessoal se calava, arregalava os olhos para Marina, que não ligava importância a ninguém, ia fofa, com o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, os beiços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinça.(...) Sim senhor. Que bicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homens."
O narrador pensa na datilógrafa que ele conhecia. Invade-o uma ternura pela honestidade dela, acha que se escolhesse uma mulher assim, tão simples, recatada e honesta, seria feliz.
Seu Ramalho sentava-se na calçada e conversava longamente com Luís. Depois entrava e zangava-se com a mulher: por que estaria a filha ausente?
***
Muitas vezes, Luís passava perto da porta de Marina e desejava reconciliar-se com ela.
"As mulheres não são de ninguém, não têm dono."
A vizinha D. Rosália e o marido, que era caixeiro-viajante, fazem sexo todas as noites. Todos escutam o barulho, os beijos, o rebuliço e o gemer da rede.
Luís pensa que Marina poderia voltar para ele. Talvez com a intenção de humilhar Julião Tavares.
***
Depois de procurar por mais de um mês um tipo de aproximação com Marina, Luís desiste. Confessa que há, nas suas recordações, lacunas e hiatos: "Tudo aquilo era uma confusão, em que avultava a idéia de reaver Marina. (...) Procurei por todo sos meios uma nova aproximação. O despeito, a raiva, que senti naqueles dias compridos, uns restos de amor próprio, tudo sumiu."
***
À noite Luís e seu Ramalho sentavam-se na calçada e falavam sobre a vida, sobre Marina, sobre como as mulheres são volúveis. Seu Ramalho continuava a insistir para que Luís jamais se casasse. Contavam casos, seu Ramalho repetia sempre um, a de um menino que tinha "arrancado os tampos" da filha do senhor de engenho.
Luís escreve e mistura lembranças, passadas e futuras.
***topo
Chega à cidade a companhia lírica. Marina e Julião Tavares e Marina vão à ópera todos os dias, ela vestida de seda e pele, maquiada, bem cuidada. O narrador se sente muito infeliz, impotente:
"No dia da estréia notei rebuliço em casa de seu Ramalho. Pela manhã chegaram caixas e pacotes; mais tarde bateu palmas uma criatura de preto, certamente a modista; o menino da sapataria apareceu muitas vezes; depois seu Chico, o carteiro, que sabe cortar cabelos de senhoras. Marina largava os sapatos e corria pelo coredor, aos gritos com a mãe, que se mexia com dificuldade. À noite, um carro buzinou à porta, e Marina saiu de casa, bem vestida como as senhoras do aterro quando vão às festas as Associação Comercial. Atravessou a calçada sem se virar, e entrou na limousine, onde brilhava a camisa de Julião Tavares, sob o foco elétrico. Os pneumáticos rodaram silenciosos em direção à Praça Deodoro, e na rua ficou um cheiro esquisito de gasolina, pó-de-arroz e perfumes."
Desesperado e sem dinheiro para ir ver tal acontecimento, Luís perambula pelas ruas, vai aos lugares mais ordinários, bebe aguardente. Vêm de novo as lembranças misturadas: infância e vida adulta que se aproximam: "Sempre brinquei só. Por isso cresci assim, besta e mofino."
Julga-se um cabra, um roceiro, um infeliz que gosta de ler romances, mas nem culto é.
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Quando , no último dia da apresentação da companhia lírica, o carro de Julião chegou, Luís se sentiu o mais infeliz dos homens. E depois de experimentar pensamentos amargos, foi à caça das moedas que Vitória depositava na horta, rente à cerca. Cavando com as mão, no escuro, sentia-se como um ladrão , mas acreditava que, indo ao tetaro, Marina voltaria para ele:
"Tantos tormentos por causa de uma fêmea! Dormir, dormir. Senti as pálpebras pesadas; julgo que, fascinado pelos olhos do gato, deixei a cabeça inclinar-se num cochilo. Se saísse cara, acabaria depressa com aquilo e iria ao teatro. Tinha quase a certeza de que, indo ao teatro, tudo se arranjaria: Marina voltaria para mim, Julião Tavares se achataria, se desagregaria, como um pouco de azeite em água corrente."
Depois de apanhar as moedas, foi ao teatro, com as unhas ainda sujas.
