Greta Benitez
Ah! Como eu queria estar no meu quarto, olhando esta chuva pela frestinha de minha janela, ouvindo Velvet...ai! E estou aqui, sendo observada pela chuva que cai exatamente na minha cabeça, molha meu sapato novo e me conta que vou terminar mais uma noite levando uma cantada do motorista de táxi. Mas o pior é que vou ter de aceitar a cantada desta vez, porque nem dinheiro eu tenho... E este vestido de alcinhas nesse frio de dez graus? Eu só quero lembrar onde foi que li que uma mulher mal agasalhada tem mais chance de atrair os homens, que desperta o instinto protetor... vou processar esta revista. Vou ligar para o meu advogado e... ah, nem isso eu posso. Ele me fez tanto desaforo que prometi que ele é que ia ser processado. Seria eu uma causa eternamente perdida? Mas eu sou burra! Sair com esta roupa sozinha, nesse frio. Sou mais burra porque quando aquele cara da jaqueta veio falar comigo eu comecei com aquele papo sadô- masô. E eu nem gosto desses troços! Mas como foi mesmo que eu entrei nesse assunto? Ah, é. Foi a pouca luz. Eu disse que devia ter umas velas por ali, que seria ótimo jogar uma cerinha quente nele... só por causa daquela jaqueta e da tatuagem, isso não quer dizer que o cara é chegado. E até minha irmã sempre disse que o que deixou o Eros atacado não foi o fato da Psiquê querer olhar para ele. Imagina, um cara lindo daqueles! Que o problema mesmo foi o negócio do esparmacete. Eu devia ter lembrado. É, mas o cara da jaqueta também não era grande coisa. "I'll be your mirror... I'Il be your mirror"... Me vejo na poça d'água. Toda deformada pelos pingos no espelho. Flores escorrem pelo meu corpo e lembro da música que ouvi no filme francês e que só era música porque você gostava e aquilo me deu uma tristeza tão grande... tão grande que vi as rosas que desciam subirem de novo pelas minhas pernas, desfiando as meias de náilon... Ah não, não senhora, nada de poesia, que só gela o espírito. Já está frio por fora, não quero frio por dentro também. Já chega que o táxi não chega e que não tem ninguém aqui que me pague um café. Ai, acho que vou andando mesmo. Pra quê o táxi? Tenho pé, tenho perna e infelizmente possuo também um par de sapatos estragados salto dez. "Kiss the boot of shiny, shiny leather"... o disco da banana é mesmo o máximo! E eu não sinto medo nessa rua de madrugada. Isso não é maravilhoso? Merece até comemoração. Não vejo a hora de estar na minha banheira com uma boa dose de uísque do lado. Vou por o disco da banana pra tocar três vezes, vou fechar os olhos e imaginar que sou uma colegial tarada, que se prostitui pra comprar bananas-split. Sempre ao meio-dia, quando ela sai da escola, tem uns homens mais velhos esperando e ela pode escolher, porque é bonita, mas naquele dia escolhe o mais feio, porque além de ser bonita ela tem o estômago forte e ele tinha uma tristeza no fundo dos olhos. E eles vão para um hotel perto do parque, um hotel... Estou perto! Quase em casa. Atchim! Atchim! Preciso de uma dose extra. Quem mesmo que disse que o problema da humanidade era estar sempre duas doses abaixo? Foi algum ator. Pois eu acho que duas doses a mais de perfume e de paciência não me fariam mal nenhum. Ah! Foi o Bogart! Mas ele era chato mesmo com seis doses a mais. Aliás, a Ingrid deve ter tomado algumas doses pra encarar aquela cena final. Meu prédio! Meu apartamento! Cheguei! Cadê o disco da banana? Uma loira de farmácia, poética e porca, com seu uísque, sua ressaca, sua azia e seu frasco de comprimidos. Me