Lugus – O Senhor Dos Muitos Talentos (Lugus: The Many-Gifted Lord)
By Alexei Kondratiev , Copyright 1997. All Rights Reserved.
Tradução de Leandro Luiz do Grupo Old Ways

 

De todas as divindades que sabemos terem sido adoradas no mundo Celta, o deus que os celtas continentais chamavam de lugus e que os irlandeses chamavam de Lugh é aquele melhor documentado e melhor compreendido. O volume completo e a variedade difundida de evidências relacionadas a ele comprovam a importância desse deus na tradição celta. As evidências incluem: iconografia do período romano, toponímia, iconografia e epigrafia do período de ocupação romana; depoimentos de escritores gregos e romanos; tradição literária dos celtas insulares da idade Média; narrativas populares modernas em línguas Celtas; e práticas ritualísticas de comunidades rurais conservadoras. Cada um desses conjuntos de evidência nos fornece apenas informações fragmentadas, mas quando agrupadas e interpretadas à luz, uma pode esclarecer a outra fazendo surgir uma imagem detalhada e consistente, o que pode nos direcionar, com um alto grau de certeza, até a compreensão do que o culto a Lugh envolve.

 

Começando por volta de 500 BC, e seguindo à súbita expansão tanto da riqueza como do território que ele tinha vivido na Idade do Ferro, o mundo celta entrou num período de conforto e autoconfiança no qual tomou grande interesse pelas expressões culturais e artísticas de seus vizinhos e pegou emprestado livremente deles, contudo sempre adaptou tais empréstimos aos valores e gostos celtas nativos. Essa mistura de inovação e tradição deu origem ao extraordinário estilo La Tène da arte celta, e sem dúvida teve repercussão em todos os níveis da cultura celta, particularmente no campo da religião. Todo um vocabulário de símbolos religiosos de origem oriental começou a ser retratado em objetos de arte durante este período, sugerindo um interesse renovado em idéias religiosas como um resultado da exposição a tradições estrangeiras, apesar de não parecer ter havido nenhum rompimento com a herança Indo-européia fundamental. Muitos desses símbolos importados, assim como outros novos de origem nativa, são encontrados em associação com um deus em particular cujo desenvolvimento súbito e difundido de sua importância deve ter sido um dos eventos mais importantes na religião La Tène. Esse deus é retratado com pássaros; cavalos; o motivo da árvore da vida oriental; cachorros ou lobos; e serpentes gêmeas. Mas a imagem mais intimamente relacionada a ele é a folha ou a baga do visco. Geralmente, as folhas do visco são mostradas dos dois lados de sua cabeça, como chifres ou orelhas, mas algumas vezes o simbolismo é posto ao contrário, e a cabeça do deus aparece como a baga de uma planta de visco. Durante os anos 300, a folha do visco se mistura com as serpentes gêmeas em um novo motivo que os arqueólogos chamam de “palmette”. Essa forma, coroando a cabeça do deus ou ligada à figura de algum animal, é comum (especialmente em moedas) até ca. 200 BCE. Dali em diante, as serpentes gêmeas aparecem sozinhas no que ainda é claramente um glifo representando essa divindade em particular.  O fato de representações do deus e de seus símbolos aparecerem mais freqüentemente em objetos relacionados a banquetes aristocráticos formais (como os famosos jarros de vinho do funeral de Basse-Yutz em Rhineland) sugere fortemente que ele era de alguma forma associado com a realeza sacra.

 

Pelo fato dos celtas da idade do ferro não usarem a escrita em contextos religiosos, nós não temos nenhuma evidência do nome desse deus. A Toponímia, contudo, nos oferece uma pista muito forte. O nome Lugudunon era dado a um número bem grande de lugares (Lyons, Laon, Liegnitz, provavelmente Leiden, etc) da última idade do ferro. No celta arcaico, dunon significa “forte” (a palavra tem cognatos modernos no irlandês dún “forte” e no galês din(as) “cidade”), mas o elemento Lugu- só pode ser explicado por um nome próprio. Nós não temos nenhuma dedicação a um deus com esse nome nesses lugares, contudo a existência de figuras mitológicas com o nome de Lugh and Lleu na tradição literária posterior dos celtas insulares deixa claro que uma figura similar carregando o nome Lugus deve ter existido na idade do ferro. De fato, uma dedicação famosa da sociedade dos  sapateiros de Uxama (Osma); uma outra inscrição de Avenches na Suiça mencionando o Lugoues; e dedicações a Lugubus Arquienobus, de Orense e Lugo na Galícia indicam que o nome Lugus era realmente conhecido. Um fato interessante é que todos esses nomes são dados no plural, como se referissem a um grupo de divindades ao invés de a um único deus. Nós teremos algumas sugestões mais tarde sobre o porque que esse pode ter sido o caso.

 

Por que, se Lugus exercia um papel tão importante na religião celta da idade do ferro, seu nome foi tão pouco usado no período de ocupação romana que se seguiu? A maioria dos pesquisadores concorda que isso foi o resultado de uma interpretação romana bem sucedida, uma identificação do deus celta com uma figura do culto romano oficial. No De Bello Gallico, VI, 17, Julius Caesar, comentando sobre a cultura e a sociedade celta, mesmo enquanto ele espremia a vida das mesmas, afirmou que “Mercúrio”  era o deus celta mais popular, o criador de todas as artes e habilidades, o protetor dos viajantes, e o grande patrono do comércio e da riqueza. Ele estava seguindo a comum prática romana de forçar religiões estrangeiras a incorporar as categorias e terminologias da religião do estado romano (na mesma passagem ele usa o nome “Minerva” para se referir a uma deusa obviamente relacionada à Brighid irlandesa, e conhecida independentemente por nomes celtas nativos), e nesse caso a identificação certamente se tornou uma referência para a população celta dominada, pois dedicações e representações de “Mercúrio” começaram a proliferar no mundo celta romanizado e conservaram suas preeminência até o período de cristianização. Mais de 400 dedicações a Mercúrio ou um de seus títulos nativos comuns foram encontradas: sua importância na Gália e na Grã-Bretanha excedeu qualquer coisa que o papel de mercúrio na religião romana poderia ter assegurado. Obviamente Mercúrio era o disfarce moderno de Lugus, e pelo fato de os dois nomes serem vistos precisamente equivalentes o nome nativo nunca era usado nas inscrições oficiais em Latim.

Enquanto as imagens romano-celtas de Mercúrio, em geral, retratavam-no com seus bem conhecidos atributos clássicos – o chapéu alado (remanescente da anterior coroa de visco), o caduceu (imitando as serpentes gêmeas onipresentes da idade do ferro), a sacola de dinheiro, o galo novo, o carneiro, a casca de tartaruga, etc. – muitas de suas representações  divergiram consideravelmente do padrão greco-romano. Algumas estátuas (e.g. a de Lezoux) o mostram não como o costumeiro Ephebos barbeado, mas como um homem velho barbado envolto num xale celta. Nós vamos, contudo, chamar a atenção para três dessas características puramente nativas como particularmente importantes: sua associação com alturas; sua tendência a ter múltiplas formas (geralmente triplas); e seu papel de protetor soberano com atributos de guerreiro.

