GRACILIANO RAMOS
"O Homem e sua Obra"
por Jorge Amado
Um dos fenômenos mais curiosos do avanço cultural do Brasil, revelador de nosso rápido amadurecimento, é o fato de Graciliano Ramos, escritor considerado difícil por volta de 1940, situar-se hoje entre os romancistas de maior popularidade do País. Suas edições sucedem-se, alguns dos seus livros colocam-se entre os best sellers permanentes nas livrarias do norte ao sul, das grandes e das pequenas cidades. Não há dúvida: apesar das marchas e contramarchas, dos recuos e das tentativas do entreguismo de fazer o Brasil retornar a uma economia agropastoril de economia exportadora de matérias-primas e importadora de luxo e miséria, apesar do golpe de estado reacionário de 1964, apesar de tudo isso o Brasil cresce, faz-se poderoso, econômica e culturalmente.
Graciliano Ramos, romancista de Alagoas, duro sertanejo de indômita vontade, têmpera de aço, foi um dos escritores que mais concorreram para esse avanço brasileiro. Foi um dos construtores de sua época, criador de uma grande literatura e da consciência nacional.
Pelos meados de 1933, tomei no Rio um pequeno navio da Companhia Nacional de Navegação Costeira, um daqueles “Itas” que viraram folclore e música popular, e rumei para Maceió, onde habitava Graciliano Ramos. Era nos tempos heróicos do “movimento de 30” - movimento literário que sucedia ao Modernismo somando um interesse real pelo homem brasileiro e seus problemas às conquistas formais da Semana de Arte Moderna. O Modernismo processara-se na cúpula de salões literários, em São Paulo e no Rio, e de revistas de pequena circulação. Só muitos anos depois o público viria tomar conhecimento dos grandes nomes de 1922 e um Mário de Andrade, por exemplo, só alcançaria um vasto círculo de leitores nos dias de agora, de um Brasil em luta contra o subdesenvolvimento, industrializando-se, rasgando estradas para a Amazônia, construindo Brasília.
O “movimento de 30” processou-se, por assim dizer, no meio da rua, entre o povo. Essa a sua diferença essencial para o Modernismo.
Surgiram nomes e livros e logo se tornavam populares, começou a existir uma coisa antes desconhecida no Brasil: o público ledor. Nomes e livros: José Américo de Almeida e Bagaceira ainda em 1928, o primeiro, sem o qual não existiríamos; Rachel de Queirós e O Quinze; José Lins do Rego e Menino de Engenho; Amando Fontes e Os Corumbás, Érico Veríssimo e Clarissa; José Geraldo Vieira e A Mulher que Fugia de Sodoma; Lúcio Cardoso e Maleita; Marques Rebelo e Oscarina.
Apesar de alguns desses então jovens escritores estreantes eram do sul do país, falava-se sobretudo em romance do Nordeste, talvez porque mais marcada nos nordestinos certas preocupações relativas aos problemas sociais das cidades e do campo, do homem brasileiro.
Naquele ano de 1933 começou-se a citar o nome de Graciliano Ramos, a propósito de uns relatórios que, como prefeito de uma pequena cidade do interior, Palmeira dos Índios, enviara ao governo do Estado. Os originais de um romance seu haviam chegado à Editora Schmidt, espécie de Meca do “movimento de 30”, eu lera esses originais e encheram-me do mais completo entusiasmo.
Naquela época Maceió era importante centro cultural: lá estavam os paraibanos José Lins do Rego e Santa Rosa, a cearense Rachel de Queirós, e entre os alagoanos, Jorge de Lima, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Holanda, Carlos Paurílio, Alberto Passo Guimarães, Aluísio Branco. Aliás, foram Alberto Passos e Santa Rosa, recém chegados ao Rio, os incentivadores de minha viagem Tendo feito uma parada em Aracaju para ver uma namorada – conhecimento de viagem anterior, noutro “Ita” – toquei-me para a capital de Alagoas. Viagem Feliz: fiz amigos que, alguns o são, e dos melhores, até hoje, e outros que foram durante toda a vida, aqueles que a morte já levou. De 1933 a 1953, quando ele morreu, fomos, Graciliano e eu, amigos de todos os dias e em todas as situações. Situações por vezes bem difíceis, duras ou complicadas, pois esses vinte anos incluíram, em seu bojo, uma grande guerra e, no Brasil, pequenas guerras locais.
