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Sandman é o penúltimo conto de RCL. E o último que realmente
mantém a tônica inicial, violência, ironia, frustração,
e ao mesmo tempo um caráter pessoal que as pessoas podem se associar.
Especialmente se você tem ou teve um vizinho odiável...
Hum..
WOHHHOOAaaaaaa..
Espreguiço-me...
Olho para os lados e vejo algo piscando...Uma luzinha...
Levanto-me rápido e pego a pistola, vou correndo agachado até
o quarto de Narinha.
O quarto fica ao lado do meu, e a porta está encostada com a luz acesa,
abro de leve e olho para dentro...
Narinha está bem, linda, dormindo. Continuo fazendo a busca na casa.
Um discreto Holo azul escuro começa a gesticular em direção
a janela da sala quando me percebe. Aproximo-me devagar e olho apontando a arma.
Um escalador está agarrado a janela. A tela pega-ladrão, que armo
toda noite, finalmente pegou alguém, ótimo. Vou novamente olhar
Narinha, e ela continua dormindo.
Tiro o imbecil da minha janela, os sons da madrugada são os mesmos de
sempre, ninguém notou um ladrão subindo até meu apartamento,
ou ninguém quis notar, o que é exatamente a mesma coisa.
Ele ainda está paralisado com o choque que levou, e tiro sua máscara.
É um garoto, deve ter seus quinze, ou dezesseis anos. Uma pena. Mantenho
a janela aberta para diminuir o calor do apartamento.
Bato na cara dele após desarmá-lo, ele suspira e tosse, a cor
voltando ao rosto. Pergunto a ele se quer beber algo, ao que ele responde com
confusão que quer um copo d'água. Eu explico a ele que de acordo
com a lei posso fazer o que quiser com qualquer pessoa que entre no meu apartamento,
coisa que ele deve com certeza saber. Ele faz que sim com a cabeça.
Falo com um holo da policia (um holo com cores amarelas e vermelhas, que parecem
implorar para o incomodarmos o menor tempo possível)e aviso que prendi
um escalador que estava invadindo minha casa. Os cretinos perguntam o que quero
que eles façam...
A viatura vai chegar em vinte minutos. Eu e Narinha poderíamos ser mortos
milhares de vezes em vinte minutos.
Eu fico MUITO puto com isso. Muito mesmo. E pensar que eu sou um trabalhador,
que sua seu sustento todo o dia, pago os impostos, e taxas de proteção,
tanto individual quanto do edifício.
A incompetência do ser humano é incrível. O estado é
a síncope desta incompetência.
Trinta e cinco minutos depois os policiais chegam. Cretinos.
Eles entram no apartamento e atiro contra eles, são rápidos, mas
pareciam com sono. Bem treinados, mas minha fúria e meu cotidiano como
executivo me mantêm preparado para levar tiros por todo lado e escapar
deles. Um está vivo, e treme enquanto urina no meu tapete. Puto.
Deixo o garoto ir, mas antes faço ele assinar um contrato que nunca irá
levantar uma arma contra mim ou Narinha. Ele assina e parte de cabeça
baixa.
Como um último gesto de maldade, lembro a ele que meu vizinho deixou
o alarme dele desligado hoje, como eu havia notado mais cedo. Ele sorri, e percebe
que a noite ainda não está perdida.
Volto ao policial e pego seu caderninho com holos graváveis de feedback
do cliente (aqueles em que o cidadão pode dizer o que quiser da policia).
Levo o idiota hemorrágico até a porta do apartamento e chamo uma
ambulância.
Reporto tudo o que ocorreu ao holo da policia, que fica irritado, mas sabe que
legalmente eu estou protegido.
Volto a minha cama e tento dormir. Tenho de acordar cedo para trabalhar.
Passo no quarto de Narinha e confirmo que ela continua dormindo. Perfeita, minha
vida, minha Narinha.
Volto a meu quarto e me deito, pensando ainda na inocência e beleza do
rosto de minha filha.
E fico sorrindo quando escuto um som de tiros no apartamento do vizinho. Sonhar
com anjos não poderia ser melhor.