 

O Mercúrio celta era claramente relacionado aos lugares altos de cada território tribal onde era adorado. Montmartre in Paris, o Puy-de-Dôme no Auvergne, o Mont de Sène na terra do Aedui – só para nomear alguns da lista de possíveis exemplos – eram todos originalmente montes de Mercúrio. Santuários coroavam esses cumes, e uma ilustração convencional de Mercúrio era retratá-lo sentado numa montanha. Os Aruerni encomendaram (a um preço fabuloso) do escultor grego Xenodorus uma estátua gigante de mercúrio sentado no topo de sua montanha sagrada, o Puy-de-Dôme; o que foi uma das atrações turísticas mais famosas da Gália romana. Claramente a localização de um templo para Mercúrio num local alto foi de importância teológica.

 

Muitas representações do Mercúrio celta parecem ter tido a intenção de sugerir que ele era vários em um; geralmente isso toma a forma de tricefalia, embora nem todas as figuras tricéfalas na iconografia celta  sejam necessariamente esse deus. Uma estátua de Tongres, na Bélgica, tem três falos ao invés de três cabeças: um na coroa da cabeça e um no nariz, além do falo normal. Esse motivo difundido de triplicidade pode, no caso de Mercúrio, indicar o poder do deus presente em três contextos diferentes – bem provavelmente as três funções Dumezilianas[1], como as evidências da literatura posterior e as fontes de rituais vão sugerir (isso também pode explicar as dedicações ao plural Lugoues). Uma estátua de bronze de Mercúrio encontrada em Bordeaux tem quatro faces ao invés de três, duas sem barba e duas barbadas. Isso poderia simbolizar sua natureza onisciente – senhor de todas as direções – mas isso não explicaria as diferentes aparências de suas faces. A intuição de Caitlín Matthews de que algumas divindades celtas tinham manifestações separadas em diferentes etapas da vida – por exemplo, como criança, jovem herói, governante maduro e como idoso renunciado – pode ser de alguma relevância aqui.

 

De relevância similar pode ser a relação bem estreita entre Mercúrio e o deus chifrudo hoje em dia geralmente chamado de Cernunnos. Eles têm uma longa lista de características em comum: a tendência à tricefalia, a associação com dinheiro, com as serpentes gêmeas, etc. Ambos são figuras limiares, facilitando a passagem de um estado ao outro, e assim a troca de dinheiro no comércio, assim como a transição da vida para a morte e novamente de volta. Contudo, como eles são em geral retratados juntos na mesma cena, eles claramente não têm o propósito de serem um idêntico ao outro. Um estudo profundo da relação entre Mercúrio e Cernunnos iria ultrapassar muito o âmbito deste estudo, mas suspeita-se de que a resposta está num elemento já desaparecido da mitologia gaulesa. Se comparássemos como, na literatura insular tardia, Lugh é dado a Manannán para criação e Lleu a Gwydion – ambos versões antigas do jovem herói em seus talentos e atributos, e que com certeza fazem um estilo Mercúrio – nós podemos chegar bem perto de compreender a natureza da relação. Além disso, Cernunnos parece estar exclusivamente ligado à terceira função, enquanto Mercúrio é trans-funcional e, a partir de sua primeira aparição na iconografia pré-romana em diante, tem uma forte ligação com a primeira função.

 

O último aspecto do mercúrio celta – o menos clássico de suas manifestações – é particularmente bem demonstrado em Rhineland, e mais geralmente nas terras da expansão belga – o último grande movimento de população na Celtia pré-romana, e uma fonte de bastante inovação religiosa. Nesse aspecto, Mercúrio está armado com uma espada, e geralmente acompanhado por sua consorte, Rosmerta, uma deusa puramente nativa cujo nome significa “A grande provedora” (um dos títulos locais de Mercúrio, Adsmerios “o que provê”, tem obviamente a intenção de ser um eco dela mesma). Enquanto Rosmerta aparece com Mercúrio em várias facetas pela Gália e Grã-Bretanha, nessas específicas representações ambos estão particularmente ligados ao conceito de soberania. Na sociedade da idade do Ferro, a coesão de um grupo com um chefe tribal era garantida e a ela dada um reconhecimento sagrado por meio de uma festa/banquete comunitária(o), na qual uma bebida ritualística servida pela deusa da terra (um papel exercido pela sacerdotisa ou pela esposa do chefe) era dividida, unindo todos os participantes à sua terra, seu governante, e uns aos outros. Rosmerta era a divina mantenedora da bebida da soberania, enquanto o Mercúrio de espada em punho era o arquétipo de todos os governantes, o protetor com características do Outromundo do rei terreno.

 

Este pouco de teologia teve um impacto muito importante nos vizinhos germânicos dos celtas. Por volta de 100 BC, os alemães do oeste, impressionados pelo esplendor cultural dos Celtas La Tène, se converteram totalmente à religião celta e adotaram muitos aspectos da cultura e da organização social celta, a ponto de darem a seus filhos nomes celtas. Um dos empréstimos institucionais mais importantes deste período foi a “legitimação” de um chefe-guerreiro através de um ritual de soberania, e foi necessário também o empréstimo de deidades celtas para presidirem tal cerimônia. Muitos pesquisadores preferiram enxergar as muitas semelhanças entre Lugus/ Mercúrio e o germânico Wodan como sobreviventes a parte de um protótipo Indo-europeu; mas alguns hoje em dia não vêem razão para acreditar que Wodan não se originou no primeiro século da era comum nas terras próximas ao Mar do Norte como uma imitação deliberada do Mercúrio celta em uma de suas mais importantes faces.

 

Enquanto a imposição do governo romano sobre a maioria das terras celtas fez a relevância do papel de primeira função de Mercúrio menos óbvia, ele foi, não obstante, praticado de uma forma particularmente ostensiva, e a importância deste fato é geralmente ignorada. Após os druidas da Gália do sul, em 18 BCE, decidirem reconhecer a legitimidade do governo romano sobre seus territórios (em troca de uma tolerância religiosa de vida curta) o imperador Augusto decidiu sacralizar aquele governo de uma maneira especificamente celta. Em 10 BCE, tendo feito o Lugudunon (latinizado como Lugdunum) dos Segusavi[2] a capital da Gália dominada, ele dedicou o templo dos três gauleses ao culto ao estado romano, com seu principal festival em primeiro de agosto, a data de Lughnasadh, a festa presidida por Lugh na tradição irlandesa posterior. Assim, sob o patrocínio de Lugus, o fiador sagrado da soberania, o governo romano foi enquadrado na estrutura da religião celta. 

