VIDAS SECAS


Cena do filme Vidas Secas
de Nélson Pereira dos Santos
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Síntese Crítica

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     Vidas Secas (1938) é um romance do sertão, e mais do que isso, insiste no ciclo da seca, já bastante explorado. É dentro dela que se movem circularmente os personagens Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e Baleia. Como já foi muito acentuado pela crítica, é um romance duro e seco como a terra que retrata, mas não traz a carga de amargura e pessimismo dos livros anteriores. O contato mais direto com o primitivo, com os imperativos básicos de sobrevivência, talvez seja o fato dessa abertura, deixadas de lado as ideações dos personagens semicultos anteriores.

     Aparentemente surge como obra inteiramente diversa da trajetória seguida pelos livros até então publicados: temos agora a presença de um narrador onisciente que não abusa do poder de tudo saber e vasculhar, controlando-se com freqüência no emprego do discurso indireto livre. Entretanto esse “romance desmontável” como o chamou Rubem Braga, conserva com um tipo distinto de construção a característica da estória-dentro-da-estória dos livros anteriores. Apenas não temos aqui um pseudo-autor presente a escrever o que lhe aconteceu: é substituído por um narrador encadeando proto-estórias numa narrativa mais ampla, independentes na maioria. Elas mantêm sua unidade e sentido completo no fato de os personagens serem comuns e os acontecimentos ordenados numa fluida idéia temporal de sucessão: daí o caráter de “como inacabado”. As narrativas autônomas possuem uma dupla função na sintaxe narrativa: captam formalmente a fragmentação do mundo em que deambulam os personagens e, simultaneamente, representam as relações humanas, não interrompendo a linhagem de indagação em que Graciliano Ramos se debruçara. Consegue com isso explorar planos de realidade distintos, significantes totalmente díspares quando relacionados entre si. É um dos poucos casos em que a soma das partes é maior que o todo. Em treze capítulos, cujos títulos anunciam o que se passa, temos nove que tratam alternadamente de Fabiano, Sinhá Vitória  dos meninos e de Baleia, trazendo quase sempre os mesmos problemas  e as mesmas atitudes vistos porém do ponto de vista de cada um.

    Sinhá Vitória, no capítulo de mesmo nome, tem seu ideal voltado para a cama de lastro de couro. Tudo para ela termina ali, até seu pensamento mágico a ajuda a construir uma esperança: “Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano”. Enquanto isso o menino mais novo, no capítulo também de mesmo nome, tem no pai seu ponto ideal de referência: “Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas perneiras, tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guarda-peito, as esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no”. Balei, no mesmo nível dos humanos, também tem seus sonhos: “Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo. Esta imagem consoladora não a deixava”. Observa-se no romance uma repetição de padrões narrativos chaves, modificados apenas no nível em que se apresentam: ora no nível dos principais núcleos narrativos, ora no dos personagens, ora no da narração. Com isso a realidade é una e compósita simultaneamente.

     Fabiano o grande centro de interesse do romance. Nele estão contidas todas as possibilidades dos outros personagens e também todas as impossibilidades É sobretudo o intérprete mais freqüente dessa situação tão próxima à animalidade: ao julgar-se um bicho, não poderia receber maior elogio, pois a vida em tais condições era um desafio constante. Além do mais, como muito bem acentuou Rui Mourão, ” para ele, pertencer à espécie superior não é possuir determinados caracteres antropológicos: é integrar uma categoria social”. O tema da injustiça social, da submissão pela força é explorado ora no entrechoque Fabiano-soldado amarelo, ora Fabiano-latifundiário. A exploração do homem do campo é apontada nas cenas da ignorância simples do sertanejo constantemente confundido por “ juros e prazos” ou impostos a pagar.

     Fabiano é a imagem da terra que pisa; é um ser ilhado pela incapacidade de verbalização dos próprios pensamentos. Todas as observações metalingüísticas contidas nas obras anteriores com relação à dificuldade de comunicação encontram sua mais radical estruturação no isolamento verbal de Fabiano, seguido de perto por Casimiro Lopes, de São Bernardo. Graciliano constrói nele e em sua família seres estacionados no nível operário-concreto da inteligência, percebendo o mundo através das sensações diretas: a abstração de qualquer tipo é lhes obstáculo insuperável. Isso fica bem esboçado no capítulo “Cadeia” em que Fabiano consegue explicar-se: “Era um bruto sim, senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?

     Essa captação da marginalidade lingüística de Fabiano é uma das chaves do romance: são mesmas constantes as referências diretas feitas pelo narrador: “Às vezes utiliza nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. (...) Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”. Seu Tomás da Boandeira é o ideal de linguagem e “em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se que melhorava”. O mesmo tipo de iniciação no mundo da linguagem faz com que o menino mais velho imite “os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na caatinga, roçando-se”.

     A tensão do romance é controlada pelo ritmo de expectativa na tácita ou direta referência à volta da seca. Assim, utilizando-se de pequenas narrativas isoladas, Graciliano Ramos delineia e traz à tona  os traços mais importantes de sua visão do problema rural, do complexo homem-terra-sociedade, escolhendo como campo de amostragem a unidade nuclear familiar e a situação típica: a seca.

     Depois da publicação de Vidas Secas, Graciliano Ramos dedica-se às narrativas infantis – a terra dos meninos pelados (1939), Histórias de Alexandre (1944) -, entremeia a atividade de cronista à de contista, material mais tarde reunido respectivamente em Linhas Tortas (1962), Viventes das Alagoas (1962) e o volume de contos Insônia (1947). As obras de grande importância dessa segunda etapa são os dois volumes de memórias, o primeiro, de 1945, relacionado com as lembranças infantis, Infância, e o segundo, póstumo, abrangendo recordações de  preso político, Memórias do Cárcere (1953).

     A atitude de Graciliano Ramos frente às memórias é de não traçar limites definidos entre biografia e ficção. Observa-se uma convergência entre o romancista e o autobiógrafo, resultado talvez de descrença em uma forma puramente objetiva (não ficcional) de se atingir a verdade. Depois do impacto autobiográfico dos romances de Proust, Joyce, Lawrence, Wolfe e Fitzgerald uma distinção de tal ordem não mais se sustenta. A única diferença que se possa notar é de grau e não de substância. Não é nos fatos que reside a distinção e sim na forma como são narrados, na originalidade da visão, na criação de novos tipos de realidade.

 

Fonte: A Literatura no Brasil/ direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho. - 4.ed.rev.e atual.-São Paulo: Global, 1997.