sentia assim, óbvia. Mesmo não sendo loira e preferindo gim, mesmo não morando no quarto sujo do prédio sujo do lado mais sujo da cidade, mesmo não gostando de filmes de amor, ainda assim , eu era óbvia. Óbvia como uma mulher que amava e que só sabe falar desse amor com palavras óbvias, porque só elas, estas palavras compreendem o amor. Dizer que queria te dar a lua? Que és o sol da minha vida? Que mil rosas vermelhas não valem o teu olhar molhado, cheio de açúcar? O amor é tão simples que não se deixa cair na armadilha das palavras inteligentes. O amor é tão simples que até as pessoas mais inteligentes caem na sua armadilha. E eu também, estou simples. Simples como uma mulher casada que se apaixonou por um bailarino espanhol. Eu: a rainha das coincidências. Na porta do teatro, na rua, criei mil coincidências. Eu preferia ser simples como as moças que tomam cerveja nas avenidas do Rio de Janeiro. Mas não era para ser assim. Eu tinha que ser simples como as mulheres que sofrem numa cidade do sul. A loira porca mora dentro de mim, com sua decadência, sua inocência, seu desejo e seu olho borrado. Simples assim. Simples a dúvida: por quê ele me deixou? Pelo rímel escorrido? Pela falta de habilidade com as castanholas? Psiquê achou que Eros foi embora porque ela rompeu o trato e olhou para ele. Eu acho que ele não gostou foi da dor da cera quente. Simples é a dúvida. Nunca saberemos. E aqui estou. Com um marido que minha mãe me empurrou, com meu carro, sem castanholas, com um céu azul e acolhedor sobre a minha cabeça. E aqui estou. Comprando flores para enfeitar a sala de jantar, porque a loira fez as suas malas e está se mudando. Agora ela vai morar no acorde mais entusiasmado da guitarra flamenca.
Onde foi que eu errei? Alguém me conte , por favor, preciso mesmo saber. Onde foi que eu errei? Por quê minhas filhas sofrem tanto? Não é possível. Ainda bem que eu, a mãe delas, se vira sozinha. Imagina eu, que na idade delas tinha que levar pai e mãe nas costas? Eu tenho lá minhas doenças, meus distúrbios e me dou muito bem com eles, muito obrigada. Às vezes até acho que minha dor de cabeça é a minha única amiga. Ela sempre vem tomar café comigo. "L'inutile Beauté". Três mulheres lindas e não aproveitam. Ah, eu na idade delas. Estaria me divertindo, indo ao baile. Mas não dá mesmo pra entender. Outro dia uma delas veio me dizer que estava apaixonada. Eu até que fiquei feliz, sempre achei que é o amor que dá o gosto da vida. Mas aí eu lembrei! É a casada! Justamente a casada é que vem me contar essa maravilhosa notícia. E ela nem quis me dizer o que ele fazia. Garanto que é vendedor. Eu sempre digo: namore quem quiser, só não me apareça com rapaz mais novo, roqueiro ou vendedor. Pois não é que a mais nova conseguiu arrumar um que era os três? Tenho certeza que parte de meu erro foi esse excesso de liberdade que eu e o pai demos pra elas. Sempre fizeram tudo que queriam. A caçula, quando resolveu ficar seis meses em Paris, adivinhe. Foi. Foi e me volta com a cabeça estragada. Só me fala em Café de Flore, Les Deux Magots, aquelas espeluncas que o Sartre freqüentava com aquele bando de libertinos. Além de tudo, me volta alcoólatra. Só fica tomando vinho dia e noite. Aí, quando são quatro da manhã, me liga de porre e chorando. E não sabe por quê. Onde já se viu? Se chora, pelo menos saiba o motivo. Ou não chore. Será pedir demais? E a do meio? Sempre saindo à noite, sempre entrando em qualquer boteco. Eu sempre digo: cuidado, daqui a pouco me entra numa