 

Em relação a Lugdunum (que se tornou a capital administrativa da maior parte da Gália romana), nós somos apresentados a imagens que podem ter uma relevância especial para a tradição de Lugus. No texto De Fluviis, atribuído a Plutarch[3] apocrifamente, é dito que na época em que a cidade foi encontrada, certos corvos vinham do céu, e foram interpretados como um bom augúrio. Eles não eram corvos comuns, pois tinham algumas penas brancas em suas plumagens; e se tornaram o foco de um santuário profético onde, depois que um consulente fizesse uma oferenda de comida numa plataforma elevada, um sacerdote adivinharia a resposta para sua pergunta através do comportamento dos corvos enquanto eles iam atrás da comida. O papel principal destes corvos era, portanto, de contato com o Outromundo, o que se tornava possível através da aparência incomum: embora fossem exemplos tradicionais da escuridão, eles tinham o oposto (a claridade) neles mesmos, e podiam, assim, oferecer a passagem entre reinos aparentemente em oposição, até mesmo como Lugus/ Mercúrio facilita tais passagens. Representações do genius loci[4] sem nome de Lugdunum (Bem provavelmente o próprio Lugus, visto que ele apresenta atributos típicos de Mercúrio) o mostram acompanhado de corvos. Apesar das fontes literárias posteriores não serem claras sobre a associação de Lugh com corvos (o único exemplo não ambíguo ocorre no poema irlandês da Idade Média, o “hawk of Achill”), a importância dos corvos companheiros de Odin na literatura Escandinava (onde eles são explicitamente pássaros mensageiros, e faculdades mentais) é certamente significante aqui, especialmente se lembrarmos a ligação estreita entre Wodan/Odin e Lugus/Mercúrio. Outros exemplos dessas imagens em fontes posteriores (Como Owen e seu exército de corvos na literatura gaulesa) podem ser um eco difuso de uma temática que teve grande importância em épocas anteriores, mas perdeu muito de seu significado ao longo dos séculos enquanto a mitologia literária se desviava cada vez mais de suas origens religiosas.

 

O Pseudo-Plutarch sugeriu, de fato, que a cidade de Lugdunum foi nomeada em homenagem aos corvos, afirmando que ‘lougon ton koraka kalousi’ (“Eles [os gauleses] chamam os corvos de ‘lougos’”). Não existe nenhuma palavra celta com este significado (Em celta arcaico, Lugus é o nome do lince), logo, a afirmação é problemática. Meyer-Lübke sugeriu que tal palavra veio do modelo Indo-europeu *plugo- (com a comum perda celta do p), como parte de um grupo de palavras difundido da raiz *pleu- que se refere a fluxo, vôo, penas e pássaros. Sem evidências adicionais o problema permanece não resolvido, embora seja inquestionável que esta não é a origem do nome de Lugus. Contudo, a paixão celta por trocadilhos certamente teria feito uma relação entre tal palavra (se ela existiu) e o nome do deus.

 

Um trocadilho mais evidente e significante existe entre o nome ‘lugus’ e o radical celta arcaico lugi- que significa “jurar” (aparecendo no irlandês como luighe, em galês como llew e em bretão como le). O famoso texto gaulês encontrado em Chamalières em 1971, que é o roteiro de um ritual mágico e religioso para se obter a ajuda do Maponos[5] arverniano em uma revolta militar, conclui com uma fórmula repetida três vezes “Luge dessumilis [=dexumiis]” (“Através de um juramento, eu os faço preparados”), onde o eco do nome do deus na expressão luge, dificilmente falharia em causar impressão no ouvido de um falante celta, e reforçaria sua relação, em requinte máximo, com o princípio, de primeira função, de fazer juramento.

 

Enquanto o nome de Lugus (embora não sua importância como deus) era geralmente eclipsado durante a ocupação romana, esse não era o caso na Irlanda, onde o governo romano nunca tinha se implantado e onde nunca houve necessidade de uma interpretação romana de deidades nativas. E quando textos vernáculos irlandeses começam a aparecer em abundância por volta dos séculos 8 e 9, nós encontramos referência em tais textos a uma figura chamada Lugh cujas características estão em perfeita harmonia com as evidências anteriores a respeito de Lugus/Mercúrio.

 

Antes de voltarmos nossa atenção para a literatura medieval dos celtas insulares para informações mais detalhadas sobre o deus, devemos ter em mente que esta não foi escrita com um propósito religioso e assim não representa a mitologia sagrada de um sistema religioso vivo, mesmo que possa preservar muitas tradições do período pré-cristão. Estas tradições foram gravadas pelos celtas cristianizados por uma variedade de motivos: porque eles marcaram precedentes que foram uma fonte importante de autoridade para instituições legais; porque eles acentuaram o prestígio de uma determinada localidade, de uma determinada linhagem; porque eles eram associados com a tradição da classe culta; e por seus valores de divertimento absoluto. Contudo, em todos estes casos eles foram despidos destes elementos que tinham um significado religioso pré-cristão óbvio e obrigados a se conformarem com a visão cristã de mundo. Assim, não podem ser tomados, à primeira vista, como documentos da crença celta pré-cristã, mas devem ser investigados à luz de outras fontes. Felizmente, padrões de rituais pré-cristãos permaneceram fortemente entranhados em comunidades celtas rurais (lado a lado com a cristandade oficial) e forneceram evidências que são geralmente mais arcaicas e aproximadas de tradições mitológicas pré-cristãs do que a literatura medieval. Dessa forma, a mitologia popular e as práticas associadas com o festival Lughnasadh em agosto (Lúnasa em irlandês moderno), o início da colheita e explicitamente sob a proteção de Lúgh, são essenciais para a compreensão dos elementos pré-cristãos que permanecem nas fontes literárias.

 