A publicação de Caetés procedeu de apenas poucos meses a de São Bernardo e logo toda a crítica e o público compreenderam a importância do novo escritor, sentiram o agradecimento de um verdadeiro mestre de nossa ficção, nome a juntar-se a uns poucos, como Machado de Assis e Aluísio de Azevedo. Pode-se dizer que Graciliano Ramos foi considerado um “clássico” do romance e do conto brasileiros quando ainda em vida. Escreveu mais dois romances, além desses primeiros: Angústia e Vidas Secas. Com este último, retomando o tema, que parecia esgotado, das secas, do árido sertão dos retirantes, deu à nossa literatura uma de suas obras-primas, livro de densidade incomum, de raro equilíbrio, de comovedora beleza. Recordo-me do “velho Graça” (Graciliano estreou aos quarenta e poucos anos de idade e nós, seus companheiros de literatura, alguns bem mais moços que ele, sempre o chamamos, carinhosamente, de “velho”) escrevendo esse romance, entre sucessivos cigarros e grandes xícaras de café, Vidas Secas ganhou o mundo, creio ser o romance de Graciliano mais traduzido e publicado no estrangeiro.
Graciliano foi mestre do romance e mestre do conto, como Machado de Assis, e Lima Barreto. Caso bem raro em nossa literatura, onde poucas vezes um escritor consegue se firmar nos dois gêneros. Quase sempre contistas excelentes são romancistas medíocres ou vice-versa. No caso especial de Vidas Secas, o romance – e romance de primeira qualidade – é formado por um conjunto de narrativas que, tomadas isoladamente, são contos da melhor qualidade.
Graciliano foi, entre os escritores do “movimento de 30”, o que mais se aproximou da perfeição. Ante a justeza, a correção brasileira da língua portuguesa por ele escrita, nós, os outros ficcionistas do Nordeste, somos uns bárbaros. Esse sertanejo de Palmeira dos Índios nasceu clássico, um clássico brasileiro.
Sertanejo feito de uma só peça, um caráter, uma consciência. Não foi só um grande escritor, foi um grande homem. Em cargos de governo – diretor da Imprensa Oficial ou Secretário de Educação em seu Estado – nas pensões baratas da Rua do Catete, no Rio, nas celas das prisões, na trágica promiscuidade da Colônia Correcional, na banca de jornal corrigindo originais de jornalistas famosos, no tempo final da enfermidade terrível, guardou sempre uma dignidade exemplar do homem e o cidadão. Pessimista em relação aos políticos e à vida literária, foi extraordinária sua confiança no povo, sua fidelidade à literatura. Homem de quebrar, jamais de dobrar-se, sem vaidade mas de profundo orgulho, reservado e mesmo tímido em certos momentos, soube, no entanto, não se isolar da vida e dos problemas do País, não fugir às obrigações impostas por seu tempo dramático. O livro que nos dá sua justa medida de homem, de um homem muito além do comum, é Memórias do Cárcere, no qual a alta qualidade literária imortaliza um depoimento terrível sobre uma época espantosa de nossa vida nacional.
Esse homem seco e difícil, seco de carnes, econômico em sua literatura da qual eliminou qualquer gordura, cuja amizade era moeda de câmbio alto, reservada para alguns, que começou a escrever já maduro e que morreu cedo, plena força criadora, esse Graciliano Ramos do interior de Alagoas, com algo de senhor feudal e de cangaceiro reivindicador, foi um dos homens mais doces e ternos que conheci, dos mais fiéis aos seus amigos – a lealdade era sua virtude fundamental.
Recordo o velório de seu corpo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro; escritores choravam pelos cantos, choravam homens rudes, operários, gente humilde do povo. Ele não era um líder nem mesmo um escritor de fácil popularidade. Mas sua grandeza era compreendida por todos, todos sentiam que havíamos perdido um dos nossos maiores artistas, um homem excepcional.
Hoje sua obra reunida em coleção primorosa pela Livraria Martins Editora, ilustrada pelos grandes artistas, alcança a popularidade só reservada aos escritores fundamentais, aqueles que são a própria carne e o próprio sangue de seu povo, os verdadeiros clássicos porque sempre modernos, imortais. Seus romances são traduzidos nas línguas mais diversas e revelam às gentes distantes a face de nossa gente brasileira. Mestre Graça cresceu e sempre crescerá com o Brasil, com a pátria que ele ajudou a construir.
Jorge Amado
voltar