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Quando recebeu o salário, pagou Vitória em dobro, isto é, devolveu os vinte-mil-réis furtados dela em dobro. Teve medo de que ela, ao contar, achasse mais algumas moedas e identificasse o que houvera acontecido. Mas Vitória tinha percebido a trama. E tinha, por isso mesmo, envelhecido e perdido todo o sossego.
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A vingança permeia os pensamentos de Luís da Silva, tem sempre a impressão de que está cercado de inimigos. Observe que este tempo a que ele se refere é o tempo presente, e ele já houvera matado seu oponente Julião.
Ao perambular pela rua, subitamente, dá de encontro com uma mulher grávida acompanhada por uma criança.: feia, disforme, horrível. Está clara a analogia com a gravidez de Marina, de que ele soube, pelo que revirou a alma, planejando, então, a real vingança. "Eu fervia de raiva. Se tivesse encontrado Julião Tavares naquele dia, um de nós teria ficado estiado na rua."
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Luís estava notando, na casa ao lado, um silêncio diferente. Quando estava no banheiro, que era contíguo , separado pela mesma parede, ao de marina, podia, silencioso e sentado no chão, ouvi-la espalhafatosamente escovar os dentes e se lavar. Agora não, ela vinha devagar, quase que humilhada. Tinha perdido a alegria e o estabanamento. Isso cortava o coração de Luís que, intuitivamente, começou a desconfiar que algo andava errado com Marina."Estava agora ali, enojada, cuspindo, apalpando a barriga e os peitos entumescidos. E o pranto subia e descia, era às vezes um lamento de criança fatigada, outras vezes os soluços rebentavam, numa rajada de gritos histéricos e bestiais."
E Marina gritava culpando a mãe por tudo.
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"Era evidente que Julião Tavares devia morrer."
Esse é o pensamento que passa, agora, a dominar a mente de Luís. Na verdade, é um pretexto, porque antes de Julião namorar Marina , ele já odiava o amigo. Outra vez misturam-se lembranças da infância com as do presente. E outra vez o narrador conta a história da cascavel enrolada no pescoço do avô.
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Seu Ivo apareceu faminto, meio nu e meio bêbado.
E enquanto Vitória esquentava o jantar para ele, estendeu um presente para Luís da silva: uma corda. E pôs em cima da mesa o que trouxera.
Luís, vendo ali a extensão do que já vinha planejando, fica literalmente aterrorizado:
"- Não quero. Tire isso depressa.
Evitava dizer o nome da coisa que ali estava em cima da mesa, junto ao prato de seu Ivo. Parecia-me que, se pronunciasse o nome, uma parte das minhas preocupações se revelaria. Enquanto estivera dobrada, não tinha semelhança com o objeto que me perseguia. Era um rolo pequeno, inofensivo. Logo que se desenroscara, dera-me um choque violento, fizera-me recuar tremendo. Antes de refletir, tive a impressão de que aquilo me ia amarar ou morder."
A corda tomou corpo, confundiu sentimentos e, por fim, colocou-a no bolso: "O coração batia-me desesperaamente."
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Seguia Marina por todos os cantos, imaginando que ela se encontraria com ele. Seguia-a pela rua, por tempos.
E seguia também Julião Tavares, imaginando o que poderia acontecer se o matasse. Imaginava-se preso, atrás das grades nojentas. O narrador nos conta que tem por hábito, atualmente, lavar incessantemente as mãos.
Considera que teve medo de Julião Tavares, do público e da Polícia.
***
Na repartição, obtinha algum sossego.
Em casa, pedia para Vitória comprar cigarros. Emagrecia demais
Saía à rua, falava com Moisés. E planejava a morte de Julião, em seu nome e em nome de Marina. Em nome de todos os ódios que ele tinha do mundo.
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Seguindo um dia Marina, viu-a afastar-se e ir para a periferia. Depois, entrou numa casa . Foi a um bar e perguntou quem era a dona da casa: Albertina, uma mulher que fazia abortos. Bebeu cachaça enquanto esperava. E quando Marina saiu, mortalmente pálida, muito tempo depois, seguiu-a e xingou-a pelo caminho: Puta, puta, puta!!!