 As histórias literárias sobre Lugh estão situadas na estrutura da narrativa pelo Lebor Gabála Érenn (“Livro das Conquistas da Irlanda”), uma compilação reunida entre os séculos nove e doze como uma tentativa de harmonizar mitos nativos de origens (necessários à cultura como precedentes legais e sociais) com a versão bíblica da história que os cristãos viam como autoridade suprema. Uma grande parte dessa narrativa é dedicada à batalha entre os Tuatha Dé Danann e os Fomóirí (moderno Fomhóraigh) sobre o controle da Irlanda. A base pré-cristã para este conflito é clara, e é repetida em muitas outras mitologias Indo-européias: os Tuatha Dé Danann representam os deuses da tribo, os deuses que servem de modelos para a sociedade humana, cada um sendo o arquétipo ideal de uma função social, e a soma de todos uma fonte de apoio e proteção para a comunidade humana; enquanto os Fomóiri (que não estão enumerados entre os “conquistadores” da Irlanda, porque sempre estiveram lá) são os poderes da própria terra, fornecedores tanto da fertilidade como da praga – mas sem fazer distinções, sem qualquer preocupação com o bem-estar dos humanos. Apesar dessas duas facções parecerem estar em oposição, elas estão ligadas inseparavelmente por laços de sangue, e uma não pode destruir a outra. Nós podemos encontrar o mesmo modelo na relação entre os deuses e os titãs na mitologia grega inicial, entre o Aesir e o Vanir (e o Jötnar) na tradição Nórdica, e especialmente entre o Devas e o Asuras na Índia. No ponto da história que nos interessa, Nuada, o detentor da soberania (i.e. o controle legítimo sobre a terra) entre a Tuatha Dé Danann, tinha perdido seu braço numa batalha com os Fir Bolg (a onda anterior de conquistadores) e assim passa a não ter a totalidade necessária para ser um soberano. No seu lugar, é colocado Bress mac Eladan, cujo pai é um Fomorian e cuja mãe é uma Danann, e assim aceitável em ambos os lados devido a sua linhagem dual. Cian, filho de Dian Cécht (o médico dos Tuatha Dé Danann), engravida Ethliu/Ethniu de Lúgh, a filha de Balar, o herói Fomorian, e a criança é dada a Tailltiu para criação, uma rainha Fir Bolg, que tem um papel importantíssimo na limpeza da planície central da Irlanda para a agricultura. As hostilidades estouram novamente entre  os dois grupos e levam a uma confrontação final em Mag Tuired, onde Lúg salva o dia ao matar seu avô Balar com uma pedra de um sling. Ele então governa a irlanda por quarenta anos, e morre em circunstâncias não muito claras nas mãos de um homem cujo pai Lúg tinha assassinado.

Felizmente, nós temos outras fontes que complementam este material, embora nem todos sejam igualmente relevantes para reconstruirmos as crenças pré-cristãs. Entre todos, o mais valioso é o Cath Maige Tuired, um texto primeiramente conhecido a partir de um manuscrito do século 16 escrito por membros da família de escribas Uí Cléirigh do Donegal, mas que reproduz um original do séc. 11 que deve ter sido baseado em material que se reporta ao século 9. Versões anteriores dele devem ter servido como fonte para o Lebor Gabála. Uma das notáveis características deste texto é o estilo de sua narrativa, com modelos de diálogos repetitivos que foram evidentemente retirados da tradição nativa oral de contação de histórias: o que provavelmente reflete uma tradição bem enraizada que teve algum tipo de associação ritualística – provavelmente com Lughnasadh, sobre o qual teremos mais a dizer. Nessa versão da história, que trata especificamente da batalha calorosa entre os Tuatha Dé Danann e os Fomóirí, nós aprendemos mais sobre Bres mac Elathan e sobre o modo como ele é comparado a Lugh. Embora ambos sejam parte Danann, parte Fomorian, Bres tem um pai Fomorian e uma mãe Danann, e numa tradição patrilinear isto assegura sua lealdade ao povo do seu pai, de forma que ele começa a mostrar traços fomorian: sua avareza e cobiça retém dos Tuatha Dé os recursos da terra, o que os leva à revolta – o que se torna possível quando o braço de Nuadu é curado, devolvendo a ele sua capacidade para exercer a soberania. Quando Lugh (que tem um pai Danann e uma mãe fomorian) retorna e tenta passar pelos portões de Tara (a sede da soberania), poderíamos dizer que ele é politicamente desnecessário aos planos dos Tuatha Dé Danann; e é dito a ele que quem não tem um ofício distintivo não pode entrar em Tara (já que os Tuatha Dé Danann são uma idealização da sociedade, cada um deles sendo o patrono de uma ocupação específica). A diferença de Lúgh, no entanto, é que ele é o mestre de todos os ofícios: ele é o Samildánach, o “o de muitos talentos”. Ele (como o “Mercúrio” celta) pode passar por todas as atividades da sociedade, e ser o patrono de cada uma delas, unificando as três funcões. Como tal, ele substitui todas as deidades funcionais (incluindo Nuadu, que é simplesmente “rei”) e se torna o defensor ideal da Tribo contra os poderes caóticos da terra. Depois de avaliar com o que cada deidade pode contribuir para a batalha que se aproxima, ele mesmo providencia um pouco de mágica de batalha (uma abordagem especificamente de primeira função para uma atividade de segunda função). Seu avô Balor tinha dado uma grande vantagem aos Fomorian com seu olho que consome tudo o que vê, mas Lugh destrói o olho com uma pedra de atiradeira, levando os Fomóirí a uma debandada. Então ele se prepara para destruir seu “gêmeo sombrio”, o usurpador Bres. Contudo ele poupa sua vida quando ele revela o segredo do ciclo da agricultura – a praga Fomoriana transformada em fertilidade pela vitória de Lugh (outras representações desse tema na literatura celta inclui a rivalidade entre o alto rei Eochaid Airem (“O lavrador”) e Mider, o governante de Brí Léith, que termina com a derrota deste oferecendo serviços relativos à agricultura; e a luta de Arthur com o amante de Gwenhwyfar, Melwas).

 

Existe uma versão bem diferente da mesma estória conhecida a partir de um manuscrito do século 17 e assinada por David Duigenan. Nesta, Breas é morto por Lúgh, e Balor, ao invés de morrer logo a seguir, tenta persuadir seu neto a decapitá-lo e colocar sua cabeça no topo da sua, de forma que Lugh absorva todos os dons mágicos de seu avô. Sabiamente, Lúgh coloca a cabeça de seu avô sobre uma pedra, e o veneno que escorre dela é suficiente para quebrar a pedra em quatro. Este episódio ainda é bastante conhecido na tradição popular que ainda existe.

 

A cena da entrada triunfante de Lúgh em Tara e sua tomada de posse da soberania era geralmente usada para evocar governadores irlandeses verdadeiros. O famoso poema do séc. 14 de Gofraidh Fionn Ó Dálaigh sobre essa temática (no qual Lúgh se identifica como “feile a hEamhain Abhlaigh ealaigh iobhraigh” – “um poeta da terra das maçãs, rica em cisnes e teixos”) foi um louvor a um governante Anglo-normândico, Maurice FitzMaurice, segundo conde de Desmond. Na estória Baile in Scáil, do  século 11 (“O transe do fantasma”), Conn das cem batalhas, um dos reis exemplários da Irlanda pré-cristã, tem uma visão na qual Lúgh, entronizado sobre um tablado, direciona uma linda mulher – Flaith Érenn (“A soberania da Irlanda”) – a Conn para dar-lhe a bebida da soberania, casando-o assim com a terra e fazendo dele rei num sentido sagrado. Esta é uma fiel expressão de alguns dos antigos simbolismos celtas que discutimos anteriormente, em Lúgh como “Mercurius Rex”e a mulher como Rosmerta, e demonstra que a concepção de Lúgh como o arquétipo de poder por trás do governo sobreviveu por muito tempo depois do cristianismo.

