SÃO BERNARDO


Cena do filme Memórias do Cárcere, de Nélson Pereira dos Santos.

Comentário Crítico

AS FAZENDAS REPRESENTAVAM NO NORDESTE MEIOS DE MANIPULAÇÃO...

São Bernardo, publicado em 1934, significa em termos de composição romanesca um enorme salto qualitativo. A plenitude do método descritivo e as seqüelas pós-naturalistas ficaram no passado. Munido de uma perspectiva, o que implica uma concepção fundamental do mundo, supera a indiferença na escolha dos detalhes: todas as ações estão diretamente vinculadas à vida e ao processo de busca de identidade da consciência de Paulo Honório. De guia de cego a senhor de engenho, essa trajetória de um homem possessivo e violento será desenvolvida aos olhos do leitor na dinâmica de seu acontecer.

            A experiência inicial do primeiro romance abre um caminho decidido no recurso de composição de que se utiliza. Se João Valério nos trazia seu romance histórico como uma atividade esporádica e lúdica, Paulo Honório é um pseudo-autor, tentando numa narração incipiente e simplificada ao máximo, traçar o balanço de seu viver. É, pois, o caminho da representação artística ficcional que opta para encaminhar-se à verdade. Com essa escolha Graciliano Ramos manipula o personagem em duas temporalidades distintas – a dos fatos narrados e a da narração em si mesma – e trabalha um caráter em transformação, já que não é o mesmo internamente, pois o tempo transcorrido encarregou-se de modificar-lhe a compreensão do mundo. Essa variação sutil e fundamental rumo à consciência, efetua-se paulatinamente às vistas do eleitor.

            Paulo Honório se propõe a escrever um livro mas não sabe explicar sua utilidade. Seria apenas que o faz por imposição psicológica, numa busca de explicação para o desmoronamento da vida e do casamento. Aos poucos, com o aflorar dos fatos, começam a se tornar mais claras as motivações e mais delineado aos olhos do leitor o complexo destrutivo que o personagem representa. Este desvendamento gradativo corresponde ao desejo simultâneo de encontrar a verdadeira Madalena, sondar-lhe as profundezas, tentar compreender-lhe as atitudes: “Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. (...) Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever”. Na realidade, Paulo Honório busca nas diferenças que existiam entre Madalena e ele o reconhecimento de sua própria pessoa e uma definição, mais do que nunca tornada necessária, de seu ser no mundo.

            Apresentado em um momento crítico, faz o levantamento existencial de uma vida até então dedicada ao mando ostensivo na construção da fazenda São Bernardo. Repentinamente, depois do suicídio de Madalena, verifica, ao olhar para si mesmo, que a luta fora inútil. Como ser humano limitara-se a seguir a ambição de poder que acaba por consumi-lo: ser é ter, defini-lhe a visão do mundo.

            Neste centro conflitante que é a subjetividade de Paulo Honório, a memória é o operador que propicia essa ressurreição de fatos numa hierarquia determinada pela importância que assumem na recomposição do passado. É nesse perscrutar acontecimentos e emoções, agora com preocupação crítica e definida, que está colocada toda a tensão do romance. Dois pólos situacionais e temporais caminham efetivamente: a situação objetiva e sua narração e a progressão subjetiva e sua constatação, pólos que se reúnem no último capítulo.

            Com o desnudamento da consciência e a penetração no real significado de sua vida, crescem de importância e profundidade os solilóquios do personagem, até o culminar da descoberta, e, o mais trágico, a irreversibilidade dos fatos e do tempo.

 

Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumiu-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?

 

            Nesta ficção a intenção em manter-se determinado afastamento estético por parte do autor e do leitor permite que os ambientes e personagens não percam em tensão interna e contornos característicos. Na contemplação estética deste Nordeste agrário de Graciliano o leitor é encaminhado a atingir uma distância de dimensão espiritual, onde o espaço e tempo tornam-se ideais; todavia, o que for percebido aí, aparece finitamente no tempo e no espaço, numa realidade concreta. Assim Paulo Honório projeta-se de uma perspectiva sensível e constante, completando-se pouco a pouco, na medida em que a distância temporal reflete sua experiência como um todo. A mente já possui a seleção do essencial, reajusta e coordena os acontecimentos.

            Com este afastamento de Graciliano Ramos controla a percepção do leitor, corrigindo-lhe a posição em que se deve manter para absorver-lhe inteiramente o significado. Isto não quer dizer que o narrador tenha-se anulado ou seja um marionete: embora Paulo Honório seja inteiramente diverso de Graciliano Ramos não foi nem deformado nem caricaturado. Contém no particular, no individual, toda uma problemática comum aos seres humanos.

