Sobrado de Lúcifer
Greta Benitez
Com um líquido que seria letal para qualquer ser humano,
somente com isso, a moça se alimentava.
Nunca ninguém conseguiu entender qual o fenômeno
ou anomalia genética que a tornava tão resistente
àquela misteriosa poção, criada e produzida
por ela mesma. Uma mistura de acetona com ervas compradas de
duvidosos vendedores itinerantes do centro mais sujo da cidade.
A fórmula exata, nunca se soube. Talvez nem a própria
inventora.
O fato é que ela resolveu viver apenas em casa, saindo
só para comprar as ervas, e sempre dopada por seu alimento,
que tinha efeito psicológico pelo menos cento e oitenta
vezes mais forte do que o absinto ou qualquer bebida que ainda
viesse a existir.
Ela não fazia nada. Não comia nada. Não
gastava dinheiro com nada. Nem mesmo com roupas, pois tinha um
vestido longo vermelho de lantejoulas, que jamais era lavado.
Traje de puta mesmo, comprado num brechó do mesmo centro
mais sujo da cidade.
Sua mãe, dona Andrósia, senhora tão distinta
e amorosa, aceitava a filha. Diferente das duas irmãs,
que tratavam a moça como um animal indesejável,
um sapo idoso no canto do jardim, embora invejassem sua liberdade.
Afinal, ela jamais se preocuparia com empregos ou namorados.
Nunca se soube o motivo da decisão de adotar este bizarro
estilo de vida. Não, nenhuma desilusão amorosa.
Nenhum trauma psicológico ou neurológico, nenhum
acidente. Parece que ela simplesmente começou a achar
tudo normal demais e passou a ser assim.
O cabelo era um espetáculo à parte. Um verdadeiro
zoológico freak , um pequeno umbral. Dreadlocks involuntários
foram aparecendo, já que água, os fios não
viam nunca. Pelo meio dos rolos, foram se formando ninhos de
bichos jamais antes vistos pelo ser humano. Criaturas simplesmente
indescritíveis. Além do mofo. A mãe dizia,
com uma mistura de reverência e medo: -Acho que aí
moram até demônios. É o Castelo de Lúcifer-.
Mas a filha contestou: -Se o Demônio tivesse casa não
seria um castelo, mas um sobrado antigo, com um belo jardim de
árvores secas e fogo, situado na rua mais pecadora do
mundo.- Foi daí que surgiu seu nome definitivo e oficialmente
aceito pelos historiadores: Sobrado de Lúcifer.
E Sobrado, como uma bêbada daquelas lúcidas, que
falam a perturbadora verdade, certamente era um transtorno.
A última vez que dona Andrósia havia recebido visitas,
Sobrado apareceu na sala, de repente, estranhíssima figura,
mandando os convidados embora. Disse que simplesmente não
agüentava mais aquela gente lá, gente de energia
negativa e mentalidade ínfima. Desta vez, a mãe
falou:
-Ai, filhinha, que vergonha!
-Puta, mas que merda! Vergonha devia ter você, de trazer
esse povo menor aqui, eles me deixaram com bodão. Não
gostei.
E a mãe recolheu a louça e foi triste para a cozinha,
concordando com a filha.
As visitas saíram se benzendo e correram tanto com o carro
que bateram feio num poste. Houve ferimentos, mas continuaram
correndo mesmo assim, a pé. Um desespero. Só queriam
sair de perto daquela casa. -Cruzes-, diziam sem parar. E parece
que até hoje o casal só consegue repetir esta palavra:
Cruzes.
Sobrado, que apesar de sincera tinha bom coração,
ficou com pena da mãe. Não pelo que tinha feito,
mas por aquela senhora tão generosa e boa sentir-se na
obrigação de receber lixo humano em casa. -E nem
elogiaram a comida dela-, pensou.
Nunca se soube também como a fama de Sobrado começou
a se espalhar pelo mundo. Houve boatos que um admirador secreto
conseguiu espioná-la, tirando fotos, apurando informações
e montou um site na internet. E assim, o impossível aconteceu.
Surgiram dois pretendentes.
Um deles, Wolf era um alemão famoso no underground mundial
por ter ficado dependurado pela pele, por vários ganchos,
durante meses em Berlim, num lugar obscuro, mistura de bar, templo
e clube sadomasoquista. Sua pele parecia uma lona de circo velha
e flácida, seqüela do estranho emprego que tinha
na Alemanha. Ele trabalhava nisso para se aproximar das esferas
mais profundas, obscuras, sangüíneas do mundo visível
e invisível. Para ele, Sobrado seria a mulher perfeita,
aquela que trazia o umbral na cabeleira.
O outro foi Fausto, um assassino que havia se especializado em
construir ikebanas com órgãos e pedaços
de corpos humanos. A polícia internacional sempre ficava
impressionada com a delicadeza e o bom-gosto de seus arranjos,
como também pela habilidade dele em não ser pego.
Um artista especializou-se em fotografar estas obras, organizando
exposições tidas pelos críticos mais implacáveis
dos jornais do mundo todo como arte de altíssima qualidade.
Isso transformou Fausto em dono de imensa fortuna.
Wolf e Fausto chegaram à casa da moça coincidentemente
juntos, para horror do bairro inteiro. Foi nesse momento que
uma das irmãs morreu do coração, com apenas
vinte e sete anos de idade. Como sempre, a única a aceitar
foi dona Andrósia, comovida pela paixão dos dois
rapazes. -Afinal, parecem pessoas respeitáveis, não
duvido que sejam bons moços, gente de bem- disse ela para
Sobrado, que começava a gostar da idéia da união.
Sobrado casou-se com os dois, numa cerimônia simples no
jardim da casa, decorada com rosas vermelhas, douradas e negras.
Por uma infeliz coincidência, a outra irmã embarcava
na ambulância do hospício neste mesmo momento. Foi
uma pena que não pudesse compartilhar da alegria dos noivos
e da noiva, que ainda comentou: -Coitada, não comeu nenhum
docinho...-
Ficaram os quatro morando na casa. Fausto fez lindíssimos
trabalhos com os corpos de todos os inimigos da mãe de
Sobrado. -Nunca matei alguém que prestasse- dizia. Ganhou
mais dinheiro ainda. E Wolf parou de fazer seus shows para produzir
bolos decorativos sob encomenda, já que com a noiva estava
próximo das profundezas do ser, vivendo com a mulher mais
selvagem que já existiu. Seus bolos ficaram famosos, cheios
de flores, frufrus, anjinhos esculpidos em açúcar,
flores de biscuit e toda sorte de adereços românticos.
Afinal, clima de romance e conforto era o que não faltava
naquele lar onde, de verdade, existia o amor.
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