 

Evidentemente a estória de Lúgh era popular nos círculos literários medievais, e nós temos muitas alusões a esta tanto em poesia como em prosa. Dessas alusões nós aprendemos que Lúgh era um de uma tríade, da qual os dois outros membros morreram ao nascer – nos lembrando da triplicidade do Mercúrio celta, e do plural Lugoues. Nós aprendemos que ele foi criado não só por Tailtiu mas também por Manannán mac Lir, o governador do banquete/festa do Outro mundo na terra das maçãs, e que ele herdou o uso da espada de Manannán  Freagartach (“Aquela que responde”). Sua arma pessoal mais comum, contudo, era a lança de Goirias, nos lembrando a espada do Mercúrio celta. Ele também herdou o corrbolg de Manannán, ou “crane bag” ( bolsa/saco de grou/ garça-azul) cheia de tesouros mágicos, novamente lembrando a bolsa da riqueza de Mercúrio. Num texto do séc. 11 chamado Imthecht Clainne Tuirill nós ouvimos pela primeira vez a respeito de uma tradição interessante sobre o pai natural de Lúgh, Cian (aqui chamado ‘Ethlen’ pela confusão com a mãe de Lúgh, tendo o autor partido do pressuposto  de que ‘Lúg mac Ethlenn’ era um patronímico ao invés de um matronímico): ele era um ‘shape-shifter’, capaz de se transformar em um ‘oirce’ ou cãozinho de estimação, de um tipo muito associado a santuários de cura pelo antigo mundo celta, especialmente em relação ao Marte celta – um atributo apropriado ao filho do deus médico, e um reflexo das figuras caninas que às vezes acompanham o Lugus da idade do ferro. Durante as idades médias tardias essa estória foi mais tarde adornada (é mais conhecida na sua versão do séc. 14, Oidheadh Cloinne Tuireann), mas durante o processo ela absorveu muitos elementos relevantes e acabou se tornando um reflexo preciso dos primeiros modelos mitológicos. Semelhantemente, tradições sobre as duas esposas de Lúgh, Buí e Nás (uma delas enterrada em Knowth, a outra em Naas em Co. Kildare), e outra sobre sua morte, são claramente invenções tardias para explicar alusões literárias que não podiam mais ser compreendidas. 

 

No entanto, quando nos voltamos para as tradições populares modernas sobre Lúgh, nós encontramos um rico e consistente material (alguns ainda são passados adiante hoje em dia) que de muitas formas parece mais próximo dos modelos da mitologia Indo-européia do que das fontes literárias. Lúgh aparece aqui como uma personalidade atraente e vívida, tanto heróica como trapaceira. Onde o Lebor Gabala apresenta a união de seus pais como um casamento político não problemático, as fontes orais oferecem um relato do seu nascimento bastante dramático e complexo. Balor, cuja fortaleza mágica está em Tory Island (muitas dessas histórias foram passadas adiante em Donegal), está ciente de uma profecia de que ele será morto por seu neto; dessa maneira, ele mantém sua filha Eithne presa numa torre, fora do alcance dos homens. Os tuatha Dé Danann, contudo, também estão cientes da profecia e ansiosos para se livrarem dos olhos invencíveis de Balor, e um deles, Cian (chamado de Fionn em algumas versões), trama, com a ajuda de uma druidesa Bioróg, para vencer as defesas mágicas de Balor e entrar na sua fortaleza. Antes dele ser levado até Eithne, as criadas dela (que, em algumas versões, variam em torno de novecentas) insistem para que ele durma com todas elas. Todas ficam grávidas e dão a luz à raça das focas, que são meio-irmãs de Lúgh. Quando a criança de Eithne nasce, acontecem muitas tentativas de matarem o garoto, mas ele, a essa altura já astuto, consegue se safar. Cian tenta proteger a criança através de mágica, e como resultado é descoberto por Balor e se mata, o que leva o jovem Lúgh a jurar vingança pela morte de seu pai. É seu próprio avô que o nomeia, chamando-o de “pequeno de mãos grandes” quando, ao se enganar achando que ele era o assistente de jardineiro, comenta sua habilidade de alcançar tantas maçãs ao mesmo tempo (introduzindo o trocadilho que liga o nome ‘Lúgh’ a lú “pequeno, franzino, de pouco valor”, o que é importante para entendermos o caráter do deus).

 

Nas fontes orais, a batalha entre os dois grupos de deuses não é o resultado de um conflito dinástico,  mas uma discussão acerca da detenção de uma vaca maravilhosa, muito similar ao Kâmadhenu ou “vaca dos desejos” que sai do mar de leite e é cobiçada tanto por Devas como por Asuras na mitologia indiana. Logo, esta é uma reflexão não ambígua do motivo Indo-europeu das forças de cultivo e anticultivo (deserto) lutando pela disposição da fertilidade da terra. Lúgh é o campeão que, por causa de seus links com ambos os lados, mas com sua lealdade às forças da cultura, ganha aquela fertilidade para sua tribo (em algumas versões populares ele mata Balor não com uma pedra de atiradeira, mas com sua lança emblemática – o significado da qual discutiremos brevemente). Em termos práticos, o prêmio da batalha é, claro, a colheita, o fruto do ciclo agricultural; e o significado completo do mito só pode ser compreendido no contexto ritualístico do festival da colheita Lughnasadh, a própria festa de Lúgh.

 

Contudo, antes de nos voltarmos completamente para os aspectos ritualísticos do mito, devemos mencionar as escassas, mas significantes alusões a esse material na literatura gaulesa medieval. A mais explícita ocorre no ciclo de quatro contos conhecido como Mabinogi, que foi composto não antes do século 12 e mostra a forte influência da cultura feudal internacional de seus dias, no entanto ainda retém algumas característica arcaicas. Na quarta parte, o Plant Dôn (“Os filhos de Dôn”, cognatas gauleses dos Tuatha De Danann), que governam Gwynedd (Norte de Gales), tinham guerrilhado com Dyfed (Sul de Gales) pela detenção da posse de alguns porcos do outromundo. No final desta, Math, o governante de Plant Dôn, perde a virgem em cujo colo seus pés devem ser mantidos, de acordo com um tabu real. O filho de sua irmã, Gwydion, um poderoso mágico e trapaceiro, oferece sua irmã Arianrhod como uma substituta. No entanto, quando sua virgindade é testada pela varinha mágica de Math, ela dá a luz a um menino já completamente formado, Dylan, que imediatamente mergulha no mar e some, e a “uma coisinha” ainda disforme (pethan) que é segurada por Gwydion e colocada num baú. Depois de alguns meses, o baú é aberto e dele emerge um saudável bebê. Assim, como Lúgh, ele nasce de uma mulher que “não deveria ter concebido uma criança”; e Dylan corresponde claramente aos meio-irmãos de Lúgh que caíram na água e se tornaram focas. Quando confrontada com seu filho, Arianrhod, joga uma praga tripla nele: de que ele não terá um nome, a não ser que venha dela; de que ele não terá armas, a não ser que ela o arme; e de que ele não terá esposa de raça alguma existente na terra. Gwydion desfaz a primeira praga disfarçando a criança e a ele próprio de sapateiros e, enquanto Arianrhod está provando os sapatos, a criança acerta a perna de uma cambaxirra com uma pedra de atiradeira, de forma que Arianrhod exclama “o pequeno (ou o raio luminoso) fez isso com uma mão certeira”, dando a ele seu nome, Lleu Llaw Gyffes (correspondendo exatamente a ‘Lúgh Lámhfhada’ “o pequeno/ (raio- lampejo?) de mão comprida”, um nome que foi, como no caso de Lleu, dado a ele inadvertidamente por um parente mal intencionado). Para desfazer a segunda praga, Gwydion faz aparecer um exército imaginário envolta de Arianrhod, fazendo com que ela arme ele próprio e Lleu (novamente disfarçado) para defendê-la. Para obter a “mulher de nenhuma raça terrena”, Gwydion e Math cria uma mulher para Lleu a partir de flores (a virgem da flor dos rituais celtas de maio). Essas três tentativas correspondem às três funções Dumezilianas: nome = identidade social e ritual (primeira função); armas = status de guerreiro (segunda função); esposa = fertilidade, reprodução (terceira função). Assim, Lleu é mostrado dominando as três e funções e conseqüentemente se tornando um representante de todas as facetas da sociedade humana, como o Mercúrio celta.