 

Conseqüentemente consegue atingir ao mesmo tempo um enfoque próximo e distante da experiência, pois se aproximando da realidade encaminha-se para uma distância perspectívica. Nisto reside a antinomia do distanciamento estético, exemplarmente em São Bernardo: registra o objeto verdadeiro e leva-nos a seu modelo, combina real e ideal através da imaginação e da memória.

            A memória de Graciliano Ramos, por mais que tenha modificado um protótipo, em Paulo Honório retém-lhe a estrutura básica. A imaginação o veio-lhe auxiliar na análise e recomposição do modelo e por sua vez é também a memória que auxilia o pseudo-autor a descobrir a essência de sua vida. Ao alcançar o nível da conscientização cuja fenomenologia percorre o livro, Paulo Honório atinge o cerne do conhecimento e Graciliano dá por encerrada a narrativa, levando o leitor à dimensão de perspectiva onde o sensível e o supersensível são simultaneamente contemplados.

            Colocando a narrativa na boca de um autor, mesmo incipiente, Graciliano distancia-se da obra, não interfere, deixando a cena livre para o narrador que cria, criando-se.

            E, para aproximar-se do real, Paulo Honório escolhe o caminho da representação verbal, tentando com as palavras categorizar e interpretar sua experiência existencial. Não é por acaso que cada personagem define-se como ente ficcional através de um delineamento de contorno lingüístico. Sobre cada um deles, o pseudo-autor tece considerações de como utiliza as palavras ou, através de parcos diálogos, de que forma comunica o mundo. Observe-se por exemplo a narração da cena entre Padilha, bacharel decadente, e Casimiro Lopes, velho sertanejo que “no sertão passava horas calado e, quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras, meia dúzia delas.” Ou a figura de seu Ribeiro, de vocabulário formalizado, inteiramente deslocado num presente que o ultrapassara.

            Entre Paulo Honório e Madalena também o diálogo é impossível. Ela representa o germe humanizador naquele mundo de posses contínuas e é a partir da sua presença que se dá o conflito e o caminho do fim. Também sua linguagem é ininteligível para ele, que na impossibilidade de compreendê-la, destorce-lhe os significados. Assim, toda a seqüência do suicídio é narrada a partir de uma carta descoberta acidentalmente: Graciliano Ramos constrói o clímax muito menos com o que teria sido dito ou escrito e mais com diálogos desconexos, aparentemente sugerindo ao leitor o conteúdo da carta de despedida, que não é revelado, e a distância, já intransponível, entre as concepções tão diversas.

            É, pois, toda uma realidade representada que o pseudo-autor tenta comunicar através de sua própria arquitetura ficcional e verbal, na visão restrita e superficial que possui dos fatos. Desta inexperiência no narrar, Graciliano tira os melhores efeitos do romance. Praticamente todo o relato é feito de forma primitiva, através do comportamento exterior e reprodução de diálogos, onde a psicologia é substituída pela ação.

            No terreno das observações estéticas de cunho crítico, é ratificada certa posição já interpretada por João Valério no romance anterior. São trazidos à tona comentários do pseudo-autor que ampliam as opiniões já formuladas, agora acrescidas com relação à técnica de composição:

 

Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante (...) É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço.

 

            Ainda que explorando a simplicidade de composição de seu pseudo-autor, Graciliano veicula neste livro alguns dados que prenunciam a feitura de Angústia sobretudo no que concerne à manipulação da memória e da temporalidade, levadas então a extremo grau de complexidade no artesanato romanesco.

            O capítulo dezenove, um dos únicos a seccionar nitidamente a narrativa a fim de trazer a narração e Pulo Honório para a temporalidade presente da mesma, em seu fluir, já se utiliza de uma fusão espaço-temporal, expressionista, de amplo uso no romance seguinte. Esse capítulo encerra estruturalmente a confusão mental do protagonista, superpondo impressões auditivas passadas e presentes, criando um clima propositalmente fantasmagórico.

 

A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande um dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim, irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião.

A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.

Rumor de vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja?

 

            É a partir de São Bernardo que a memória assume em definitivo o papel de operador da sobrevivência do passado e elemento fundamental para a compreensão do presente e do futuro. Quer na exacerbação quer na sua anulação, é sobre ela que deposita as raízes da obra.

 

Fonte: A Literatura no Brasil/ direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho. - 4.ed.rev.e atual.-São Paulo: Global, 1997.

 

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