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Investigando Julião, seguindo-o, Luís descobriu que ele tinha feito nova conquista. Pensou, de repente, na secretária de olhos tristes.
"Apalpava a corda. Mexia-me lentamente, pensava nos cabras que meu avô livrava peitando os jurados ou ameaçando a cadeia da vila. "
Por acaso, descobriu quem era a nova vítima: uma pobre moça sardenta e engraçada que trabalhava numa loja de miudezas. Uma outra Marina, decerto. Logo, estaria ela também com a barriga crescendo.
***
Descobriu também que Julião Tavares visitava a moça e voltava de madrugada, a gola erguida para ninguém reconhecê-lo.
"Agora Julião Tavares marchava no escuro, depois de ter abraçado a mocinha sardenta. Is deitar-se, arrumar talvez uns versos indecentes a respeito de segredos de alcova. Àquela hora não tinha com quem desabafar. O café estava fechado, na praça deserta as luzes cochilavam. (...) Julião Tavares julgava-se superior aos outros homens porque tinha deflorado várias meninas pobres. Pelos modos, imaginava-se dono delas."
Indignava-se Luís, e a cada dia mais crescia nele o desejo de vingança.
***
E segue Julião em mais uma visita à moça sardenta. Espera que ele saia. E o embosca. Leva a corda no bolso.
"Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mão apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado."
As lembranças aqui são terríveis, em fluxo contínuo, devastadoras.
Depois que mata Julião, em meio às árvores, simula que este enforcou-se, coloca o cadáver de pé, dependurando-º Lacera as mão, estraçalha as palmas, rasga as calças e quase perde o chapéu.
Por fim, na madrugada, chega em casa: é um homem falido.
Imagina que, se descoberto, pegará 30 anos de cadeia.
***
Com as mãos estraçalhadas, a cabeça explodindo, cansado e sujo, pede à Vitória que avise a repartição que está doente.
Febre, se sente tão doente que nem tem fome.
***
Marina está distante, e voltamos ao começo do romance. O narrador está se refazendo aos poucos, depois de longa doença de quase dois meses. Marina é uma ratuína como as outras, Luís está derrotado. As mãos já estão quase recompostas nas palmas, mas ainda há grande dificuldade em voltar a escrever. As idéias fogem e a cara sórdida de Julião Tavares lhe aparece sempre pela frente. Você lerá agora o trecho final. Nele, as lembranças se misturam, passado e presente, inquietações fundas:
"- Minha Santa Margarida..."O dono da bodega, triste, fincava os cotovelos no balcão engordurado. As crianças faziam voltas em redor da barca de terra e varas. A rapariga pintada de vermelho espalhava um cheiro esquisito. O engraxate escutava histórias de capoeiras. O homem acaboclado cruzava os braços, mostrando bíceps enormes. O mendigo estirava a perna entrapada e ensangüentada. As moscas dormiam, e o mendigo, com a multa esquecida, bebia cachaça e ria. Passos na calçada. Quem ia entrar? Quem tinha negócio comigo àquela hora? Necessário Vitória fechar as portas e despedir o hóspede incômodo que não se arredava da sala. Mas Vitória contava moedas, na parede, resmungava a entrada e a saída dos navios. A placa azul de D. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche. Todo aquele pessoal entendia-se perfeitamente. O homem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulher que trazia uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro Vaqueiro, as figuras de um reisado, um vagabundo que dormia nos bancos dos jardins, outro vagabundo que dormia debaixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor José Bahia acenava-me de longe, sorrindo, mostrando as gengivas banguelas e agitando os cabelos brancos. - José Bahia, meu irmão, também estás aí? "José Bahia, trôpego, rompia a marcha. Um, dois, um, dois... A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Bahia e vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, Sinhá Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha deitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar-se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades. - "José Baía, meu irmão, há quanto tempo! "As crianças corriam em torno da barca. "- José Bahia, meu irmão, estamos tão velhos!" Acomodava-se todos. 16.384. Um colchão de paina. Milhares de figurinhas insignificantes. Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras. 16.384. Íamos descansar. Um colchão de paina."
topo FINAL DA PÁGINAEsther PS. Rosado, Autora do RESUMO II.
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