 

Na terceira parte do Mabinogi, o personagem principal é Manawyddan fab Llyr, que é geralmente reconhecido como sendo um empréstimo do irlandês Manannán mac Lir, o pai adotivo de Lúgh. Embora ele não tenha nenhuma relação direta com Lúgh, ele mostra uma série de características inerentes a Mercúrio. Manawyddan é o consorte de Rhiannon, que lembra a deusa eqüina da Terra-soberania e que é aqui a mãe (por um consorte anterior) do legítimo governante de Dyfed, Pryderi. Quando Rhiannon e Pryderi são separados pelas trapaças de seres do outro mundo e um encantamento de esvaziamento é jogado sobre Dyfed,  Manawyddan se torna o protetor da esposa de Pryderi, Cigfa, e dá suporte a ambos através do exercício de seu artesanato, mostrando surpreendente habilidade como sapateiro. Como Lúgh, ele serve como um governante temporário, não entre a linha de sucessão dinástica, mas tomando responsabilidades em obrigações de primeira função na ausência do governante legítimo. Eventualmente, os poderes do outro mundo se manifestam na forma de um exército de ratos que, no estilo Fomorian, devastam sua safra, fazendo com que ele use suas próprias reservas de trapaças para derrotá-los e restaurar a ordem social que eles haviam destruído. Novamente, esse é um mito de cultura versus natureza, onde a comunidade humana e os poderes da terra competem pelo controle da colheita – resumindo, um mito de Lúghnasadh.

 

(A ênfase na sapataria na terceira e na quarta partes, e a dedicação ao Lugoues feita pela associação espanhola de sapateiros, sugere que este era um antigo e importante atributo do Mercúrio celta. Este fato pode ter sido, é claro, nada mais que um símbolo de artesanato em geral, mas alguns achados arqueológicos mais recentes em cemitérios romano-celtas deixam implícita uma associação mais específica dessa imagem com o deus. Em tumbas britânicas do terceiro e quarto século, junto a outras parafernálias relacionadas ao culto de Lugus, pode-se tipicamente encontrar um par de botas, obviamente para o uso dos mortos no outro mundo. “Mercúrio” , como o arquétipo daquele que transita entre os estados é o patrono de todas as estradas e viagens, mas particularmente da última viagem entre os reinos da vida e da morte. Sapatos são uma necessidade básica para o viajante, nesse mundo e no próximo, então, Lugus, conhecedor de todas as artes, é o fornecedor específico para essa necessidade).

 

Um conto gaulês independente provavelmente composto pela primeira vez no século 11, Cyfranc Llud a Lleuelys, aborda o mesmo assunto de uma forma diferente. Llud (cujo nome originalmente era Nudd) é o cognato do irlandês Nuadu, e é representado aqui governando a Bretanha do seu trono em Londres. O nome de seu irmão, que governa a França, é geralmente traduzido como “Llefelys” hoje em dia, mas este é provavelmente um erro, pois sendo o primeiro elemento desse nome, de outra forma inexplicável, quase certamente Lleu-, sugere que ele é de fato uma outra forma de Lugus. O fato de Lludd ter reinado na Bretanha e Lleuelys na França poderia possivelmente refletir uma lembrança da importância dos “Nodens” (Antigo celta Noudons, daí Nuadu e Nudd) no antigo culto britânico e de Lugus/”Mercúrio” na Gália. Lludd está preocupado com três “opressões” (gormesoedd) que estão afligindo a ilha britânica, e vai pedir conselho ao seu irmão sobre como lidar com elas. A primeira delas trata-se de uma raça sobrenatural que pode ouvir tudo o que está sendo falado, de forma que a privacidade e os segredos pararam de existir (uma violação dos reinos mentais e sociais, relacionados à primeira função). A segunda, um grito horripilante que ecoa toda véspera de maio roubando dos homens suas coragens (uma violação da bravura defensiva, logo, de segunda função). A terceira “gormes” é o desaparecimento inexplicável das provisões reais (uma violação dos alimentos, que é a terceira função). Lleuelys é capaz de resolver os três problemas: os intrusos sobrenaturais são destruídos ao serem borrifados sobre eles alguns insetos espremidos na água; o grito é causado por dragões de batalha que são enganados e trancados num baú e enterrados sob Eryri (Snowdonia); e as provisões estão sendo roubadas por um gigante do tipo fomorian que, uma vez derrotado, oferece seus serviços ao governante. Lludd é, assim, reafirmado em seu governo, mas Lleuelys mostrou, de um modo bem sutil, seu controle sobre as três funções e sua habilidade para confirmar a posse da soberania de um governante. Este, mais uma vez, reapresenta alguns dos temas básicos de Lúghnasadh. 

 

Nós chegamos agora finalmente às práticas ritualísticas que envolvem o próprio Lughnasadh, muitas delas ainda bastante vivas, formando um consistente corpo de material simbólico com, obviamente, raízes antigas (já que, como vimos, a data já tinha significância em tempos romanos). Através da Irlanda, mas também em outras partes dos mundos celta e ex-celta, a comemoração do Lughnasadh (ou do que mais o festival de colheita possa ser chamado) está centralizada em lugares altos de territórios individuais: os “Mercurii montes” dos tempos antigos. As mais animadoras, como os sítios de Lughnasadh, são as colinas altas que, mesmo assim, têm uma fonte de água perto do topo – por serem capazes de unir o que está embaixo e o que está em cima, o reino do céu dos deuses da cultura e o submundo aquoso (o reino dos fomorian). Os primeiros frutos das safras cultivadas, assim como exemplos de produto agrícola silvestre (geralmente “biberries”), eram trazidos para o sítio para serem abençoados e partilhados pela comunidade. Em tempos modernos, essa essência agrícola do festival é tudo o que sobreviveu, mas antigamente, quando as terras celtas estavam sob o domínio de nativos, Lughnasadh era a ocasião de grandes assembléias onde problemas legais eram ajustados, problemas políticos eram discutidos, artesãos e artistas em geral tinham uma chance de mostrar seus talentos, e eventos esportivos juntavam comunidades distantes. Tudo isso acontecia sob a proteção de Lúgh (o Sanas Cormaic do século nove explica ‘Lughnasadh’ como a assembléia de Lúgh), que, dizem, ter instituído os jogos em memória tanto de suas esposas como de sua mãe adotiva Tailtiu, cujo nome (do celta antigo Talantiu, “A grande da terra”) e história de vida dão a ela uma grande afinidade com a colheita. Mas é o próprio Lúgh que permite que a colheita comece, ao estabelecer as condições certas para ela e ao combater os elementos hostis na terra que tentam destruir a safra.