boca de fumo, vai presa e nem sabe por quê. Aí, adivinhe. Eu é que vou ter que tirar a madame da prisão. E ela ainda me diz que não gosta de bar. Então por que vai? É masoquista? Se é pelo menos uma se diverte. Porque sofrem! Como sofrem estas garotas! Eu queria que alguém me contasse, por favor, onde foi que eu errei. Tudo bem, acho que uma parte é genética, porque a família do pai é bem complicadinha. Muitas irmãs, em conseqüência , tias. Muitas delas. Tias aos borbotões. E tias em excesso, todo mundo sabe: é problema. Nem é que elas causem. Elas SÃO o problema. Porque onde não tem elas inventam. Que desperdício de energia criativa! Mas é claro, não é à toa que várias delas são vendedoras. Mas olhe, se alguém puder, por favor me ajude e me responda, senão não posso morrer em paz. Me digam onde foi que eu errei ? A vida é uma droga. É só problema. Não tem emprego? Problema. Tem emprego? Problema. Não tem namorado? Problema. Tem namorado? Mais problema. Droga. Bom era eu lá em Paris. Sim, lá também tinha problema. Mas eles eram classificados diferente: lá tinha problema bom, problema ruim, problema de chocolate, problema cor-de- rosa... Aqui só tem problema de tédio. Mas agora, nesse momento, aqui no meu quarto estou feliz. É!! Estou mesmo. Nesse edredon de primavera, cheio de florzinhas lindas e ouvindo jazz. Eu não gosto muito de jazz, mas amo o Chet. Quando ele canta então, parece aquela garoa que cai em Montparnasse, na Rua de Rennes, que deixa tudo cinza, mas um cinza tão lindo que dá vontade de chorar. É. Estou feliz. Acho que vou abrir um vinho pra comemorar. Chet Baker com vinho é bom pra caralho! Mas, voltando, não sei porque eu sou assim. Vejo problema em tudo !! Isso não é normal. Por que eu não sou como os outros? Todo mundo se diverte. Só eu que não. No fundo eu acho mesmo que a culpa é daquela minha mãe. Ela fez tudo errado! Não me deixava fazer nada, cresci me sentindo presa! Pra ela tudo é tragédia. Lembro quando eu ia viajar, que choradeira que foi. Dois meses de terror. Ela disse que se eu fosse era pra não voltar e, se voltasse e quisesse me encontrar com ela de novo, era pra ir direto ao cemitério, porque ela ia se matar. Vê se pode! Mas eu nem quis saber. Arrumei minha malinha e fui sem remorso. Ou quase. Mentira. Fui com muito remorso. Tanto que quase tive que pagar pelo excesso de bagagem no aeroporto. Mas hoje eu estou feliz. Quase tanto como no dia em que conheci o Café de Flore. Lugar lindo! Nossa! Já são três da manhã! Vou abrir mais um vinho pra ver se durmo e consigo acordar amanhã e ir pra faculdade. Ah! Mais um problema que herdei de minha mãe! Esta maldita insônia. Eu tenho uma teoria que diz que todo problema é a família. Ainda vou escrever um livro. Eu acho que todas as crianças, na hora do parto, deveriam ser separadas da família e encaminhadas para um lugar onde pudessem ser criadas sem tanto trauma, por pessoas com quem não precisassem se preocupar e não tivessem tantos laços. Vinho tinto me lembra Paris. Vinho tinto e Paris me dão vontade de chorar. Mas não posso. Daqui a pouco tenho que ir pra aula e ainda nem dormi. Só me falta ir com a cara inchada e o olho vermelho. Mas não adianta. Vou ter que chorar. Acho que é felicidade. Eu estava feliz no começo, não estava? Então. Eu continuo feliz. Acho que vou ligar pra minha mãe. Ela sempre diz que a maior felicidade dela é saber que estamos felizes. É. Vou ligar. Ela que me fabricou, agora que me agüente. |
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