 

Muitos pesquisadores interpretaram o nome Lúgh como uma derivação da raiz indo-européia *leuk- “luz”, que também vem do latin lux. Isto é parcialmente confirmado pelo significado de lleu em Galês (esp. Como parte de (go)leu “luz”). Como um resultado, e com a ajuda da obsessão de muitos pesquisadores vitorianos por “mitos solares”, foi tomado como pressuposto que Lúgh era um deus solar. Além disso, uma comparação entre o título de Lúgh Lámhfhada (“de braço comprido”) e o título Prithupâni (“mão larga”) dada ao deus védico Savitr (o deus da primeira luz do dia) parece confirmar tal noção – e agora está firmemente entranhada na literatura popular da “mitologia” irlandesa. No entanto, idéias tradicionais sobre Lúgh associadas a rituais não mostram nenhum vestígio disso. Lúghnasadh é um dia em que tempestades com muita chuva são esperadas e bem-vindas. Elas proporcionam uma trégua do verão cruel que põe em perigo as safras e favorece as pragas de insetos. O sol impiedoso é o olho flamejante de Balor, e a lança de Lúgh é necessária para amansar seu poder. Lúgh é chamado Lonnbeimnech (“o atirador cruel”) assim como Lámhfhada. O “Mercúrio” celta é às vezes mostrado não só com sua lança mas também com o facilmente reconhecível martelo-trovão indo-europeu. Em maio, as tempestades de Lughnasadh eram vistas como a batalha entre Lúgh e Balor: “Tá gaoth Logha Lámhfahada ag eiteall anocht san aer. ‘Seadh, agus drithleogaí a athar. Balor Béimeann an t-athair” (“o vento de Lúgh do longo braço está soprando pelo ar esta noite. Sim, e as centenlhas de seu pai [sic]. Balor Beímeann é seu pai”). Deste e outros exemplos fica claro que Lúgh tem mais domínio sobre a tempestade do que sobre a luz do sol, e se sua seu nome tem alguma relação com “luz”, o significado mais apropriado seria “relâmpago”. Essa é a principal função da sua invencível lança. Embora provavelmente haja alguma relação temática entre os títulos Lúgh e Savitr, eles claramente não são equivalentes.

 

Principal ao ritual de Lúghnasadh na sua forma mais antiga era a representação do mito da estação. Certamente alguma versão ou outra do Cath Maige Tuired teria sido o material mais popular para isso na antiga Irlanda (apesar das fontes literárias colocarem a batalha – como virtualmente todos os eventos sobrenaturais – no Samhain!), mas um grande número de variantes era possível. Uma pessoa fazendo o papel de Lúgh – ou de um santo do local ou herói com características de Lúgh – teria lutado contra vários monstros enviados a ele pelo Fomorian deus da terra, e eventualmente triunfaria sobre o próprio deus da terra. Na Irlanda moderna, o deus da terra é quase sempre Crom Dubh (“O homem negro e curvado” – o feriado é geralmente chamado Domhnach Croim Dhuibh – “O domingo de Crom Dubh” – em homenagem a ele), e um dos principais adversários que ele manda contra ele é um grande touro (diferente dos cavalos que simbolizam o poder da tribo, o gado representa o poder da terra: vacas são o aspecto nutridor, mas os touros representam o aspecto destrutivo). A vitória de Lúgh, em alguns casos, pode ter sido dramatizada como um salto sobre uma cabeça de pedra. “A figura gaulesa de um cavaleiro montado empinado sobre uma cabeça emergindo do chão, ou sobre um gigante emergindo do chão, parece ilustrar esse mito e pode até ser uma representação de um rito”.

 

Como já mencionamos, esse mito poderia ter sido apresentado de várias formas. Uma das mais impressionantes envolve os contos córnicos de “Jack, o Tinkard” que foram representados na ocasião de Morvah Fair, uma das grandes celebrações de Lúghnasadh fora da Irlanda. Este é uma longa e complexa narrativa que lida com “gigantes”, que no folclore córnico é um modo bastante convencional para se referir aos deuses fomorianos. O começo da história nos conta como um herói chamado “Tom” derrotou um gigante do local lutando com ele com uma roda de carroça (lembrando a roda do trovão da arte celta primitiva). “Tom” se torna próspero, mas é eventualmente desafiado por outro herói, Jack, que carrega um martelo e veste um couro preto de um touro que as armas não podem furar. “Jack” concorda em cooperar com “Tom”, e continua para demonstrar que ele é o mestre de todas as artes, ofuscando o ignorante e de raciocínio lento Tom durante o processo (fornecendo um eco da entrada triunfante de Lúgh em Tara). Para conseguir a mão da irmã de Tom, Jack luta (mais através de trapaças) com outro gigante da área. Muitas das versões do mito de Lúghnasadh dão ênfase na conquista da mão de uma mulher, ou (em termos de ritual) na persuasão para que ela sirva como a rainha da colheita. Geralmente, a implicação é que ela seja uma mulher fomoriana, um poder de fertilidade da terra que passa para o lado da Tribo – e talvez isso inclua a mãe de Lúgh, Eithne, cujo nome poderia ser entendido como “kernel”.

 

Uma outra versão desse mito, que ilustra o quão simples e humilde as imagens podem se tornar sem modificar nada que é importante a elas, é o famosa história escocesa Cath nan Eun (“A batalha dos pássaros”), coletada em várias versões por John Francis Campbell no começo do século 19. Uma cambaxirra se oferece para proteger a safra de um fazendeiro, mas ele é imediatamente desafiado por um rato, que é claro quer a colheita para si próprio e para os seus. A cambaxirra reúne um exército com todos os pássaros do céu, mas o rato reúne um exército equivalente de roedores e coisas horripilantes. Uma grande batalha é travada, e o herói do conto, Mac Rìgh Cathair Shìomain (um “filho de um rei” e conseqüentemente um detentor predestinado à soberania), decide ajudar, mas chega quando a batalha está quase terminada, e os único combatentes que restaram eram uma serpente e um corvo. Ele escolhe se juntar ao corvo, e em troca recebe auxílio mágico na derrota de um gigante para conseguir a mão de sua filha. Logo que a aventura começa, o corvo se transforma em um lindo jovem e dá ao filho do rei uma bolsa cheia de tesouros mágicos, reminiscência do corrbolg, ou “sacola de Mercúrio”. A essência do mito é preservada completamente aqui: a batalha entre os pássaros e as figuras horripilantes é a batalha entre as forças de cima e as debaixo, os Tuatha Dé Danann e os Fomhóraigh, a tribo e a terra, pela posse da colheita. Tanto a cambaxirra como o corvo têm laços com Lúgh, o líder do lado dos Danann: e aqui ele preenche seu papel comum ao restaurar o governante legítimo e dando a ele a mulher que é a fertilidade da terra.

 

A cambaxirra serve para nos lembrar de um aspecto de Lúgh que geralmente é eclipsado pela sua aparência heróica em tantas histórias literárias irlandesas: de que ele é lú, “pequeno”, facilmente desprezado antes que seus poderes se revelem. A cambaxirra também apesar de seu pequeno tamanho é um rei, o rei de todos os pássaros: num conto popular muito conhecido através da Eurasia (incluindo as terras celtas) ele ganha esse título através de trapaças, embarcando como clandestino nas costas de uma águia durante uma competição para decidir que pássaro pode voar mais alto, voando então mais alto quando a águia já estava exausta e não podia voar mais alto. O simbolismo da cambaxirra nos ajuda a compreender um dos símbolos associados a Lúgh em suas manifestações mais antigas: o visco, que é a menor de todas as árvores, ainda assim cresce até o topo da árvore mais alta, o carvalho, sendo assim, dentre todas as árvores, a mais próxima do céu. Ela também é verde no inverno, quando o próprio carvalho está descoberto, de forma que ela manifesta vida mesmo no meio da morte. Há uma impressionante similaridade entre Lugus e Vishnu, que aparece pela primeira vez no Vedas como muito mais um deus “pequeno”, mas capaz de salvar o dia durante a grande batalha contra o monstro Vrtra, retentor da fertilidade, por causa de seu talento singular de criar novos espaços no universo com seus passos – um talento que, depois de séculos de reflexão sobre suas implicações teológicas, o transformaria em um dos maiores deuses do Hinduísmo, e até mesmo no próprio equivalente a Deus. Da mesma forma, o papel de Lugus ao salvar a colheita com seu talento de unir os opostos e transitar pelos reinos, depois do mesmo tipo de reflexão teológica, faz dele o “principal deus” do celtas (como nos diz Caesar).

 

Desta forma, não há dúvida de que Lugus estava relacionado à grande maioria dos povos celtas no mais íntimo e satisfatório modo. Contudo, muito dele deve ter sido associado com o domínio de primeira função de reinado, seu envolvimento com todas as funções da sociedade celta fez dele um protetor cooperador de qualquer indivíduo, do mais alto nobre ao mais humilde artesão. Os membros mais fracos da comunidade teriam sentido uma afinidade especial  por um deus “que é bem sucedido pela habilidade da mais sutil mágica do que pela força bruta de seu físico”. Seja onde for que as portas tivessem que ser abertas, trocas tivessem que ser feitas, fronteiras tivessem que ser ultrapassadas, seus dons especiais poderiam ser invocados com proveito (o Lebor Gabála, de forma interessante, faz de Lúgh o inventor do xadrez (fidchill) e dos jogos de bola (liathroit) – ambos são jogos que involvem a interpenetração de reinos opostos). Assim, para o poeta ou intelectual, o relâmpago de sua lança era o insight (imbas) que perfura a escuridão do caos, de forma que ele fosse verdadeiramente o “dé delbas do chind codnu” (“o deus que põe a cabeça no fogo”) de Amairgen. Ele também poderia ser o patrono de heróis no plano terreno – como Cú Chulainn que, como seu pai, teve um nascimento triplo, e cuja arma especial, o gae Bolga, era, em um nível, meramente uma arma mundana exótica (a “lança bélgica”), mas em outro era a “lança relâmpago”que seu pai empunhava nos céus. Mesmo a chegada do cristianismo não poderia erradicar o lugar que Lugus tinha no coração das pessoas comuns das terras celtas. Sulpicius Severus, na sua biografia de St. Martin de Tours, nota que, de todos os deuses da Gália, o santo achou Mercúrio “infestior” - “o mais incômodo, mais difícil de se livrar”. Fora da Irlanda as imagens associadas com St. Michael , o arcanjo – o jovem guerreio triunfando sobre o satânico dragão – era naturalmente assimilado a Lugus, de forma que muitos Mercurii montes se tornaram “St. Michael’s Mounts”, e a St. Michael foi dado um papel especial em relação a estação da colheita.

 

Mesmo hoje em dia, o espírito de Lugus impregna o mundo celta, perdendo somente para Brigit em significância e acessibilidade. Trapaceiro, “psychopomp”[6], experimentador, aquele que transita entre os mundos, assegurador do sucesso e da riqueza através da manipulação inteligente, assegurador da continuidade através da mudança, seus muitos dons permanecem a disposição daqueles que se esforçam em encontrá-lo.



[1] O nome ‘Dumezilianas’ foi adaptado por mim a esse contexto específico e se referem a Georges Dumézil (1898-1980), filólogo e historiador das religiões, que, na tentativa de trazer à luz o fundo cultural comum aos povos indo-europeus, propôs que tais povos representavam as funções que permitem a vida em sociedade em três categorias: as funções soberanas (o espiritual), as funções guerreiras (a força física) e econômicas (a fecundidade). Ao longo deste artigo, Alexei Kondratiev se refere a estas funções como primeira, segunda e terceira, respectivamente.

[2] Grupo étnico que se localizava na área de Lyon, França, entre 750 e 50 BC e cuja família lingüística era celta.

[3] Plutarch (45-125 AD) foi um pensador e escritor grego e também um dos sacerdotes do templo de Apollo em Delfos. Viveu grande parte de sua vida em sua cidade natal, Chaironeia. Ele escreveu sobre uma grande variedade de temas. No entanto, Plutarch é bem lembrado pelas biografias que escreveu sobre importantes personalidades gregas e romanas, chamadas de Parallel Lives, onde comparava os homens de estado gregos e romanos.

[4] A deidade guardiã de um determinado lugar.

[5] “Maponos significa “juventude divina” ou “deus jovem”. Seu culto foi atestado na Gália. Era também amplamente conhecido na Bretanha Muitas das inscrições britânicas sobre Maponos vêm de sítios militares e o associam ao deus Apollo, especialmente em seu aspecto de curandeiro, guardião de águas sagradas e músico”. (adaptado do site: http://christophergwinn.com/celticstudies/maponos.html)

[6] Condutor de almas para o Outromundo.

 


 
 
 
 

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